HISTÓRICO DA SEGURANÇA ENERGÉTICA EM UM MUNDO INSEGURO

Com a chegada da Cúpula Internacional sobre o Futuro da Segurança Energética em Londres – nestes dias 24 e 25 de abril – dúvidas a respeito do estado atual da segurança energética global emergem. Em especial, a atual situação da (des)ordem geopolítica vem à mente, o que é refletido pela lista de temas do evento: guerra russa na Ucrânia, inteligência artificial, acessibilidade, minerais críticos, mudanças climáticas, investimentos, zero emissões, crise global de energia, subsídios aos combustíveis fósseis, entre outros. A discussão sobre esses temas é inesgotável, e pode seguir por uma miríade de caminhos, vistos por diversos prismas. A atual coluna busca propor um panorama histórico geral desses eventos, para que nossos leitores possam se utilizar de contexto e noções de processo ao analisarem por si mesmos o transcorrer dessas discussões e sua importância.

Nesse sentido, a coluna busca traçar um panorama histórico dos eventos principais responsáveis pela atual situação da segurança energética global. Como é comum nesse tipo de análise, o foco se dá nos países e eventos que construíram e modificam substancialmente a atual configuração geopolítica. Isso não é dizer que a análise de eventos em países menores ou menos poderosos não é importante, mas sim que entender o macro funcionamento do sistema de relação interestatal passa inevitavelmente por entender eventos e processos naqueles que construíram e modificam esse sistema.   

O fim da Segunda Guerra Mundial (II GM) marcou uma mudança substancial no continente europeu. A passagem da competição pela hegemonia – ditar as regras do sistema internacional, no qual a maior parte da interação entre países acontece – da Europa Ocidental para o binômio EUA-URSS significou o fim de processos históricos motores dos principais conflitos ocidentais ao longo da história – como a Guerra dos Cem Anos, Guerra Franco-Prussiana, Primeira Guerra Mundial, etc. Sem precisar competir entre si, Alemanha, Reino Unido e França começaram a cooperar profundamente.

Com a defesa assegurada pelos estadunidenses, os europeus ocidentais puderam reverter os gastos em segurança em gastos sociais. É portanto do fim da II GM o desenvolvimento dos Estados de Bem Estar Social, esse conjunto de políticas que visava a proteção dos mais frágeis na sociedade, além da melhoria da qualidade de vida da população como um todo – educação gratuita ou muito barata, saúde de fácil acesso, direitos das famílias, seguros-desemprego, etc. 

O excedente também permitiu o continuado desenvolvimento econômico, que atrelado a cooperação possível graças a paz, resultou em interdependência – os países da Europa Ocidental atrelaram suas economias, dificultando ainda mais a operacionalização de guerras entre si no futuro. Um exemplo desse processo foi a Comunidade Europeia do Carvão e do Aço (CECA), que atrelava duas economias que até então competiam, Alemanha e França, focando em dois elementos necessários para a guerra na época – carvão e aço. A Alemanha ficaria dependente do carvão da França, e a França do aço alemão. A segurança e os recursos naturais eram diretamente atrelados. 

É produto desse período a formulação moderna dos valores europeus – por vezes panfletados como valores antigos e arraigados nas sociedades europeias – como o fomento ao livre-mercado, democracias liberais, Estados-de-Direito e etc. O que alguns escritores chamam de os anjos da nossa natureza, a diminuição de conflitos interestatais e intraestatais pelo mundo, mas especialmente na Europa, foi conquistada pela proteção estadunidense e sua competição com a URSS.   

A subsequente divisão da Alemanha produziu as perfeitas condições para que a URSS pudesse aumentar a dependência que a Alemanha teria de si, dependência essa que continuava até recentemente na forma de importação de energia proveniente da Rússia. Apesar do exemplo Alemão ser mais extremo, outros países europeus, movidos por noções de livre mercado e democratização através do desenvolvimento, passaram a também depender das importações russas de energia.   

Como o caso entrou para a história, Willy Brandt, Ministro das Relações Exteriores da Alemanha Ocidental na época – e mais tarde chanceler – via a construção dos oleodutos que ligavam Bonn a Moscou como uma oportunidade para a interdependência, defendendo a ideia de Wandel durch Annäherung (mudança por meio da aproximação). De forma semelhante ao que os europeus ocidentais haviam realizado anteriormente, Brandt acreditava que a interligação das economias germano-soviéticas significaria o fim de qualquer conflito futuro entre as duas nações. Nixon temia que os oleodutos fossem uma forma de “afastar os alemães da OTAN”, Carter impôs boicotes à venda de tecnologia de oleoduto para os alemães, e Reagan impôs controles de exportação sobre equipamentos de oleoduto. Tudo em vão. Desnecessário dizer que Brandt se provou equivocado, confundindo causa e consequência – até então, a interdependência havia sido uma consequência da paz, e não sua causa.

Os anos se passaram e a CECA se expandiu, desenvolveu e se misturou a outros acordos até se tornar a União Europeia (UE). Os valores europeus se consolidaram e foram socializados – internalizados – por todos os Estados-membros através de uma série de demandas necessárias para a entrada desses no bloco, além de práticas e burocracias continuadas. Como consequência lógica desses valores e práticas, em 2020 o Green Deal foi colocado em ação. Essencialmente, o Green Deal é um agrupamento de políticas da Comissão Europeia com o intuito de tornar a UE neutra em emissão de carbono até 2050. Na prática, o Green Deal revisa cada lei existente baseando-se em critérios climáticos e introduz legislação adicional que versa sobre economia circular, re- ou de-florestamento, agricultura, renovação verde de edifícios, biodiversidade e inovação. 

O Green Deal foi o carro-chefe da prática dos valores europeus até fevereiro de 2021. Como uma resposta direta à guerra Russa na Ucrânia e a já citada dependência que os europeus ocidentais desenvolveram da energia russa, a UE introduziu a Autonomia Estratégica Aberta (AEA). Autonomia por se tratar de uma estratégia que visava a diminuição da dependência que os membros da UE tinham da energia russa. Estratégica por se focar não em uma total autonomia – algo como um protecionismo ou nacionalismo econômico – mas sim em uma autonomia referente a atores específicos – em especial a Rússia – e em agendas específicas – fontes de energia, por exemplo. Aberta por propor que, apesar de buscar se defender, a UE ainda acreditava nos valores do livre-mercado, abertura para o mundo, etc.

A AEA foi o pivô de uma transformação na prática dos valores europeus. Não mais o farol do liberalismo e do livre-mercado, mas também não completamente nacionalista ou protecionista, a UE vivia uma luta interna entre essas duas identidades. As ondas de autocratização pelo mundo e a guinada para a extrema-direita em muitos dos Estados-membros intensificou ainda mais as contradições e debates internos ao bloco.

Do outro lado do Atlântico-Norte, os EUA viviam seu próprio pivô. Desde os anos 2000, a China vinha adotando táticas econômicas do liberalismo neoclássico, apesar de manter uma política por grande parte tecnocrata e ditatorial, crescendo a níveis que lhe permitiam a competição com os EUA. Sua capacidade de competir foi ainda mais fortalecida pela crença de Bill Clinton de que uma China participante do mercado global seria uma China a caminho da democratização. Em suas próprias palavras: “Agora, não há dúvida de que a China tem tentado reprimir a internet. (Risadas.) Boa sorte! (Risadas.) Isso é mais ou menos como tentar pregar gelatina na parede. (Risadas.)” Desnecessário lembrar ao leitor que a China cresceu e se desenvolveu, criou sua própria internet censurada pelo governo e nunca se democratizou. Pregou gelatina na parede.

A preocupação com o desenvolvimento chinês incitava a volta de estratégias de contenção usadas contra a URSS, bem como lógicas militares, econômicas e políticas do período da Guerra Fria. Ainda assim, os críticos apontavam, a China não é a URSS, e o período não é o mesmo. Valeriam-se então das mesmas táticas? Por um tempo a resposta foi não, mas aos poucos a política internacional estadunidense se voltava mais e mais para as técnicas de contenção clássicas.

O advento das IAs, entrelaçado em parte com o advento da nova onda global de extrema-direita e sua enorme capacidade de comunicação digital, impulsionaram no mundo o discurso nacionalista e protecionista, e com isso alavancaram a mudança, antes gradual, americana. A vitória do segundo turno de Trump era a vitória das táticas e lógicas de contenção, mas aplicadas à China. Eis que os EUA tornam sua atenção e recursos limitados aos aliados na Ásia, e deixam claro que não mais a proteção americana é garantida aos europeus, que passam a não ser prioridade uma vez que a Rússia não mais é competidora direta pela hegemonia.       

Se antes a proteção americana assegurava o Estado de Bem Estar Social na UE, sua falta significa a volta de gastos com segurança e a diminuição vertiginosa dos investimentos públicos em políticas sociais. Essa mudança vai de encontro aos valores e a própria identidade da UE, e fortifica ainda mais discursos e tendências da extrema-direita europeia, já validados em parte pela AEA. Se a experiência histórica com a interdependência se repetir, ver-se-á que ela não será o suficiente para manter a coesão na União Europeia, ainda mais quando ideais como nacionalismo e protecionismo se desenvolvem rompantes.  

Em março deste ano, a Finlândia descobriu em seu território, mais especificamente na região de Peräpohja, uma reserva de tório capaz de abastecer o mundo todo com energia nuclear. O elemento químico radioativo oferece menos riscos que o urânio, já que produz menos resíduos radioativos, além de não gerar plutônio como subproduto. Ainda que os reatores, projetados originalmente para o uso do urânio, precisassem ser reestruturados para o uso do tório, a possibilidade de produção de energia nuclear em tamanha quantidade poderia ser a solução que a UE precisava para reverter sua dependência energética sem com isso sacrificar o Green Deal

Mesmo com esse conhecimento, a UE propôs recentemente uma “simplificação” do Green Deal, ao que a maioria dos especialistas parece concordar em ser uma manobra para afrouxar as regras, permitir que grupos de interesse possam influenciar mais na construção do texto final e, de forma geral, distanciar o novo texto dos valores europeus. A simplificação do Green Deal frente a possibilidade trazida pela descoberta finlandesa é a imagem da transformação dos valores europeus, nacionalizando e protecionando suas pólis. No melhor dos casos é a imagem de uma união tornada à extrema direita. No pior, é a imagem do fim da integração europeia. 

Referências:

https://kluwerlawonline.com/journalarticle/European+Foreign+Affairs+Review/27.SI/EERR2022012#:~:text=%EE%80%B1%EE%80%A9%EE%80%AE-,EU%20Open%20Strategic%20Autonomy%20and%20theTrappings%20of%20GeoeconomicsTobias,to%20therisks%20it%20entails

https://dl1.cuni.cz/pluginfile.php/486328/mod_resource/content/0/Kenneth%20N.%20Waltz%20Theory%20of%20International%20Politics%20Addison-Wesley%20series%20in%20political%20science%20%20%20%201979.pdf

https://www.iea.org/news/international-summit-on-future-of-energy-security-to-take-place-24-25-april-2025-in-london

https://www.theguardian.com/us-news/2025/feb/12/us-no-longer-primarily-focused-on-europes-security-says-pete-hegseth

https://www.nber.org/papers/w31351

https://mindelinsite.com/mundo/energia-sustentavel-finlandia-descobre-reserva-de-torio-capaz-de-abastecer-o-mundo

https://www.politico.eu/article/eu-simplification-green-energy-laws

https://www.youtube.com/watch?v=MnKsxnP2IVk