O neoliberalismo e a reinvenção do Estado

Falsa polarização e o mito da oposição

A polarização política contemporânea, especialmente no Brasil, costuma ser reduzida a termos de “esquerda” e “direita”. Nesse imaginário, políticas sociais e programas de transferência de renda são imediatamente associados à esquerda, enquanto setores da direita reagem classificando-os como incentivos à preguiça ou “prêmios a vagabundos”. No entanto, essa dicotomia esconde que as ideias hegemônicas que moldam o Estado nas democracias capitalistas, sejam em governos progressistas ou conservadores, são fundamentalmente neoliberais. Essa racionalidade política vai para além de divisões partidárias, reconfigurando o papel do Estado e da própria política sob a lógica do mercado.

O neoliberalismo consolidou-se a partir do final dos anos 1970, com os governos de Margaret Thatcher e Ronald Reagan. A partir daí, expandiu-se globalmente como uma nova racionalidade política e econômica que prega a autorregulação dos mercados, com redução do Estado social e o culto à primazia da iniciativa privada. Wendy Brown (2019) observa que, embora o neoliberalismo se apresente como um projeto de liberdade e eficiência, ele reconfigura o Estado para servir aos interesses do capital e não da cidadania coletiva.

Após a crise financeira de 2008, longe de ser superado, o neoliberalismo se adaptou como forma de contornar sua descredibilização. Sua promessa de prosperidade individual ruiu, mas sua lógica se consolidou sob formas de austeridade fiscal, precarização do trabalho e despolitização da vida pública. Nos países do Sul Global, sobretudo em antigas colônias, essa racionalidade foi reforçada por meio de políticas de abertura comercial e privatizações impostas como condição para empréstimos e “ajustes estruturais” por instituições multilaterais.

Essa transformação global do neoliberalismo, analisada também por Paolo Gerbaudo (2021), marca o que ele chama de “Grande Recuo” (The Great Recoil). Segundo o autor, após as crises de 2008 e da pandemia de Covid-19, houve uma revalorização do Estado e da soberania nacional em resposta à instabilidade gerada por décadas de desregulamentação e financeirização. Ao mesmo tempo, o colapso do neoliberalismo puro, que pregava o mercado autorregulado, resultou em sua alteração em um neoliberalismo autoritário, que combina austeridade econômica com princípios nacionalistas. Assim, o Estado, que antes era apontado como obstáculo, ressurge como instrumento para garantir a continuidade do próprio sistema.

Gerbaudo observa que essa fase pós-2008 é marcada por uma disputa entre três polos ideológicos: o neoliberalismo de centro, a direita nacionalista e a nova esquerda socialista. Mesmo quando o Estado volta a intervir, o faz para proteger o mercado, não a cidadania. Nesse sentido, o neoliberalismo sobrevive ao reformular suas instituições e seus discursos, transformando a ideia de liberdade em instrumento de dominação e o Estado em agente de legitimação da desigualdade.

É nesse contexto que o neoliberalismo mantém sua hegemonia ao se infiltrar em diferentes dimensões da vida social, ultrapassando o campo econômico e alcançando a cultura e a moral. Forma-se um sentido comum global em que eficiência, competitividade e empreendedorismo se tornam valores universais. Essa lógica transforma as relações sociais, esvaziando o debate político e enfraquecendo alternativas coletivas. A globalização neoliberal, mais do que um modelo econômico, configura-se como um verdadeiro projeto civilizatório, que inscreve a racionalidade do mercado nas instituições, nas subjetividades e na própria forma de enxergar a realidade material.

Fonte: La História Del Dia (2011)

O Estado na manutenção do neoliberalismo

Apesar do discurso do “Estado mínimo”, o neoliberalismo depende da intervenção estatal, posto que o Estado é mobilizado para salvar bancos em crises, garantir a estabilidade do mercado financeiro, reprimir manifestações sociais e abrir espaço para o capital privado em setores públicos essenciais. O Estado neoliberal não é ausente, mas tecnocrático e subordinado, regido por lógicas econômicas que privilegiam investidores e corporações em detrimento do bem-estar social.

Um exemplo claro é o das privatizações de serviços de saneamento e energia na América Latina, normalmente justificadas por uma suposta busca de “eficiência”, mas que na prática, tais medidas transferem bens públicos ao controle de empresas que priorizam o lucro, não o acesso universal. Enquanto isso, os países do Norte Global que promoveram essas políticas recuam em um movimento de reestatização de serviços básicos, reconhecendo o fracasso do modelo privatista. A contradição revela a natureza estratégica do neoliberalismo em que as potências centrais promovem no Sul as políticas das quais já se retiram.

Para se sustentar, o neoliberalismo opera para além da economia, promovendo, também, uma ideia de liberdade centrada no indivíduo, dissociada do coletivo, e difundindo a crença de que o sucesso depende exclusivamente do mérito pessoal. Esse discurso ignora completamente as desigualdades estruturais e faz com que os indivíduos internalizem a culpa por seus fracassos, ao mesmo tempo em que protegem a ordem social que os oprime.

Wendy Brown (2019) aponta que, em sua fase atual, o neoliberalismo se entrelaça a discursos morais, religiosos e nacionalistas, criando alianças entre o “livre mercado” e o “moralismo conservador”. Dessa forma, o Estado é visto como o vilão corrupto, ineficiente e invasor, enquanto o mercado se torna o caminho de via única para a ascensão social. Essa retórica seduz as massas com apelos à moral e à tradição e desvia a atenção das reais causas da desigualdade ao fortalecer a hegemonia neoliberal por meio de moralidades e ideias.

A financeirização, enquanto núcleo da racionalidade neoliberal, intensifica a subordinação dos Estados e das sociedades à lógica dos fluxos financeiros internacionais. O neoliberalismo não se limita à economia produtiva e cria uma arquitetura institucional e moral que coloca o mercado acima da política, reduzindo a autonomia estatal e a capacidade de regulação democrática. Essa dinâmica se torna evidente nas crises financeiras recentes, como a da zona do euro, quando o capital das grandes corporações multinacionais, antes disperso em investimentos no Sul Global, foi rapidamente repatriado às matrizes do Norte para conter a instabilidade, deixando os países periféricos expostos à fuga de capitais e à retração de crédito.

Tal movimento revela o caráter assimétrico da interdependência global, visto que, enquanto os países centrais preservam sua soberania financeira, as economias dependentes ficam à mercê dos humores do capital internacional. Essa lógica, legitimada por governos neoliberais que se abrem à estrangeirização e privatizam setores estratégicos, mina a soberania econômica e consolida um regime de vulnerabilidade permanente. A financeirização concentra poder nas mãos das corporações e instituições supranacionais e redefine o papel do Estado como garantidor dos interesses do capital global, mesmo que às custas do empobrecimento social e do enfraquecimento democrático, nos fazendo refletir sobre as fragilidades das democracias liberais em meio a um contexto internacional predatório.

O Estado reinventado e o desafio da crítica

O Estado foi reinventado dentro do neoliberalismo. Sob o falso discurso da liberdade e da eficiência, foi construída uma estrutura política e cultural que mantém o capital no centro da vida social, esvaziando o sentido de cidadania e a capacidade de ação coletiva. Mesmo políticas sociais aparentemente progressistas são moldadas para remediar os sintomas da desigualdade, sem tomar as causas estruturais que a permeiam.

A força do neoliberalismo está justamente em sua capacidade de se naturalizar, de parecer inevitável. Ele sobrevive às suas próprias crises porque se reinventa como senso comum e racionalidade dominante ao transformar valores de mercado em valores humanos e redefinindo o que é considerado justo e produtivo. Romper com a neoliberal lógica exige reformas institucionais somadas a uma mudança cultural profunda, capaz de revalorizar o bem comum e a dimensão pública da existência. O ponto central é a construção de um Estado que não sirva ao capital, mas ao coletivo e que não administre a desigualdade, mas a confronte sem se limitar a corrigir falhas do mercado e que coloque em debate a própria centralidade do mercado na vida social.

Em meio às ruínas do neoliberalismo, ainda é possível construir uma nova racionalidade pública, fundada na justiça, na cooperação e na dignidade humana. Essa reconstrução é necessária para que o Estado volte a ser um espaço de emancipação e não de legitimação do capital.

Referências

BROWN, Wendy. Nas ruínas do neoliberalismo: a ascensão da política antidemocrática no Ocidente. Tradução de Mario Antonio M. Dantas. São Paulo: Politeia, 2019.

GERBAUDO, Paolo. O grande recuo: a nova política da nossa era de crise. Tradução de Célia Euvaldo. São Paulo: Autonomia Literária, 2021.