De acordo com dados do SIPRI (Stockholm International Peace Research Institute), que divulga relatório anual sobre os arsenais nucleares ao redor do mundo, Israel tem cerca de 90 ogivas nucleares e cerca de 1 tonelada de plutônio armazenado (suficiente para produzir pelo menos 185 armas nucleares). Apesar disso, o Estado de Israel mantém a sua política de opacidade (ou ambiguidade) nuclear, isto é, o país não confirma nem nega que possui tais armas.
Contrariando essa política de longa data, o Ministro para Assuntos e Patrimônio de Jerusalém, Amichai Eliyahu, em entrevista a uma rádio israelense, afirmou que o uso de arma nuclear seria uma opção para o atual conflito em Gaza. Na tentativa de contornar a fala de Eliyahu, Benjamin Netanyahu, primeiro-ministro israelense, suspendeu-o de suas funções e afirmou que a fala do ministro não era “baseada na realidade”.
Apesar da rápida repreensão da estapafúrdia declaração de Eliyahu, que não é membro do gabinete de segurança, a mera consideração do uso de armas nucleares por um membro do governo israelense é, sem dúvidas, preocupante. Mais do que isso, essa fala revela a tentativa de nazificação de toda a população de Gaza a fim de justificar a condução de uma política de punição coletiva por parte do governo israelense. Eliyahu expressou isso abertamente afirmando: “não existem civis não envolvidos em Gaza”. De igual forma, opondo-se à permissão de qualquer ajuda humanitária em Gaza, dizendo: “não entregaríamos ajuda humanitária aos nazistas”.
A lógica por trás de uma retórica que coloca a responsabilidade dos crimes cometidos pelo Hamas na conta de toda a população da Faixa de Gaza equivale à lógica do antissemitismo francês que levou ao caso Dreyfus. Parte-se da condenação como princípio sem considerar quaisquer evidências do contrário.
Ainda que uso de uma arma nuclear por Israel no atual conflito na Faixa de Gaza tenha sido descartado pelo primeiro-ministro, a mera menção a essas armas foi motivo de revolta por membros do próprio governo, como o Ministro da Defesa Yoav Gallant, que chamou as declarações de irresponsáveis. Além dele, Mansour Abbas, líder do partido Árabe Ra’am, disse:
“A desumanização e a punição coletiva são o caminho para o genocídio e os crimes de guerra. Haverá um dia após a guerra – não é o fim da história e não é o Armagedom“. “Tenho certeza, e acredito do fundo do meu coração, que ainda haverá paz e reconciliação entre os dois povos”, afirmou ele, conforme o The Jerusalem Post.
No exterior, as declarações de Eliyahu também foram rechaçadas. O Ministério dos Negócios Estrangeiros da Arábia Saudita divulgou um comunicado condenando o que considerou como a penetração do “extremismo e da brutalidade entre os membros do governo israelita”. E criticou uma falta de ação mais enérgica contra Eliyahu, afirmando: “Além disso, não demitir o ministro e apenas congelar sua filiação ao governo constitui o maior desrespeito por todos os padrões e valores humanos”, informa a Newsweek.
O sucesso da política de opacidade nuclear
O pronunciamento de Eliyahu também levou o Ministro dos Negócios Estrangeiros da Palestina, Riad al-Maliki a enviar uma carta ao chefe da AIEA para apresentar uma queixa contra Israel, informa o The Cradle. Al-Maliki apontou as palavras de Eliyahu como uma confirmação de que Israel possui armas nucleares e demandou atenção da AIEA para o caso. O país, todavia, se mantém firme em sua política de opacidade.
Israel não é signatário do Tratado de Não-proliferação Nuclear (TNP), assinado em 1968 e que entrou em vigor em 1970, cujo intuito de favorecer o uso pacífico da tecnologia nuclear, favorecer o desarmamento, bem como de impedir a proliferação de armas nucleares. Israel não se sujeita, portanto, às inspeções da Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA), podendo manter sua política de opacidade sem estar em desacordo com um tratado internacional, como foi o caso da Coreia do Norte que desenvolveu secretamente seu programa nuclear enquanto ainda era parte do TNP.
Essa política de opacidade nuclear israelense também dificulta a precisão quanto às estimativas de seus arsenais, quantidade de armamentos armazenados, local desses armazenamentos e mesmo se as instalações estariam de acordo com o padrão estabelecido pela AIEA. Todavia, permite a manutenção de um arsenal nuclear israelense sem necessariamente despertar (ainda mais) as pretensões nucleares de outros países da região.
Israel destruiu em 1981 as instalações nucleares do Iraque a fim de impedir o desenvolvimento dos programas nucleares desses países por meio de ataques preventivos. Não há consenso de que o ataque preventivo ao reator de Osiraq tenha sido o fator definitivo para impedir o desenvolvimento nuclear do Iraque – Dan Reiter (2005) aponta que o ataque incentivou ainda mais Saddam Hussein em vez de desencorajá-lo. Mas fato é que Israel, ainda que não assumidamente, segue como a única potência nuclear no Oriente Médio.
Atualmente, o maior inimigo regional de Israel é o Irã, país que também busca se nuclearizar. Uma afirmação categórica de Israel quanto à posse de suas armas nucleares traria legitimidade às pretensões nucleares iranianas e, eventualmente, da Arábia Saudita, com quem o Israel deseja normalizar relações diplomáticas. Aspiração essa prejudicada pelos recentes ataques do Hamas de 7 de outubro.
A agenda de não-proliferação de armas nucleares tem sido a prioridade de política externa das principais potências nas últimas décadas (estas, não por acaso, de posse das mesmas armas), mas o caso de Israel parece ser extraordinário. Isso porque, não só para o Estado de Israel, como também para seus aliados ocidentais, como França e Estados Unidos, a posse de armas nucleares é uma questão de sobrevivência.
Apesar de não terem sido utilizadas em batalha na Guerra do Yom Kipur de 1973, quando o país enfrentou uma ameaça existencial, a posse dessas armas foi relevante para o conflito. As derrotas iniciais de Israel no campo de batalha pareciam tão severas que, em 9 de Outubro, a primeira-ministra israelense, Golda Meir, ordenou que os aviões e mísseis com capacidade de ataque nuclear entrassem em alerta.
Essa sinalização do governo israelense, cuja intenção era mostrar aos aliados americanos de que essas armas não estavam fora de cogitação, levou a uma enorme transferência de armas dos Estados Unidos para o conflito, que terminou com a vitória e expansão de Israel. A Guerra do Yom Kipur, afinal, escancarou a necessidade que Israel tinha de estabelecer a paz ao menos com uma parte dos países vizinhos e levou à normalização das relações com o Egito em 1979.
O caso pela não-proliferação no Oriente Médio
Kenneth Waltz é uma das poucas vozes contrárias à não-proliferação no Oriente Médio. Para o autor, a lógica da balança de poder entre potências regionais permanece relevante, de modo que um equilíbrio favoreceria a estabilidade das relações entre os Estados da região. Waltz argumenta que assim como no sul asiático a proliferação levou a uma certa estabilidade entre Índia e Paquistão, o mesmo ocorreria na região do Oriente Médio, caso a nuclearização do Irã se concretizasse. Os modestos arsenais de Índia e Paquistão são suficientes, segundo o teórico de relações internacionais, para fomentar a dissuasão mútua entre os atores na mesma lógica da disputa de poder entre EUA e URSS durante a Guerra Fria.
No Oriente Médio, no entanto, a ideia de proliferação costuma ser vista com ainda mais desconfiança. Em parte, isso ocorre pelo medo dessas armas, em caso de proliferação, caírem nas “mãos erradas”, tais quais atores não-estatais (terroristas). Por outro lado, para usar um termo de um autor palestino, essas preocupações também são motivadas pelo que Said chamaria de Orientalismo. Sugere-se, no mais das vezes, que não se poderia confiar armas tão destrutivas à guarda de atores que poderiam vir a agir de modo irracional – partindo de uma concepção ocidental de racionalidade.
Para Israel, está claro que essa é uma questão de vital importância. Tanto a posse de armas nucleares quanto os esforços para impedir que outros países da região as adquiram são uma questão de sobrevivência do Estado estabelecido pela ONU em 1948.
Por isso, apesar das declarações de um membro do governo apontando o contrário, Israel mantém sua política de opacidade nuclear. Esta, tem se mostrado bem-sucedida ao longo dos anos, ao passo que o país se mantém, de forma não-declarada, como única potência nuclear do Oriente Médio. Ao menos assim acreditamos.
Fontes
https://www.sipri.org/yearbook/2023
https://www.newsweek.com/amichai-eliyahu-nuclear-threat-draws-outraged-rebuke-saudi-arabia-1840989
https://ciaotest.cc.columbia.edu/olj/sa/sa_00jos01.html
https://www.diplomatie.gouv.fr/IMG/pdf/Osirak.pdf
https://nationalinterest.org/blog/reboot/israel-nearly-went-nuclear-win-1973-yom-kippur-war-172087
https://www.jstor.org/stable/23218033
https://www.theatlantic.com/ideas/archive/2022/07/joe-biden-middle-east-israel-iran/670530/