As décadas se passam e o futebol mantém o posto de esporte mais popular do mundo, sendo capaz de mobilizar milhões de pessoas e de despertar os mais variados sentimentos em seus praticantes e torcedores. Com tamanha força de mobilização, não é incomum encontrar, em qualquer parte do mundo, a utilização do futebol como ferramenta de propaganda política de governos e de projeção de uma determinada imagem do país internacionalmente.
No Brasil, por exemplo, o governo ditatorial de Emílio Médici usou amplamente da conquista da Copa do Mundo de 1970 como instrumento de propaganda política da ditadura militar. A imagem que passou para a história não poderia ser mais simbólica: Carlos Alberto, então capitão da conquista de 1970 e autor de um dos gols mais belos de todas as Copas na final contra a Itália, levantou a taça ao lado de Médici para milhões de brasileiros.

A importância dada por Emílio Médici ao futebol está relacionada a fatores internos e externos. Na perspectiva interna, o futebol poderia ser utilizado como ferramenta de identificação da população com o imaginário de um Brasil patriótico que a ditadura buscava fomentar, assim como reforçava a ideia de uma falsa “normalidade” em um cenário marcado pelo uso extremo da força pelo governo contra os seus opositores. Na dimensão externa, a potência do Brasil no futebol era uma imagem fácil de ser vendida para o mundo. O país acabara de se tonar o primeiro tricampeão mundial e estava pronto para ser conhecido como o “país do futebol”.
Obviamente, a utilização de ferramentas como o futebol para finalidades políticas não é uma exclusividade de governos centralizadores e ditatoriais. Entretanto, é interessante notar como, com o passar dos anos, os métodos dos governos caracterizados pela centralização do poder mudaram e se tornaram mais sofisticados. Consequentemente, também há modificações notáveis na forma como esses governos utilizam determinadas ferramentas para a projeção internacional da imagem do país. Apesar disso, os objetivos permanecem razoavelmente similares àqueles do período de Médici: cultivar o imaginário patriótico e reforçar a ideia de normalidade internamente e projetar uma imagem forjada do país para o mundo por meios vistos como brandos.
Os três exemplos mais recentes dessa mudança de método do uso do futebol para projeção da imagem internacional do país são Arábia Saudita, Catar e Rússia. A Rússia foi a responsável por sediar a Copa do Mundo de 2018. À época de sua realização, a Copa do Mundo da Rússia foi a mais cara da história, custando aos cofres do governo russo mais de 14,2 bilhões de dólares. Tamanho dispêndio de recursos para sediar um evento mundial era visto pelo governo russo como um grande símbolo da retomada do protagonismo da Rússia no cenário mundial. No âmbito interno, um evento com o propósito de celebrar e pregar a “união entre povos” era apenas mais uma medida de silenciar e ocultar os ataques recentes à democracia, direitos humanos e liberdade de expressão do governo Putin.
A sofisticação e a mobilização de vultuosos recursos ao longo dos anos servem ao objetivo de vender uma determinada imagem do país para o mundo. Como o próprio Putin revela em seu vídeo de boas-vindas aos amantes do futebol, a Copa do Mundo era uma oportunidade para “conhecer sobre a identidade e cultura russa, sua história única e a natural diversa, sua hospitalidade e seu povo amigável e sincero”.
Se a Rússia apostou quase exclusivamente em um grande evento mundial, o Catar foi além. O país, sem tradição alguma no futebol, praticamente transformou o futebol em política de Estado nas últimas décadas. Além de abrigar a Copa do Mundo de 2022, que teve um custo de inacreditáveis 220 bilhões de dólares (quebrando o recorde de gastos que havia sido estabelecido pela Copa do Mundo da Rússia em quase 19 vezes), o governo catari fundou em 2005 a Qatar Sports Investments (QSI), um dos braços da Autoridade de Investimento do Catar, visando realizar investimentos em esportes no Catar e ao redor do mundo.
A Qatar Sports Investments tem realizado investimentos consideráveis ao longo da sua existência. O caso mais relevante é o do clube de futebol francês Paris Saint German (PSG). A QSI comprou o clube em 2011 e desde então tem despejado quantias exorbitantes de dinheiro ano após ano, especialmente por meio de acordos de publicidade.
O uso de acordos de publicidade pelo PSG e o governo do Catar foi uma ferramenta bastante sofisticada para burlar as regras financeiras de limitação de gastos (Fair Play financeiro) das ligas de futebol francesa e da Europa. Em 2012, um ano após a compra do clube pela QSI, a Qatar Tourism Authority (QTA) – instituição do governo catari responsável pela promoção do turismo do país – anunciou um contrato de publicidade de 150 milhões de euros com o time parisiense. Os valores de repasse publicitário poderiam ainda chegar aos 200 milhões de euros dependendo da performance do clube em determinados indicadores. À época, o contrato publicitário fechado pelo clube surpreendeu o mundo e se estabeleceu como o maior patrocínio da história do futebol.
Além do patrocínio da QTA, no período após a aquisição do clube pela QSI, o PSG também foi patrocinado pela rede de hotéis francesa Accor, da qual a QTA possuía 10% de participação no Grupo Accor, e pela Qatar Airways, companhia aérea fundada pelo governo do Catar em 1993.
Com as vultuosas injeções de recursos realizadas ano após ano por meio dos contratos de publicidade, o PSG foi rapidamente alçado a uma condição de destaque no cenário mundial do futebol. O dinheiro e a perspectiva de futuro do projeto do Catar resultaram em um domínio absoluto do clube na liga francesa, na primeira aparição do time em uma final do campeonato mais importante de clubes do mundo (Champions League) e na fácil atração de estrelas mundiais, como Kylian Mbappé (uma das maiores promessas do futebol para os próximos anos), Lionel Messi (maior vencedor de prêmios de melhor jogador do mundo) e Neymar Jr. (jogador mais caro da história do futebol).
A consolidação da projeção do Catar no cenário mundial por meio do futebol foi concretizada com a realização da Copa do Mundo de 2022. Nos planos do Catar, o ideal seria, além de um evento de proporções monumentais, que ao menos uma das três estrelas do PSG (Mbappé, Messi ou Neymar) figurasse com seu time nacional na final da copa do mundo. O resultado não poderia ter sido melhor para o governo catari: a final da Copa do Catar, além de ter provavelmente sido uma das maiores finais de Copa do Mundo da história, colocou frente a frente Mbappé e Messi. De um lado, Mbappé e a seleção francesa foram à final para conquistar um feito que apenas Brasil e Itália conseguiram na história, ganhar duas copas do mundo seguidas. Do outro lado, Messi buscava fazer a Argentina novamente campeã do mundo após 36 anos e encerrar o domínio recentes de seleções europeias campeãs da copa do mundo.
Definitivamente, a final da Copa do Mundo de 2022 do Catar não poderia ter sido melhor para o governo catari. Duas de suas três estrelas performaram incrivelmente e foram os protagonistas de suas seleções. Ao final, Messi se sagrou campeão do mundo pela primeira vez e levantou a taça do mundo vestido com um Bisth, uma roupa reservada para ocasiões especiais pelos cataris.

Outro país que tem gradualmente adotado o futebol como uma poderosa arma de propaganda do país é a Arábia Saudita. Assim como o Catar, os árabes almejam levar a Copa do Mundo de 2030 para o seu território, em uma parceria que poderia envolver Egito e Grécia. Além disso, os árabes adotaram uma política bastante arrojada de investimentos na maior liga nacional de futebol do mundo, a Premier League.
A título de exemplo, em outubro de 2021, o consórcio liderado pelo Fundo de Investimento Público da Arábia Saudita desembolsou 300 milhões de libras (2,2 bilhões de reais na cotação daquela época) para a compra do clube inglês Newcastle. Desse modo, assim como o seu vizinho Catar, a Arábia Saudita investe no futebol por meio de um dos fundos controlados pelo governo, uma vez que o Fundo de Investimento Público do país é presidido pelo príncipe herdeiro da Arábia Saudita Mohammed bin Salman.

Além da compra de um time bastante tradicional na maior liga de futebol de clubes do planeta, o governo da Arábia Saudita tem investido no fortalecimento da sua liga local por meio da aquisição de grandes estrelas do futebol. O caso mais impactante é do jogador português Cristiano Ronaldo. No início deste ano, o jogador assinou contrato com o clube saudita Al-Nassr e passou a ganhar um salário anual de 200 milhões de euros (R$ 1,1 bilhão), tornando-se o jogador de futebol mais bem pago da história do futebol.
Em termos midiáticos, a contratação de Cristiano Ronaldo produziu efeitos imediatos. Apesar como exemplo, o perfil do Al-Nassr no Instagram tinha 800 mil seguidores até o dia do anunciou da contratação do astro. Uma semana após o anúncio, a página já era acompanhada por mais de 9 milhões de usuários. O impacto midiático provocado por Cristino Ronaldo tem se estendido para a imagem do país saudita na totalidade.

Não satisfeito em fazer o contrato mais caro da história do futebol com Cristiano Ronaldo, o governo saudita tem um acordo de 30 milhões de euros por ano com Lionel Messi para que o argentino desempenhe funções como embaixador do turismo do país. Além disso, desde abril deste ano, o clube de futebol saudita Al-Hilal formulou uma proposta de contrato para o astro argentino no valor de 400 milhões de euros por ano. Em outras palavras, a Arábia Saudita deseja contar com os dois maiores jogadores do século XXI como garotos propaganda do país.

Dessa forma, a julgar pelos valores elevados investidos recentemente por esses países na compra de clubes de futebol, na contratação de grandes estrelas e na realização de copas do mundo, é possível ter a noção de como o futebol tem sido instrumentalizado para a realização de uma “limpeza” na imagem de países amplamente conhecidos pelos baixos níveis de democracia, respeito aos direitos humanos e às liberdades individuais e coletivas.
Diferentemente das formas de exploração do futebol realizadas por governos como o de Emílio Médici no século passado, há novos métodos de uso do futebol para a promoção da imagem dos países no cenário internacional, que demandam mais recursos e que provocam efeitos mais duradouros por meio da associação de grandes marcas (clubes e jogadores) ao respectivo país que realiza o investimento.
Apesar da mudança na forma de utilização do futebol na promoção da imagem do país, os objetivos permanecem razoavelmente similares ao longo dos anos: cultivar o imaginário patriótico, reforçar a ideia de normalidade internamente e projetar uma imagem forjada do país para o mundo por meios vistos como brandos.
Fontes Consultadas:
https://www.bbc.com/news/newsbeat-58842557
https://www.bbc.com/news/world-europe-44812175
https://sportinsider.com.br/arabia-saudita-copa-do-mundo-2030/
https://veja.abril.com.br/esporte/o-campeao-do-mundo-antecipado-o-dinheiro-do-catar/
https://www.sportsmole.co.uk/football/psg/news/psg-announce-big-money-qatar-tourism-deal_60334.html