Da reaproximação à ruptura: a crise diplomática entre Washington e Caracas

Por Débora Guedes Falcão e Cinthya Araújo*

A presente coluna analisa os mais recentes desdobramentos da relação entre Estados Unidos e Venezuela que ganhou um novo capítulo nas últimas semanas, quando o mundo assistiu apreensivo a escalada no já conturbado relacionamento dos dois países. Ao iniciar seu segundo mandato em janeiro de 2025, o presidente Donald Trump surpreendeu ao anunciar o fim da inimizade entre Washington e Caracas e manifestar intenção de restabelecer laços diplomáticos com o governo de Nicolás Maduro. Entretanto, tais esforços se desintegraram nas últimas semanas, após ataques norte-americanos a quatro embarcações em águas internacionais próximas à costa venezuelana. Washington justificou as ações alegando que os navios transportavam “quantidades substanciais de narcóticos” e eram operados por “narcoterroristas”, embora sem apresentar provas. Em meio a declarações hostis e acusações trocadas entre os governos Maduro e Trump, a já deteriorada relação entre os países ameaça evoluir para um conflito diplomático com implicações militares.

Contextualização

O atual estado de desavença nas relações entre Venezuela e Estados Unidos não é algo novo, como anteriormente mencionado. A Venezuela foi oficialmente classificada como uma ameaça à segurança nacional dos EUA em 2015, em uma ordem executiva assinada pelo presidente em exercício naquele momento, Barack Obama.  Essa classificação foi motivada pelas investigações que estavam sendo realizadas pela Drug Enforcement Administration (DEA) que havia detectado sinais de envolvimento do alto escalão do governo Maduro com organizações do crime organizado e por sanções aplicadas pelos Estados Unidos a sete membros do governo sob acusações de violações aos direitos humanos.  Outro momento crucial para o acirramento das relações entre os dois países foi durante a eleição presidencial da Venezuela, em 2018. Durante este período eleitoral, houveram diversas denúncias de perseguição política a partidos opositores ao governo vigente e fraudes eleitorais que motivaram a comunidade internacional, sob a clara liderança do governo Trump, a questionar a legitimidade da reeleição de Nicolas Maduro. Os Estados Unidos então iniciaram uma campanha internacional para o reconhecimento de Juan Guiado, líder da então extinta Assembleia Nacional da Venezuela e principal opositor político de Maduro, como presidente interino da república venezuelana. Embora diversos países da América Latina e Europa tenham reconhecido Guaidó como novo líder estatal, esse reconhecimento foi temporário e mesmo diante da pressão internacional, Maduro permaneceu no poder e passou a considerar este episódio como a primeira tentativa do governo dos Estados Unidos de lhe tirar do poder.

O presidente Donald J. Trump discursa para o pessoal do Comando Sul dos EUA após uma reunião sobre operações antidrogas reforçadas na sede do Southcom em Doral, Flórida, em 10 de julho de 2020. (Foto: USSouthcom)

Para finalizar a nossa recapitulação e entrarmos na análise dos desdobramentos recentes do desentendimento entre Caracas e Washington, vale ressaltar que as atuais operações anti-narcóticas dos Estados Unidos no Mar do Caribe não foi a primeira ofensiva do governo Trump na região. Em março de 2020, a Corte de Justiça dos Estados Unidos indiciou Nicolás Maduro por narcoterrorismo e conspiração para traficar cocaína para solos americanos. É nesse contexto que, no dia 1 abril de 2020, o então Secretário de Segurança americano, Mark Esper, anunciou o início da Operação Ampliada Contra-Narcóticos no Mar do Caribe, em diferentes pontos da costa venezuelana, e na parte oeste do Oceano Paífico, próximo a região de fronteira entre Colômbia e Equador. Durante essa operação foram apreendidas 120 toneladas métricas de narcóticos ilícitos e representou um aumento temporário significativo de recursos militares adicionais direcionados à região latino americana.  Embora a operação tenha sido considerada, pelo Departamento de Defesa americano, como um sucesso tático, analistas de política internacional concluíram que a operação ultrapassa a seara de “law enforcement” e transmitia uma mensagem clara para o governo Maduro. Tal mensagem seria a de que, caso a segurança nacional dos Estados Unidos seja posta em jogo devido ao aumento do fluxo de substâncias narcóticas que chegavam ao país, os EUA estariam prontos para lançar mão não só de instrumentos de pressão econômica, leia-se sanções econômicas, como também faria uso do seu efetivo militar para fins coercitivos. 

Da aproximação à ruptura

Levando em consideração o cenário de acirramento das relações entre Estados Unidos e Venezuela descritos acima, quando o presidente Trump retorna à presidência para assumir o seu segundo mandato em 2025, a comunidade internacional esperava que as relações entre os dois países retornasse ao estado conflituoso a que se encontrava no final de seu primeiro mandato no início de 2021. Embora as relações diplomáticas entre Caracas e Washington tenham permanecido formalmente rompidas, houve aumento significativo das exportações de petróleo venezuelano por parte dos EUA da administração Joe Biden. Portanto, Trump surpreende ao dar um passo além nessa aproximação, e sugerir o início de negociações para um acordo diplomático com o governo Maduro.  No dia 31 de janeiro, o representante enviado por Trump, Richard Grenell, encontrou-se com Maduros em Caracas e afirmou ter obtido o compromisso do líder venezuelano em acolher em seu país venezuelanos deportados dos EUA em troca de uma recompensa que representava a esperança por um futuro diferente nas relações bilaterais. Ainda nessa visita, Grenell retornou ao seu país de origem com seus prisioneiros americanos que estavam presos na Venezuela e foram libertados sob a autorização de Maduro. Essa foi a primeira de uma série de troca de prisioneiros que se estendeu ao longo dos primeiros meses de 2025. 

Todavia, o acordo entre os dois países começou a enfrentar obstáculos e foi paralisado no início de julho devido a desentendimentos internos no governo dos Estados Unidos, segundo o jornal The New York Times. Esse desentendimento teria como origem as divergências entre o acordo oferecido por Grenell à Maduro, que segundo o veículo de imprensa norte-americano, envolvia a permissão para a manutenção de operações da empresa petrolífera americana Chevron em solos venezuelanos. Fonte crucial para a manutenção da economia da Venezuela, a indústria petrolífera do país tinha na Chevron uma importante e lucrativa parceria, que havia sido encerrada em maio deste ano. Washington havia anunciado que a licença para as operações da empresa no país caribenho não seria renovada e está posição é a defendida por Marco Rubio, Secretário de Estado e um dos principais articuladores da política externa dos Estados Unidos para a América Latina em ambos os mandatos do governo Trump, bem como dos demais congressistas republicanos. Ao contrário de Grendel, Rubio e os republicanos não estão dispostos a aliviar as sanções econômicas impostas à Venezuela. 

Vale ressaltar que não existe uma real comprovação do envolvimento da empresa Chevron na tentativa de acordo entre EUA e Venezuela e os veículos oficiais vinculados à burocracia política norte-americana, tais quais, o do Departamento de Estado e do Departamento de Defesa, têm adotado uma postura mais reservada e seletiva em relação ao anúncio de suas atividades. Portanto, não é possível, no momento, afirmar o que exatamente motivou essa virada rápida nas relações entre os países. Esse cenário de pouca transparência acaba por alimentar um conflito de narrativas que vem inflamando cada vez mais a relação já não tão harmônica entre os governos Trump e Maduro.  

O momento de ruptura 

Tendo em vista esse cenário de um impasse no acordo e nas tentativas de reaproximação diplomática entre Caracas e Washington, o mês de julho acabou por ser um momento de ruptura nesse processo de possível reconciliação. Como mencionado anteriormente, Maduro já havia sido indiciado pela Corte de Justiça americana por envolvimento direto com o narcotráfico e, na época, uma recompensa de 15 milhões de dólares foi anunciada em troca de informações que pudessem levar à prisão do presidente venezuelano. No final de julho de 2025, foi divulgado pela justiça americana um cartaz de recompensa de 25 milhões de dólares pela captura de Maduro e no início do mês seguinte, em agosto, a procuradora-geral Pam Bondi, duplicou a recompensa para 50 milhões de dólares. Em resposta, o ministro de Defesa da Venezuela, Vladimir Padrino Lopez, fez um pronunciamento em rede nacional rebatendo todas as acusações feitas pelos EUA contra Maduro e outros membros do alto escalão do governo em Caracas, como o ministro do Interior, Justiça e Paz, Diosdado Cabello, que vem sendo acusado pela corte americana de envolvimento com atividades criminosas desde 2015, quando era presidente do Congresso venezuelano. A tréplica americana constitui-se nas especulações de que seriam enviados de pelo menos 10 caças F-35, navios anfíbios como o Navio de Assalto Anfíbio USS Iwo Jima (LHD-7), os navios de transporte anfíbio USS San Antonio (LPD-28) e USS San Antonio (LPD-17), contratorpedeiros como o USS Gravely (DDG-107), USS Jason Dunham (DDG-109) e USS Sammpson (DDG- 102), navio cruzador sendo este o USS Lake Erie (CG-70), um submarino nuclear de ataque, o USS Newport News (SSN-750), aviões de patrulha e reconhecimento como o P-8a Poseidon e o destacamento da 22° Unidade Expedicionária de Fuzileiros Navais. No dia 19 de agosto, a porta-voz do governo americano, Karoline Leavitt, afirmou que Washington usaria “toda a sua força” contra o regime venezuelano e para deter o tráfico de drogas. No mesmo dia, Maduro anunciou a mobilização de 4,5 milhões de milicianos em prol da defesa do território venezuelano contra as ameaças proferidas pela Casa Branca. 

A partir desse ponto podemos observar uma crescente vertiginosa na disputa de narrativa entre Caracas e Washington, com a declaração de Maduro, trajado em uniforme militar, durante a sua visita às tropas milicianas no dia 28 de agosto, de que eles estavam ali para “defender a paz e a soberania nacional contra a guerra psicológica” empregada pela Casa Branca. Naquele mesmo dia, navios de guerra dos EUA chegavam na região sul do Mar do Caribe. Contraditoriamente a forte retórica de defesa nacional feita por Maduro no dia 28, este enviou uma carta à Organização das Nações Unidas (ONU) denunciando o avanço da frota naval norte-americana à costa da Venezuela e solicitando ajuda da comunidade internacional. No dia 1 de setembro, o líder venezuelano declarou em rede nacional que, caso seja agredido durante o que classificou como “a maior ameaça à América Latina do último século”, não irá se curvar a pressões externas e irá entrar em luta armada para se defender. No dia seguinte, dia 02, os Estados Unidos atacaram a primeira embarcação no Mar do Caribe. Eles alegaram que o barco estava carregado de drogas e era tripulado por membros do grupo de crime organizado Tren de Aragua, classificado pelo país como uma organização terroristas. Embora não tenha sido fornecidas provas substanciais em relação a identificação da embarcação ou a identidade das pessoas a bordo, as autoridades norte-americanas afirmaram que o ataque resultou em 11 mortes oficialmente anunciadas. 

Membros da Milícia Nacional Bolivariana se reúnem após responderem ao apelo do presidente da Venezuela, Nicolás Maduro, para defender a soberania nacional em meio à escalada das tensões com os EUA, em Valência, Venezuela, em 5 de setembro de 2025. (Foto: Juan Carlos Hernandez/Reuters)

Após o primeiro ataque, o Secretário de Defesa, fez um discurso durante a sua visita às tropas destacadas para região caribenha em que ele declarou que o governo americano não iria tolerar a presença de narco-terroristas em águas internacionais. Ele também afirmou que o “Departamento da Guerra”, nome pelo qual o Departamento de Defesa tem sido referido durante a atual administração Trump, tinha conhecimento da identidade dos traficantes que atuam na região, quais substâncias ilegais eles traficam, quais rotas eles tomam e, mais importante, quais líderes apoiavam suas ações. Posteriormente, o secretário declarou em entrevista ao canal de TV americano Fox News que eles estavam preparados para usar todo o poder militar do qual dispunham para destruir narcoterroristas que estão enviando drogas para os Estados Unidos e que o líder Maduro tinha “muitas decisões a tomar” em resposta a operação militar realizada no sul do mar do Caribe. No dia 15 de setembro, o presidente Trump afirmou em suas redes sociais que um novo ataque foi desferido contra o que ele chamou de “narcoterroristas venezuelanos” em águas internacionais, resultando em 3 mortes. Após o segundo ataque, Maduro enviou uma carta à Casa Branca na qual reiterou que as acusações feitas contra ele eram falsas e se oferecido para iniciar conversas diretas com Washington de maneira a encerrar os ataques.

Todavia, até o presente momento em que essa coluna está sendo redigida, o governo dos Estados Unidos alega que quatro ataques foram feitos a embarcações “narcoterroristas” em águas internacionais próximas à costa venezuela, totalizando em 17 mortes oficialmente anunciadas. Nenhuma prova de veracidade das acusações proferidas ao líder venezuelano ou acerca da real identidade das embarcações foi fornecida até o momento. Apesar disso, um memorando vazado ao Congresso dos EUA e amplamente divulgado pela imprensa do país revelava que o governo americano havia tomado a decisão de que estava em um “conflito armado não internacional” contra os cartéis de drogas.  Além disso, Trump declarou durante um discurso à Marinha do país que estava avaliando o início de uma nova etapa na ofensiva contra carteis de drogas no Caribe. Ele justifica a decisão ao afirmar que após os ataques em águas internacionais, os “criminosos” não estariam mais utilizando a via marítima, por isso, eles estudavam dar início a uma nova ofensiva, agora por terra. Em meio a estas declarações do lado norte-americano, Maduro diz investigar um plano de ataque terrorista à embaixada dos EUA em Caracas, que atualmente se encontra desativada, e que todas as informações acerca deste plano foram repassadas para Washington. Ainda em respostas aos acontecimentos que ocorreram entre o dia 03 e 05 de outubro, o ministro do Interior da Venezuela afirmou nesta quarta feira, dia 08, que uma nova mobilização militar estava em curso costa norte do país e aludiu que um plano de vigilância que envolve o uso de drones e do uso do efeito militar e da milícia do país estava em curso para proteção do território do país contra possíveis novos ataques por parte dos Estados Unidos. Devido ao fato de que o fenômeno descrito nesta coluna ainda está em curso, se torna impossível prever um possível desfecho para o conflito analisado. A disputa de narrativa inflama as tensões cada vez mais altas entre os países e, embora o líder venezuelano tenha se mostrado disposto a retomar a via do diálogo e de recuar perante o conflito, Maduro se mostra igualmente firme na sua posição de defender o território nacional contra ataques externos. Em contraparte, Trump, que antes se mostrava tão disposto a dialogar e restabelecer relações com Caracas, vem se mostrando cada vez mais radical na sua investida contra cartéis de drogas, de maneira direta, e não tão indiretamente, contra o governo Maduro. Sua postura vem sendo criticada pela comunidade internacional, que  alegam que os ataques desferidos pelo Pentágono em águas internacionais violariam princípios do direito internacional e até a própria constituição dos Estados Unidos.

*Débora Guedes Falcão, mestranda em Ciência Política e Relações Internacionais pela UFPB, Bacharel em Relações Internacionais pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB), membro do Grupo de Pesquisa em Estudos Estratégicos e Segurança Internacional (GEESI-UFPB).

O presente artigo tem por base informações obtidas até o dia 10 de outubro de 2025.

Referências 

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https://www.aljazeera.com/news/2025/10/6/can-us-strikes-on-suspected-drug-boats-off-venezuela-be-legally-justified