Damasco caiu: o impacto da ofensiva rebelde na Síria

Por Nicolas Zupardo Dutra e Cinthya Araújo*

“Bem vindo de volta, Bashar Al-Assad”, esse foi o título de um artigo publicado no jornal alemão Deutsche Welle no início de 2023 discutindo sobre a possibilidade do ditador sírio se reinserir na comunidade internacional após o que alguns analistas classificaram como uma vitória na guerra civil que abala o país. Nesse sentido, os acontecimentos recentes alteraram esse paradigma, para o choque de grande parte da comunidade internacional. Em menos de 2 semanas, grupos rebeldes iniciaram uma ofensiva, marchando para o coração do país e tomando a capital, Damasco, e encerrando o governo de mais de 50 anos da família Assad, efetivamente marcando o fim de um capítulo na história do país após 13 anos de um conflito sangrento. Apesar da euforia ao redor do fim do governo de Bashar Al-Assad, enquanto poderá ser celebrado por milhões de pessoas, tanto dentro da Síria quanto no exterior, ainda deixa margem para tentar entender como essa queda ocorreu tão rapidamente e quais as possíveis implicações dela para a região.

A OFENSIVA REBELDE

Membros da oposição armada síria em cima de uma aeronave militar após ganhar o controle do aeroporto militar de Nayrab, na cidade de Aleppo. Fonte: Anas Alkharboutli

Em 27 de novembro, uma coalizão de grupos rebeldes liderada pelo grupo jihadista Hayat Tahrir Al-Sham (HTS), com o envolvimento de grupos apoiados pela Turquia, na forma do Exército Nacional Sírio (SNA, na sigla em inglês), iniciou uma ofensiva denominada de Dissuasão de Agressão, contra forças pró-governo nos arredores de Aleppo. Essa ofensiva em poucos dias resultou na captura da própria Aleppo, a segunda maior cidade do país, sendo seguida pela captura de Hama e Homs, o que, em conjunto com a ressurgência de grupos rebeldes no sul do país, culminou na tomada de Damasco e a fuga de Bashar Al-Assad para Moscou. Esse colapso súbito do governo Al-Assad pode ser explicado por 3 importantes fatores: A gradativa deterioração da posição militar das forças pró-governo, o próprio fortalecimento de forças de oposição, especialmente através da institucionalização das mesmas, e um paradigma internacional favorável aos rebeldes, com os principais aliados do governo sírio estando com sua atenção para outras questões no âmbito internacional.

Primeiramente, é importante compreender que apesar das forças pró-governo possuírem uma vantagem numérica significativa sobre as forças da oposição e ao longo dos últimos anos terem embarcado em um programa extensivo de reforma e modernização, alguns analistas como Gregory Waters e Muhsen Al-Mustafa apontaram uma série de fatores que resultaram em uma lenta degradação tanto da coesão quanto da prontidão militar do Exército Árabe Sírio. Waters apontou como fatores importantes a severa erosão dos padrões de vida de militares sírios, a corrupção extensiva dentro das forças armadas sírias resultando em salários de soldados sendo desviados por oficiais e a falta de recursos humanos devido à transferência de dezenas de milhares de militares para a reserva, o que em conjunto com relatos frequentes de deserções, mostra um cenário crítico dentro do próprio exército sírio, resultando na alienação dos alauítas, que predominam na hierarquia militar e eram uma das bases de apoio do regime. Além disso, é necessário destacar que um aspecto importante das reformas dentro do exército sírio é a mudança doutrinária em relação ao papel da liderança no campo de batalha, com oficiais passando a liderar a partir da retaguarda, o que resultou em oficiais distantes do campo de batalha durante a ofensiva e incapazes de comandar e coordenar suas tropas, facilitando o avanço rebelde.

É importante ressaltar que apesar de ser possível observar uma lenta degradação das forças pró-governo, algo apenas agravado com o colapso econômico da Síria nos últimos anos, é possível observar o contrário dentro de forças da oposição síria. Imediatamente após o congelamento do conflito em março de 2020, o grupo jihadista HTS iniciou uma série de reformas e reestruturações que veriam o grupo se transformando de uma milícia jihadista em uma força paramilitar com capacidades que analistas como Aaron Zelin classificam como “proto-militares”. Atualmente, essas características “proto-militares” tomam a forma de academias militares, comando centralizado, unidades especializadas empregando e desenvolvendo drones, além de uma indústria local de fabricação de armas e munições, um feito surpreendente para uma antiga milícia isolada em uma pequena província do norte da Síria.

Essa transformação foi encabeçada pelo líder do HTS, Abu Mohammed Al-Jolani, que nos últimos anos buscou absorver e unificar os diversos grupos rebeldes em Idlib no Comando de Operações Militares, previamente conhecido como Fatah Al-Mubin, e moldar os mesmos em uma força coesa e unificada, através da criação de academias militares e centros de instrução em Idlib, estabelecendo por sua vez programas de treinamento que visam profissionalizar antigos grupos insurgentes dispersos pela província. Além disso, é importante mencionar o desenvolvimento e a adoção em larga escala, a partir de experimentação prévia durante a guerra civil síria, de drones como uma ferramenta de ataque e reconhecimento. Essa adoção em larga escala ocorreu graças à produção de drones pelos rebeldes em pequenas oficinas instaladas em casas, garagens ou armazéns reformados, recorrendo a impressoras 3D quando não conseguem acessar as peças, o que proporcionou a esses grupos uma capacidade de interdição e ataque francamente inesperada pelas forças pró-governo, possibilitando ataques rebeldes na retaguarda das mesmas.

Nesse sentido, agora que foram observadas as dinâmicas internas que participaram da ofensiva rebelde, é necessário compreender o paradigma internacional que possibilitou o sucesso da mesma, posto que os principais aliados do governo Assad, Irã e Rússia, estavam distraídos com outras questões no âmbito internacional. No caso iraniano, ataques aéreos israelenses na Síria e no Líbano degradaram de maneira significativa a postura dos iranianos e de seus proxies na região, algo particularmente sentido entre as forças pró-governo, que possuía como um componente essencial milícias xiitas apoiadas, lideradas e armadas pela Guarda Revolucionária Iraniana. Essas mesmas milícias desempenharam um papel crucial em ofensivas do regime sírio em anos anteriores, inclusive participando da defesa de Aleppo e Hama durante a ofensiva rebelde, entretanto, a degradação dessas mesmas redes de apoio iranianas possivelmente as tornou muito menos eficazes do que em anos anteriores. No caso russo, a guerra na Ucrânia forçou o país a pospor suas unidades na Síria, deixando seu contingente sírio com menos aeronaves, munições e pilotos, afetando a capacidade do mesmo de responder a crises locais. Esse paradigma resultou em unidades sírias, que durante anos receberam apoio, especialmente apoio aéreo russo, fossem forçadas a conduzir um esforço defensivo sério por conta própria.

Quando analisados em conjunto, é possível observar um panorama precário para forças pró-governo imediatamente antes do início da ofensiva rebelde. Entretanto, um acontecimento que se desenrolou ao longo da ofensiva acelerou significativamente a queda do governo Assad e pode possuir implicações para o futuro da Síria: a ressurgência de forças rebeldes no sul do país. Enquanto forças rebeldes marcharam sobre Hama e Homs, o governo sírio optou por reforçar o front com unidades mais confiáveis politicamente como a Guarda Republicana, a 25ª e 4ª divisões, e milícias xiitas, enquanto a região ao redor da capital era guarnecida com conscritos sunitas desmoralizados. Entretanto, após a queda de Hama, células rebeldes, até então dormentes, iniciaram ataques contra forças pró-governo na província de Daraa, causando uma onda de deserções entre tropas do governo sírio, incluindo lideranças como Ahmed Al-Adwa, antigo comandante rebelde anistiado pelo governo Assad. Esse conjunto de grupos rebeldes coalescem sobre a liderança de Al-Adwa e nos dias seguintes avançaram contra Damasco, acelerando a queda do regime de Bashar Al-Assad. Agora que temos um panorama dos eventos e acontecimentos por trás desse processo, é necessário examinar quais são as consequências deles.

O FUTURO DA SÍRIA

Forças de segurança do governo de transição sírio patrulhando Damasco após a queda de Bashar Al-Assad. Fonte: Governo de Salvação Sírio.

Primeiramente, deve ser enfatizado que os acontecimentos na Síria são recentes com desdobramentos imprevisíveis em fluxo, entretanto, existem uma série de questões latentes com implicações significativas para a região que precisam ser abordadas. Entre estas, é possível destacar algumas: o futuro do governo sírio pós-Assad e a possibilidade da continuação do conflito no país. A principal delas é o futuro do governo sírio pós-Assad, pois o grupo jihadista HTS, que foi a principal força por trás da queda do mesmo, se constituiu na Síria como um ramo local da Al-Qaeda sobre o nome Al-Nusra em 2013, até uma quebra com a Al-Qaeda em 2016 e a criação do grupo HTS de fato em 2017, que recebeu a designação de organização terrorista até os dias de hoje por uma série de países, incluindo Estados Unidos, Rússia, Turquia e a União Europeia.

No entanto, os esforços do HTS nos últimos anos para se distanciar de sua designação como organização terrorista são perceptíveis. Sobre a liderança de Jolani, ocorreu um afastamento do jihadismo global de organizações como Al-Qaeda, com o próprio HTS eliminando células da Al-Qaeda em seu território, enquanto o mesmo busca projetar uma orientação nacionalista síria, com o próprio Jolani se apresentando como um ator capaz de exercer governança local, fornecer segurança e se envolver de maneira pragmática com países no seu entorno. Se torna um pouco mais clara essa tentativa de se distanciar de um passado não tão distante com o terrorismo, principalmente com os órgãos da administração civil síria se voltando para a tida transição pacífica de poder.

Essa governança local tomou a forma do estabelecimento do Governo de Salvação Sírio, a administração civil tecnocrática das áreas controladas pelo HTS, que é a tentativa por parte do Jolani de estabelecer instituições burocráticas dentro de sua região com a capacidade de gerenciar e administrar os recursos da mesma de maneira eficiente. Atualmente o mesmo Governo de Salvação Sírio é o principal grupo por trás do novo governo transicional sírio estabelecido nos últimos dias com a missão de restabelecer e reformar instituições públicas, com o prazo para a conclusão dessa transição sendo 1 de março de 2025.

Deve ser enfatizado que o grupo ainda possui inclinações jihadistas e não acredita em conceitos como democracia liberal, com essas mesmas instituições em Idlib tomando um caráter autoritário, o que deixa um questionamento sobre a forma que o governo sírio tomará após esse período de transição, especialmente em relação às promessas de pragmatismo de figuras como o Jolani.

Além disso, deve ser destacado que ainda existe a possibilidade de conflito interno na Síria mesmo após a remoção de Assad, devido ao número de grupos armados dentro do país e a posição frágil do novo governo de transição. Nesse sentido, existe o risco de fraturas dentro da coalizão rebelde, especialmente entre figuras como Jolani e Al-Adwa, que mesmo após os últimos dias terem ocorrido diálogos e reuniões entre ambos os líderes sobre o estabelecimento de um comando militar unificado, ainda existe. Deve ser ressaltado também as tensões no norte sírio, especificamente ao redor das Forças Democráticas Sírias (SDF) que oferecem possíveis riscos da continuação do conflito sírio. As Forças Democráticas Sírias são um conjunto de milícias autônomas majoritariamente curdas que nos últimos anos alcançou fama internacional pelo seu combate ao Estado Islâmico. Nesse sentido, as SDF enfrentam pressão por duas razões.

O principal deles se deve a Turquia e seus proxies dentro da Síria, o Exército Nacional Sírio, que temem que uma milícia autônoma curda com controle de um território significativo possa servir de abrigo para grupos insurgentes curdos dentro da própria Turquia como o PKK, se engajando em diversas ofensivas militares contra as SDF, inclusive, nas duas últimas semanas enquanto o governo Assad entrava em colapso, o SNA tomou as cidades de Manbij e Tel Rifaat das SDF em combates pesados. Ainda, as SDF sofrem atritos entre grupos árabes na sua composição e a liderança curda, que inicialmente foram absorvidos pela milícia curda durante o combate ao Estado Islâmico, enquanto a SDF tomava território do mesmo, com esses grupos árabes aceitando esse controle por acharem ele preferível ao governo Assad, a única alternativa real na época. Entretanto, com o surgimento de um novo governo em Damasco, diversos protestos contra a presença das SDF ocorreram nesses territórios, culminando no abandono de Deir ez Zor pela milícia curda e tensões sobre o controle de Raqqa.

Atualmente, negociações entre o novo governo transicional em Damasco com as Forças Democráticas Sírias e a Turquia estão acontecendo sobre o status da milícia no futuro da Síria, mas no dia da escrita desse artigo, 12 de dezembro, é difícil afirmar o que de fato acontecerá ao longo dos próximos meses. De maneira simples, após essa exposição, é fácil observar que a Síria está em uma encruzilhada histórica, com um caminho difícil a ser percorrido nos próximos anos para curar as diversas feridas infligidas no país nos últimos 13 anos de conflito interno. O governo da família Assad marcou a história da Síria e com o fim deste capítulo, a esperança é que os próximos sejam escritos com menos sangue.

*Nicolas Zupardo Dutra, graduando em Relações Internacionais pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB), membro do Grupo de Pesquisa em Estudos Estratégicos e Segurança Internacional (GEESI-UFPB).

** O presente artigo tem por base informações obtidas até o dia 12 de dezembro.

REFERÊNCIAS

https://syriarevisited.substack.com/p/the-slow-collapse-of-the-syrian-army

https://carnegieendowment.org/middle-east/diwan/2024/12/anatomy-of-a-military-fall?lang=en

https://www.ft.com/content/aaa80cd0-d75e-41cf-811d-20e6ecd230f8

https://warontherocks.com/2024/12/the-patient-efforts-behind-hayat-tahrir-al-shams-success-in-aleppo/

https://www.ft.com/content/7f1f2cfe-9811-471e-85ec-30ceda4140a4

https://www.bbc.com/news/articles/ckg9z3r2xp9o.amp

https://syriadirect.org/what-was-behind-daraas-rapid-fall-and-did-hts-participate/

https://carnegieendowment.org/middle-east/diwan/2024/12/eastern-syria-after-assad?lang=en