Às 11:35 do sábado (15), a região lateral à catedral de São Sava, em Belgrado, Sérvia, parecia deserta. Seria curioso – dada a importância da catedral como o maior templo ortodoxo da Europa e sua centralidade na cidade – não fossem os protestos. Andávamos eu e meu grupo pelas ruas silenciosas, até nos aproximarmos da intersecção conhecida como “Autokomanda”, um dos quatro pontos da cidade em que os protestos começaram (os outros foram praça “Republik”, “Gradska Opština Novi Beograd” [prefeitura da cidade de Nova Belgrado] e próximo ao monumento do criador da língua sérvia moderna, Vuk Karadžić). Aos poucos, a tensão e apreensão generalizadas se dissolviam em entusiasmo em meio ao som de cornetas, apitos e cantos clamando “Pumpaj!” (algo como “Pump it” do inglês, uma referência às bombas de encher pneu e ao ato de se estimular). As estimativas variam largamente, mas é seguro dizer que ao menos trezentas mil pessoas estiveram presentes, marcando esse como o maior protesto em número de participantes da história da Sérvia.
Protestantes vieram de todos os lugares do país, alguns caminhando até 300km para marcar presença, dado que vários ônibus e trens até Belgrado foram cancelados. Foram recebidos com comida, cuidados médicos e muita empolgação. Próximo ao meu grupo estava Bogdan, um senhor de 65 anos que andou de Niš, no sul do país, até Belgrado, levando cinco dias. Bogdan era veterano do exército e comentou que caminhou pelo sonho de ver os netos crescerem em um país verdadeiramente livre, com instituições fortes.
O protesto que ficou conhecido como “15 za 15” (ou 15 para 15) homenageia no nome os 15 mortos pela queda de parte da cobertura de concreto da estação ferroviária de Novi Sad, a segunda maior cidade do país. A seguinte impunidade dos responsáveis, a suposta arrogância nas respostas do governo, bem como as alegadas corrupção e redução inadequada de custos pelo comprometimento da qualidade e segurança das obras públicas foram os estopins para os protestos estudantis que se iniciaram em 9 de março e escalonaram até este “15 za 15”.
Os protestos são liderados por universitários, que o fazem de forma democrática, em plenários, e se organizam em pequenos comitês específicos para cada atividade, assim mantendo o trabalho prático e rápido. Suas demandas são: (1) tornar públicas todas as documentações referentes a reconstrução da estação ferroviária em Novi Sad; (2) anistia para todos que foram presos ou detidos em razão das manifestações; (3) apresentação de acusações criminais contra aqueles que atacaram os protestantes; (4) aumentar em 20% o orçamento das faculdades no país.
As manifestações são pacíficas por parte dos estudantes, que inclusive coletam o lixo ao fim dos protestos, mas não são recebidas da mesma maneira. Enquanto fazíamos os 15 minutos de silêncio pelas 15 vítimas, após caminhar da “Autokomanda” até o Parlamento (local em que os protestantes dos quatro pontos se encontrariam, com um adendo para a praça “Slavija”, caso as ruas ao redor do parlamento não comportassem tamanho número de participantes), fomos recebidos com o que aparentava ser um canhão sônico (algo negado pelo partido em governo SNS, mas registrado em vídeo e foto), que causou intenso desnorteamento e enjoo imediatos naqueles mais próximos, e pânico no restante de nós. Protestos anteriores tiveram casos de atropelamento de estudantes e violência policial, e mesmo nesse, um pequeno grupo supostamente pró-governo (chamados pelos protestantes de “ćaci”, uma referência a um famoso grafite pró-governo que escreveu “đaci”, ou “pupilos” errado ao propor que “voltassem para a escola”) incitava a violência.
Como argumentou um artigo no Zeit, jornal alemão, as manifestações do povo sérvio são por transparência governamental, instituições fortes, “accountability”, anticorrupção e um estado de direito eficaz. Objetivos buscados com respeito à propriedade pública e privada, comprometimento com a não-violência e não-discriminação. Ao que tudo indica, objetivos nobres buscados de forma nobre, completamente alinhados com os valores e missão da União Europeia (UE). Ainda assim, silêncio por parte da UE, que parece tratar de outros assuntos e se esquecer dos sérvios.
Poderia-se argumentar que a guerra de agressão Russa na Ucrânia demanda recursos e atenção da UE, e como os recursos e atenção são limitados, a Sérvia precisa ser esquecida. Sem querer relativizar o horror do que transcorre na Ucrânia ou a importância do evento como o arauto de uma nova ordem, mas caso essa fosse a argumentação, seria preciso lembrar que hoje a UE sofre do mesmo com os Estados Unidos, que focando seus recursos na contenção da China, se “esquece” dos aliados na Europa. A UE argumenta a importância estratégica que continua a ter, e que valores não podem ser negociados, o que curiosamente é o mesmo que se diria do país parceiro candidato à adesão à UE, a Sérvia. Além disso, fosse essa a raiz do esquecimento, em outros períodos de maior estabilidade geopolítica, a região teria sido lembrada, o que não aconteceu.
Recentemente, analistas de política internacional explicavam o conflito na Ucrânia em TV aberta, propondo que esse era o primeiro conflito em território europeu desde a Segunda Guerra Mundial. Enquanto assistia, notava o completo esquecimento das guerras da Bósnia (1992-1995) e Kosovo (1998-1999), esquecimento já habitual nas análises ocidentais, mas justamente por sua cotidianidade que se faz conjecturar. Afinal de contas, dada a existência do Acordo de Karađorđevo entre Sérvios e Croatas (portanto entre dois países independentes, não um único), a guerra da Bósnia é não apenas uma guerra internacional, mas a primeira guerra de agressão em território europeu desde a Segunda Guerra Mundial. Com 200 mil mortos, 1 326 000 refugiados e exilados e casos de genocídio (ainda não aceitos por alguns países), a Guerra da Bósnia parece ser muito importante para ser esquecida.
Similarmente, a Guerra de Kosovo contou com intervenção estadunidense e bombardeamentos da Sérvia pela Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), além de ter sido um conflito não resolvido – várias das causas do conflito permanecem, e a “paz” foi atingida pela ameaça de uma superpotência, a mesma que agora pretende deixar o continente Europeu para se defender sozinho. Curiosamente, as ações mandadas pelo então presidente Slobodan Miloševic durante as duas guerras, associadas à instabilidade de seu regime, foram o que fomentou o movimento estudantil não-violento “Otpor!” (“Resistência!”) a não apenas depô-lo e enviá-lo para julgamento pela corte de Haia durante a revolução Bulldozer, mas também propiciou aprendizados suficientes para que membros do “Otpor!” pudessem treinar os grupos que resistiram pacificamente em outras revoluções. Essas revoluções foram posteriormente chamadas de revoluções coloridas, e uma delas foi precisamente na Ucrânia, contra o regime pró-Rússia.
Ainda sim, apesar de todas as conexões diretas e indiretas com a atual guerra na Ucrânia e da vasta importância dessas guerras, a região é esquecida, assim como o foi durante os atuais protestos na Sérvia. Novamente, o artigo do Zeit propõe razão: lítio. O lítio é um metal de extrema importância para a eletrificação da economia, e um que a Sérvia possui em abundância. Com o “Green Deal”, uma série de leis e regulamentos que visam maior sustentabilidade, a UE tornou muito custoso o processo de extração do material em seu território, já que os danos ambientais são de grande ordem. Eis que, em julho de 2024, um acordo é assinado entre Sérvia e UE que fomenta a extração do minério em território sérvio. Locais como o vale de Jadar são explorados por companhias como a Rio Tinto e com isso a contaminação do ar, do solo e das fontes de água usadas pela agricultura local e pela população aumenta exponencialmente. Fazia sentido manter a Sérvia fora da UE para que o “Green Deal” não se aplicasse a ela e com um governo que facilitasse a exploração.
Uma outra explicação, infelizmente muito conhecida por nós latino-americanos, é a visão ocidental de que um governo não democrático mas cooperativo em suas proximidades é melhor que instabilidade política. Vivemos isso com o controle estadunidense de Cuba e Puerto Rico em 1898 (no caso de Puerto Rico até hoje), a retirada forçada do presidente da Nicarágua em 1909 também pelos estadunidenses, o apoio logístico e invasão militar coberta dos EUA em 1954 para a deposição de Jacobo Arbenz em Guatemala, o apoio logístico dos EUA à ditadura militar brasileira em 1964, e apesar de poder continuar a lista com vários outros exemplos latino-americanos, poderíamos aí também incluir o governo Vucić, apoiado pela UE.
Apesar de todo o esquecimento da UE, o povo sérvio faz uma linda caminhada. Que seja frutífera, ainda que não indolor.
Foto do canhão sônico que o governo nega ter usado em cima do carro preto. Fonte:https://x.com/MarinikaTepic/status/1902285248492154901?t=E8QwlkikcNRrxRJWL1El2w&s=19
Fotos do protesto “15 za 15”. Fonte: arquivo próprio.
Símbolos de uma guerra não resolvida. Fonte: arquivo próprio.
Símbolos do protesto. Fonte: arquivo próprio.
Referências
https://www.zeit.de/politik/ausland/2025-03/serbien-demonstrationen-eu-vucic