O texto procura analisar como existe uma relativização de direitos para imigrantes e residentes legais nos EUA com a nova administração Trump. Para isso, utiliza-se o caso de Mahmoud Khalil.
Durante as últimas semanas, o mundo assistiu aos grandes protestos que tomaram as ruas de Nova Iorque clamando liberdade para Mahmoud Khalil, uma das vozes do movimento estudantil contra a guerra em Gaza, iniciada após os ataques de 7 de outubro de 2023 do Hamas contra Israel. No entanto, o que a prisão de Khalil pode significar para o futuro, não só dos imigrantes, mas também para o dos cidadãos americanos?
Mahmoud Khalil é palestino, nascido na Síria e mora nos Estados Unidos desde 2022, devido à sua busca pelo título de mestre na Universidade de Columbia. Além disso, é casado com uma estadunidense – grávida de oito meses – e possui o green card, ou seja, o documento que permite a imigrantes morarem e trabalharem no país de forma legal.
O caso de Mahmoud Khalil está diretamente ligado aos protestos estudantis contra a guerra em Gaza e ao financiamento dos Estados Unidos a Israel. De acordo com o portal Council on Foreign Relations, no início do conflito entre Israel e o Hamas, os EUA concederam 12,5 bilhões de dólares em assistência militar direta a Israel. O governo israelense, ademais, tem sido acusado de genocídio por diversos atores internacionais, incluindo a Organização das Nações Unidas, devido às violações de direitos humanos contra os palestinos, conforme denunciado pelo diplomata palestino Riyad Mansour. Como uma voz ativa contra essas ações, Khalil foi preso pelo U.S. Immigration and Customs Enforcement (ICE) em 8 de março, segundo a BBC News.
COMO ISSO COMEÇOU?
As últimas eleições norte-americanas resultaram na vitória de Donald Trump, tornando-se o novo presidente dos Estados Unidos da América, no dia 20 de janeiro de 2025. Durante sua campanha presidencial, notou-se uma série de discursos que caracterizavam suas propostas para o novo mandato. Temas como a disputa comercial com a China, o protecionismo econômico, a guerra Rússia-Ucrânia e a anti-imigração traziam uma série de promessas que o candidato republicano proferiu durante os discursos e entrevistas.
Abertamente, Trump declarava que a política anti-imigratória seria uma de suas principais medidas e que ela voltaria com mais intensidade do que em seu último mandato, dando continuidade às diretrizes do projeto Make America Great Again – MAGA.
Como prometido em sua campanha, os Estados Unidos vêm praticando diariamente uma série de deportações de imigrantes ilegais que estão em seu território. Para o contexto americano, deportações não são algo novo, já que governos anteriores, como o de Biden, também as praticavam largamente. Contudo, a forma com a qual essas deportações vêm sendo conduzidas tem rendido tensões diplomáticas ao país. Esse foi o caso dos governos brasileiro e colombiano – caso evidenciado pela carta aberta de Gustavo Petro a Trump, que expressa repúdio à política de deportação que vem sendo executada.
Ademais, o Itamaraty, Ministério das Relações Exteriores do Brasil, se pronunciou em relação à deportação de 88 brasileiros: “O uso indiscriminado de algemas e correntes viola os termos de acordo com os EUA, que prevê o tratamento digno, respeitoso e humano dos repatriados”, destaca a Agência Brasil. Acordo esse que foi assinado pelo próprio presidente Donald Trump em seu primeiro mandato, em 2018, juntamente com sua contraparte, o então presidente Michel Temer, informa a Agência Brasil (2025).
Além disso, também é vista a brutalidade e falta de ética que impactam diretamente a vida dos deportados, que, por muitas vezes, são presos sem dignidade e separados de suas famílias. Um dos casos considerados aborda uma família (pais são imigrantes, enquanto filhos são cidadãos americanos, com exceção de um) que foi presa enquanto levava sua filha de 10 anos – cidadã estadunidense – para realizar um tratamento contra o câncer cerebral. Durante a busca por tratamento, foram presos e deportados para o México, deixando para trás um de seus filhos – de 17 anos – nos EUA.
Quando questionado sobre como solucionar o problema de deportação de membros familiares com status migratórios mistos (em que alguns membros são cidadãos ou residentes legais e outros são indocumentados) sem separar pais de filhos, Tom Homan, o “czar da fronteira” de Trump, afirmou friamente: “é claro que há uma maneira – as famílias podem ser deportadas juntas”, segundo reportagem do El Pais. Evidencia-se, assim, que as palavras proferidas por Homan exprimem uma grande frieza da nova administração quanto às questões migratórias.
O QUE É A CIDADANIA POR NASCIMENTO E O GREEN CARD?
De acordo com a 14ª emenda da constituição dos EUA, uma pessoa pode ser considerada cidadã estadunidense de acordo com dois princípios fundamentais: jus soli e jus sanguinis. O primeiro garante a cidadania à maioria dos indivíduos que nascem em solo americano (excluem-se casos de pessoas nascidas nos EUA filhos de chefes de estado estrangeiros ou diplomatas estrangeiros). Já o segundo garante a cidadania estadunidense para indivíduos que nascem fora do país, baseado na linhagem de seus pais e ancestrais. Contudo, na maioria dos países da Europa, o jus sanguinis é a norma. Por essa razão, Donald Trump, desde seu primeiro mandato, tem questionado o direito à cidadania pelo nascimento.
É importante relembrar que Donald Trump tentou modificar, por meio de um decreto, a décima quarta emenda, adicionada em 1868, que diz claramente: todas as pessoas nascidas ou naturalizadas nos EUA têm direito à cidadania. Logo após tomar posse, Donald Trump procurou alterar o dispositivo, de forma que filhos de imigrantes ilegais ou que portam vistos temporários não sejam considerados cidadãos americanos. A medida visa atingir ainda aqueles que praticam o chamado “turismo de nascimento”, praticado por pessoas que vão aos EUA somente para dar à luz, garantindo assim a cidadania para seus filhos, uma prática popular entre brasileiros, como mostra reportagem da BBC (2025). No entanto, o juiz John Coughenour suspendeu indefinidamente o decreto intitulado “Protegendo o significado e o valor da cidadania Americana”, alegando que se tratava de uma decisão inconstitucional. Em resposta, o presidente decidiu levar o caso à Suprema Corte dos Estados Unidos (SCOTUS), ainda que o texto constitucional seja explícito.
Em outra seara, destaca-se o status dos portadores do green card, que podem residir e trabalhar permanentemente nos EUA. Apesar de serem residentes legais, não gozam dos mesmos direitos que os cidadãos americanos. Por exemplo, residentes legais, caso decidam viajar para o exterior, poderão passar no máximo um ano fora do país. Ademais, um residente legal pode ser deportado, legalmente, caso cometa crimes ou exponha a nação à insegurança. Essa foi a alegação feita em relação a Mahmoud Khalil. Contudo, ele não foi acusado formalmente de um crime, o que torna seu caso excepcional para alguém que tem um green card. Ademais, Marco Rubio (Secretário de Estado dos EUA) não deixou claro em suas declarações como as ações de Khalil poderiam estar prejudicando a segurança nacional. Além disso, o secretário declarou em sua rede social X que serão revogados todos os green cards e vistos de simpatizantes do Hamas, para que sejam deportados.
DO QUE VALE A PRIMEIRA EMENDA?
Um dos resultados da prisão de Mahmoud Khalil foi o grande debate sobre a primeira emenda constitucional dos EUA, que garante a liberdade de expressão, de imprensa e a separação entre a Igreja e o Estado. De fato, Khalil não chegou a cometer nenhum crime, tanto que não foram prestadas queixas contra ele. O que ocorreu, na realidade, foi a alegação de que o ativismo político de Khalil pode impor um risco à segurança nacional, de acordo com burocratas do Departamento de Segurança Interna dos EUA.
Existem, portanto, alegações por parte de Trump e outros burocratas, como Marco Rubio, de que ele possui ligações com o Hamas e que é um simpatizante ativo de uma campanha antissemita no campus da Universidade de Columbia. Além disso, outros ativistas israelenses dessa instituição de ensino alegam que Mahmoud é o líder da Universidade Columbia contra o Apartheid (CUAD), uma coalizão de grupos estudantis que reivindica o fim de laços entre a universidade e Israel, além do cessar-fogo urgente em Gaza. No entanto, ele nega e diz que atuou somente como um porta-voz entre os manifestantes e a universidade.
Considerando os fatos acima, é interessante relacionar posições oficiais do governo com uma retórica que esbanja hipocrisia e cinismo. É vista a perseguição de um estudante palestino que habita nos EUA, casado com uma americana e prestes a tornar-se pai, baseada em argumentos que afirmam o apoio de Khalil ao Hamas e que ele possui tendências antissemitas. No entanto, as mesmas críticas não são direcionadas, por exemplo, para Elon Musk, que atualmente dirige o departamento de Eficiência Governamental dos EUA. Como foi observado pelo mundo inteiro, Musk realizou uma saudação com o braço esticado no evento da posse de Donald Trump e pouco sofreu consequências. Além disso, por que não relembrar do apoio aberto do sul-africano ao partido de extrema-direita alemão, AfD, que usa slogans nazistas em suas campanhas? Segundo a BBC (2024), Björn Höcke, líder do partido, foi acusado de proferir palavras que referenciavam a Sturmabteilung, uma organização paramilitar do partido Nazista. Mais que isso, desde sua campanha presidencial, Trump tem relações com grupos antissemitas da direita norte-americana, considerados “cruciais” para a sua coalização governamental.
Vale salientar que o próprio Mahmoud Khalil já afirmou, antes do ocorrido, que não existe lugar para antissemitismo em suas manifestações políticas. Inclusive, os protestos ensejados pela Universidade de Columbia são frequentados por estudantes judeus que não apoiam o regime sionista de Israel.
QUEM PAGA O PREÇO DA HIPOCRISIA?
O novo governo Trump não mede esforços para proferir retóricas que celebram a austeridade fiscal, o tradicionalismo, o nativismo, a anti-imigração, entre outras características. Em que pesem os fatos, a administração Trump pode ter utilizado Mahmoud Khalil para energizar seu discurso oficial contra imigrantes.
Além disso, existe um esforço por parte da nova administração em utilizar Khalil como um bode expiatório, ou seja, para justificar as políticas de austeridade fiscal que o governo pretende realizar em relação ao financiamento de universidades. Nesse sentido, Trump anunciou um corte de 400 milhões de dólares da Universidade de Columbia, alegando que “a instituição falhou em combater o antissemitismo no campus”. Contudo, uma vez que Khalil não utiliza discursos antissemitas, o argumento pela política austera não é fundamentado na realidade. O antissemitismo, vale ressaltar, está presente em várias parcelas da população norte-americana, como os conservadores, grupos nazistas e milícias norte-americanas, como o grupo “Proud Boys”. No entanto, vale realçar que o grupo de Mahmouh Khalil (CUAD) não entoa ideologias antissemitas. Pelo contrário, protestam contra o Estado israelense e a forma como vem conduzindo a sua guerra contra o Hamas.
É importante notar que o republicano possui uma retórica populista, que por muitas vezes se alinha às tendências que procuram atacar as instituições de ensino, seus professores e investigadores, de acordo com o veículo de notícias The Guardian. Tomemos, por exemplo, o período da Covid-19, quando Trump agiu de forma contrária ao que os investigadores e experts da saúde (muitas vezes relacionados às instituições de ensino superior) recomendavam, segundo o veículo de notícias New York Times. Além disso, recentemente, Trump assinou uma ordem executiva que inicia um processo de desmantelamento do Departamento de Educação dos EUA.
Um dos debates mais importantes que emergem do fato, no entanto, é a relativização da “liberdade de expressão”. Garantida pela primeira emenda dos EUA, a liberdade de expressão é um direito que se estabelece para garantir que a sociedade tenha direito a exprimir suas opiniões, garantindo assim que o regime democrático seja perpetuado de forma eficiente. Não obstante, parece que, para os detentores do green card e residentes temporários, criticar a política externa do país pode tornar-se um motivo de deportação.
Os ataques aos manifestantes, que pedem o fim do apoio dos EUA ao regime sionista de Israel e o cessar-fogo imediato em Gaza, alinhados à possibilidade de deportação de Mahmoud Khalil, apontam que, de fato, “liberdade de expressão” é um direito – na visão da nova administração – parcial.
Outrossim, é importante destacar um caso mais recente, muito similar ao de Mahmoud Khalil, no qual uma estudante turca foi presa sob as mesmas alegações – prática de antissemitismo na universidade – segundo matéria da BBC News (2025). Rumeysa Ozturk é uma das manifestantes em protestos pró-Palestina e é doutoranda na Universidade de Tufts, que foi informada que Ozturk teve seu visto revogado na última quarta-feira (26/03). Vale salientar que a estudante é uma residente legal dos Estados Unidos.
Portanto, os fatos demonstram uma tentativa do governo republicano em silenciar seus opositores, ou seja, é possível que os diversos grupos de oposição (compostos por imigrantes e estadunidenses) possam sofrer censura, assim como sofreu Mahmoud Khalil. Assim, pode-se dizer que os EUA vivem um momento de relativização de direitos.
O texto foi redigido sob supervisão da editora do DPolitik, Maria Mont’ Serrat Bomfim.
Referências
https://iworld.com/en/programs/childbirth-in-the-usa
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c9w58wnnr7po
https://www.scotusblog.com/2025/03/trump-asks-supreme-court-to-step-in-on-birthright-citizenship/
https://www.un.org/unispal/document/palestine-letter-08oct24
https://www.bbc.com/news/articles/c79zxzj90nno
https://www.britannica.com/topic/Proud-Boys
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cy4y2n3357no
https://www.bbc.com/news/articles/c7vdnlmgyndo
https://twitter.com/marcorubio/status/1898858967532441945
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cz0lye4ger0o