Síria Revisitada (II): o caos da reconstrução do Estado sírio

Por Nicolas Zupardo Dutra e Cinthya Araújo*

O desafio hercúleo da reconstrução síria

Apesar da queda de Bashar Al-Assad em 8 de Dezembro de 2024 gerar um tímido otimismo em relação ao futuro do país, no entanto, essa onda de otimismo cauteloso foi gradativamente minada pela miríade de desafios internos, entre a fragmentação territorial, a presença estrangeira, a crise econômica e humanitária maciça, tensões sectárias, particularmente após os massacres contra populações alauítas em áreas costeiras, e a falta de uma fase política de transição inclusiva e democrática. Todos esses processos tiveram um impacto negativo sobre qualquer potencial emergente de recuperação econômica e reconstrução, do qual o país necessita desesperadamente. Um simples olhar para a Síria revela a escala do problema que encara o país.

A Guerra Civil Síria pode facilmente ser considerada como um dos conflitos mais destrutivos dos últimos 30 anos no Oriente Médio, deixando uma trilha de devastação que inclusive ultrapassou as fronteiras sírias. Embora existam sinais positivos em relação à recuperação síria nos últimos meses, como o gradativo retorno de cerca de um milhão de sírios para o país desde dezembro passado e cerca de 1,8 milhão de deslocados internos de volta às suas áreas de origem, isso ainda representa menos de um quarto dos 4,7 milhões de refugiados sírios e dos 7 milhões de deslocados internos que, em agosto deste ano, ainda viviam em condições precárias como resultado dos anos de conflito brutal, de acordo com um relatório do ACNUR (Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados) divulgado no início de setembro. E esse é apenas um dos aspectos da destruição causada por esse conflito, pois ao examinar a perspectiva econômica da população síria, é possível constatar que hoje em dia cerca de 90% vive abaixo da linha da pobreza e, em 2024, 16,7 milhões de pessoas na Síria (ou 75% da população) necessitavam de assistência humanitária, de acordo com as Nações Unidas. Logo, qualquer investida que busque efetivamente superar essa profunda catástrofe humanitária passa obrigatoriamente por um esforço maciço mobilizando recursos além da capacidade do estado sírio atualmente, com estimativas de organizações como o Banco Mundial mencionando modestos gastos na casa de 200 bilhões de dólares para a efetiva reconstrução do país. 

É dentro dessa perspectiva que entra a assistência financeira internacional, a qual é essencial para o país assentar a vasta população de refugiados e deslocados e revitalizar a sua economia. Entretanto, existem os desafios inerentes ao fluxo de assistência internacional para um país com instituições frágeis como corrupção e o incentivo a dinâmicas comerciais e especulativas, algo demonstrado, por exemplo, com a revenda de auxílio humanitário saudita no mercado negro sírio no ínicio do ano. Nesse sentido, é possível observar que existem obstáculos profundos e estruturais para qualquer potencial tentativa de reconstrução, que inclusive vão além dos mencionados anteriormente, merecendo destaque a hiperinflação da libra síria, a erosão do setor privado no país, a dependência em remessas de dinheiro por parte da diáspora síria e a franca inexistência de investimento estrangeiro desde 2011.

Além disso, cabe mencionar que existem dúvidas ao redor da orientação e das decisões econômicas do novo governo sírio, encabeçado por Ahmed Al-Sharaa, que possuem um forte caráter liberal. Essas preocupações são provenientes de um ambicioso programa de privatizações realizado nos últimos meses, buscando atrair investimento estrangeiro para diversos aspectos da infraestrutura síria, como aeroportos, portos e estradas, além da declaração de medidas de austeridade, com o governo sírio diminuindo ou encerrando de fato subsídios ao redor de itens como pão, gás e eletricidade e anunciando a demissão de cerca de um quarto dos funcionário públicos do país, alegando que a maioria dos mesmos recebiam salários sem trabalhar de fato. Apesar dessas medidas serem de certa forma justificadas pela ampla insolvência das finanças estatais sírias, é importante ressaltar que as mesmas geraram protestos em diversas regiões do país, motivados também pelas dificuldades econômicas no país dentro deste contexto de reconstrução.

Dessa forma, a Síria enfrenta desafios socioeconômicos complexos que exigem ações urgentes. Logo, abordar as questões sociais e econômicas é fundamental para melhorar as condições de vida e a capacidade da população de participar da vida política durante a transição do país. Entretanto, a orientação político-econômica do novo governo, caracterizada pela disposição para maior liberalização, privatizações, austeridade e cortes de subsídios, merece uma examinação profunda, devido ao seu potencial para gerar desigualdade social, empobrecimento, e concentração de riqueza nas mãos de uma minoria, fatores estes que foram centrais para o levante de 2011.

As tensões na reestruturação do aparato estatal sírio

Dentro desta perspectiva da reconstrução síria, outro ponto de tensão dentro do país atualmente é a reestruturação política do mesmo nas mãos do presidente interino Ahmed Al-Sharaa, que está promovendo a reformulação da Constituição e a reestruturação da maior parte das instituições estatais sírias. Esse processo se traduziu na formação do atual Governo Transicional Sírio, o qual vem favorecendo uma concentração de poder na mão do executivo e mais especificamente do próprio Ahmed Al-Sharaa. É possível realizar essa afirmação ao observar os amplos poderes concedidos ao mesmo no âmbito da nova constituição síria, na qual o presidente interino recebe poderes consideráveis ​​durante todo o período de transição. Estes incluem a autoridade para declarar estado de emergência e para nomear um terço da legislatura de transição, com os membros restantes sendo selecionados por meio de eleições administradas por uma comissão nomeada pelo presidente. Embora esta estrutura de fato garanta um certo grau de continuidade institucional e coordenação central, a mesma levanta questões sobre os mecanismos de controle e equilíbrio de poderes, especialmente tendo em conta o histórico de domínio do executivo na Síria. 

Essa concentração de poder pode suscitar preocupações sobre o fortalecimento da tomada de decisões hierárquica em vez do fomento da governança participativa. O quadro de transição não possui mecanismos claros para garantir que a autoridade executiva seja progressivamente reduzida à medida que as instituições se estabilizam. Além disso, existe a preocupação ao redor de direitos minoritários, pois apesar da constituição se comprometer formalmente com a igualdade e a não discriminação, alguns grupos minoritários expressaram preocupação sobre como essas disposições serão implementadas na prática. Representantes políticos curdos, em particular, criticaram a estrutura transitória por preservar estruturas autoritárias em uma nova forma. O Conselho Democrático Sírio descreveu a declaração como insuficientemente inclusiva e apontou para a falta de garantias para a governança descentralizada ou representação das autoridades regionais. As tensões intercomunitárias em curso e a agitação local em várias partes do país também apontam a fragilidade da unidade nacional durante esta fase de transição e reestruturação.

Um exemplo que nos permite visualizar essas tensões é as eleições legislativas para a Assembleia Popular Síria em outubro deste ano. Dentro das eleições, cento e dezenove representantes foram eleitos indiretamente por meio de colégios eleitorais, com as  eleições sendo adiadas em três províncias, entre elas Suweida, atualmente controlada pela minoria drusa, Al-Hasakah e Raqqa, controladas pelas Forças Democráticas Sírias (FDS), lideradas pelos curdos devido a questões políticas e de segurança. Em 23 de outubro, eleições suplementares foram realizadas para preencher três vagas nas províncias de al-Hasakah e Raqqa, enquanto, segundo a agência de notícias estatal síria SANA, as vagas restantes nessas províncias e em Suweida permanecerão em aberto até que “condições políticas e de segurança adequadas sejam atendidas para a realização de eleições suplementares”, com o terço restante das vagas da Assembleia sendo escolhido diretamente por Ahmed Al-Sharaa. As eleições resultaram em uma proporção desproporcional a favor de muçulmanos sunitas, com apenas 13% dos representantes eleitos em 5 de outubro sendo mulheres e membros de minorias. Algo inclusive reconhecido pelo próprio governo sírio, que em meio à críticas de que o processo possa ter sido “apressado” e “com tomadas de decisão obscuras”, além de “alterações de última hora nos procedimentos legais e baixa participação pública”, o porta-voz do Comitê Superior para as Eleições da Assembleia Popular, Nawar Najmeh, reconheceu as “deficiências” do processo, destacando a representação “insatisfatória” de mulheres e cristãos.

Em síntese, o processo de reconstrução política da Síria sob a liderança de Ahmed Al-Sharaa revela um cenário de transição marcado por tensões institucionais e desafios à democratização. Embora a reformulação constitucional e a criação do Governo Transicional Sírio representem esforços de reorganização estatal, a concentração de poderes no executivo, as limitações à representatividade e a exclusão de minorias evidenciam a persistência de práticas centralizadoras. Assim, o êxito dessa fase dependerá da capacidade do governo em promover mecanismos efetivos de equilíbrio de poder, inclusão política e fortalecimento da governança participativa. 

O latente conflito sírio

O último aspecto da reconstrução síria a ser abordado são alguns dos desafios ao redor do novo Estado sírio restabelecer o seu controle sobre as diversas facções armadas presentes em seu território atualmente e reestruturar seu setor de segurança. Primeiramente, o principal desafio ao governo sírio é a constelação de milícias rivais, grupos leais ao antigo regime de Assad e forças de segurança semi-autônomas operando com diversos graus de liberdade dentro do país, o que força o governo sírio a adotar uma postura cautelosa ao redor dos mesmos e incentivar programas de desarmamento, desmobilização e reintegração (DDR), com graus diversos de sucesso. Essa ampla constelação de grupos armados se traduz em erupções momentâneas e intensas de violência, tanto entre si quanto contra forças associadas com o Governo Transicional Sírio. 

Dois exemplos recentes são os choques entre drusos e tribos beduínas em Suweida, marcados por uma notável intervenção israelense e os atritos entre milícias associadas com o Governo Transicional e milícias árabes e curdas no nordeste do país. No caso de Suweida, o cessar-fogo de 18 de julho continua em vigor. Apesar do cessar-fogo e de um roteiro para a resolução da crise, resultado de discussões entre o governo interino da Síria, EUA e Jordânia, as tensões e a instabilidade no sul da Síria persistem, marcados por erupções de violência entre as diversas milícias drusas tentando se estabelecer como a facção dominante na província, devido a inabilidade do governo sírio intervir na região.

 Já no nordeste da Síria, existem tensões ao redor do controle do território pelas Forças Democráticas da Síria (FDS), um grupo liderado por curdos que controla a maior parte do território autônomo de fato no nordeste da Síria. Apesar de avanços significativos recentemente, como o anúncio de um “acordo preliminar” sobre a integração das FDS aos ministérios da Defesa e do Interior da Síria, um elemento-chave das negociações entre as duas partes, choques esporádicos ocorrem entre ambos lados, dificultando o processo de integração. Outro aspecto central que dificulta esse processo é que as Forças Democráticas da Síria (FDS) defendem um Estado laico e descentralizado e sustentam que a declaração constitucional transitória não representa a diversidade da Síria e concentra muita autoridade no presidente interino.

Além desses aspectos, é importante ressaltar as dificuldades em estruturar uma coalizão de milícias unidas por uma vasta gama de laços informais em um exército nacional coeso e estruturado, que é o desafio que encara o Governo Transicional. Entre milícias curdas associadas com as FDS, jihadistas, milícias criadas pelos turcos visando intervir no país, e voluntários estrangeiros,  existe uma coleção eclética de ideologias, religiões e etnias que devem ser transformadas em uma força coesa. Entretanto, como é de se esperar, desafios surgem, com forças militares associadas com o Governo Transicional Sírio, por exemplo, lançando incursões contra grupos jihadistas egípcios e franceses dentro do país, visando eliminar grupos com um teor radical que prejudicasse relações com ambos países. Essa tentativa por parte do governo sírio em controlar essa variedade de grupos armados depende simultaneamente de silenciar grupos extremistas que ameaçam a sua autoridade e gradativamente desarmar grupos mais bem estabelecidos, visando a posterior unidade territorial síria

Dessa forma, é possível observar que a reconstrução da Síria enfrenta um de seus maiores entraves na consolidação da autoridade estatal sobre um mosaico de grupos armados fragmentados e ideologicamente diversos. A incapacidade do Governo Transicional de integrar plenamente essas milícias em uma estrutura nacional unificada não apenas compromete a estabilidade interna, mas também limita o avanço político e institucional do país. Assim, o sucesso do processo de reconstrução síria dependerá, em grande medida, da capacidade de promover reconciliação, desarmamento e inclusão política, transformando antigos focos de conflito em pilares de um Estado coeso e funcional.

O futuro da Síria? Vamos para onde? 

Em suma, embora a Síria pós-Assad tenha alcançado avanços relevantes como a breve estabilização do país e a formação de um novo governo, o mesmo permanece profundamente marcado por vulnerabilidades e pressões internas. O Governo Transicional Sírio ainda enfrenta o desafio de comprovar sua real capacidade de governança e estabilização nacional, ao mesmo tempo em que tenta equilibrar, de forma delicada, suas relações com potências rivais e gerir as tensões domésticas que ameaçam corroer os frágeis progressos alcançados até aqui.

A trajetória síria dependerá de uma amálgama de fatores, que se bem reunidos poderá transparecer a habilidade de transformar esse período ainda tão frágil em uma maior solidificação em sua soberania e reconstrução interna. Há onze meses encerramos a coluna sobre Síria com um tom esperançoso: “O governo da família Assad marcou a história da Síria e com o fim deste capítulo, a esperança é que os próximos sejam escritos com menos sangue”, no entanto, o que se vê nessa revisitação é que o contexto sírio entra em outra fase, numa mistura de novos e antigos atores. Nesse sentido, apesar da Síria de fato adentrar em uma encruzilhada histórica, marcada por possibilidades e oportunidades, ainda enfrenta incertezas significativas sobre o seu futuro.

*Nicolas Zupardo Dutra, graduando em Relações Internacionais pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB), membro do Grupo de Pesquisa em Estudos Estratégicos e Segurança Internacional (GEESI-UFPB).

O presente artigo tem por base informações obtidas até o dia 06 de novembro de 2025.

Referências

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https://www.jihadologyplus.com/p/every-known-position-in-the-new-syrian

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