O julgamento da tentativa de golpe de Estado no Brasil por parte das forças do governo de Jair Bolsonaro no Supremo Tribunal Federal representa um momento único da história brasileira e tem um peso semelhante àquele que escancarou a barbárie nazista há 80 anos.
Desde o dia 2 de setembro, o Brasil está acompanhando o tão esperado momento final da “saga” golpista encabeçada pelo líder da extrema-direita brasileira, Jair Bolsonaro. Este é o ponto final de dois anos de investigações que revelaram um plano complexo e bem-arquitetado para abolir o Estado democrático de direito brasileiro, substituindo-o por um regime de exceção liderado pelo então presidente da República, Jair Messias Bolsonaro.
Sem que fosse novidade dos intentos golpistas de Bolsonaro, que tem histórico de defesa da Ditadura Militar, de métodos de tortura, de execução de milhares de pessoas e de desprezo pela democracia liberal, as provas das investigações conduzidas pela Polícia Federal revelaram que todo o discurso golpista ia bem mais além do que simples “retórica política” (como muitos apoiadores e defensores de Bolsonaro tentaram vender há anos)1.
Após perder as eleições presidenciais de 2022, Bolsonaro passou os três meses após a liberação dos resultados conspirando com seus aliados mais próximos e militares de alto-escalão para subverter a ordem pública, assassinar o presidente-eleito, seu vice, bem como ministros do STF, e manter-se no poder. Assim como a mentira contada à época do golpe de 1964, algumas evidências mostram que haveria planos para a realização de “novas eleições no futuro” (da última vez, o hiato foi de 21 anos).
Os fatos revelados pela PF são atordoantes. A tentativa, diferente do que a palavra possa dar a entender, não ficou apenas em estágios preliminares de “discussões de ideias”. A parte mais sangrenta, o assassinato de autoridades, quase chegou a ser consumado, com agentes de Bolsonaro posicionados em locais estratégicos para cometer os homicídios2. Por uma conjunção de variáveis além do escopo político (e factual), as autoridades não foram executadas na noite do dia 15 de dezembro de 2022, após a “missão” ser cancelada no último minuto3.
Uma semana antes, Bolsonaro tentou cooptar os chefes das forças militares para seu golpe. Dois se negaram, mesmo sob pressão de colegas4. Esses dois generais, porém, não “salvaram” a democracia brasileira. Na verdade, prevaricaram, uma vez que faltaram com o dever, antes tudo, cidadão que é o de denunciar imediatamente que havia um plano concreto de disruptura do regime democrático brasileiro.
Sem apoio suficiente por parte dos militares, um plano B foi levado a cabo. Esta parte foi vista por todo o mundo no dia 8 de janeiro de 2023, após a posse do presidente-eleito, Luís Inácio Lula da Silva. Bolsonaro havia fugido para os Estados Unidos (à época, sob o governo Biden, abertamente contrários ao golpe no Brasil5). Milhares de peões bolsonaristas, sob proteção de forças militares, atacaram as sedes dos três poderes na capital federal. A destruição da sede do Executivo, Judiciário e (em menor grau) do Legislativo, porém, não era o golpe em si.
Com o caos instaurado em Brasília, foi sugerido o decreto de uma chamada “GLO” (Garantia da Lei e da Ordem). O artifício dá aos militares, por um tempo e escopo limitados, o poder de polícia a fim de reestabelecer a ordem. Neste momento, a primeira-dama aconselhou Lula a não decretar esse mecanismo6. Por mais que não pusesse os militares no poder, nos primeiros oito dias de governo já passar uma autoridade tamanha para os militares dentro da capital federal (militares que um mês antes estavam se reunindo com o ex-presidente para decretar um golpe de Estado e assassinar, entre outras pessoas, o próprio Lula) não pareceu uma opção desejável. Naquela noite, após serem expulsos dos prédios públicos (muito tardiamente, diga-se de passagem), os apoiadores do golpe não puderam ser presos pela polícia porque o Exército impediu que a polícia prendesse os peões bolsonaristas (que estavam acampados em frente a quartéis em Brasília)7.
Com isso, a efetivação final do golpe foi evitada. No dia seguinte, Lula se reuniu com os líderes dos outros dois poderes e marcharam na Praça dos Três Poderes como um sinal a favor da democracia. Isso por mais que líderes do Legislativo (tanto à época como na atualidade) estivessem mais próximos dos intentos de golpe que da defesa efetiva da democracia.
Foram meses de investigações que se passaram até que o público finalmente soubesse dos detalhes do que foi orquestrado (e executado) nos meses antes da posse do atual presidente da República. Nesse meio tempo, alguns conspiradores já foram presos, enquanto outros já começaram a tentar se desvincilhar de culpa.
O centro do golpismo, porém, manteve-se forte. Bolsonaro, que voltou posteriormente ao Brasil, como mostram evidências, teria planejado fugir duas vezes por meio de pedidos de asilo político à Hungria (também governada por um autocrata) e à Argentina (com um líder de viés similar)8, 9. Um dos filhos de Bolsonaro se autoexilou nos EUA (agora, sob o nascente regime de Trump), de onde conspira com o alto-escalão do governo estadunidense para pressionar o Brasil. O resultado dessa operação é não só a imposição obscena de 50% de taxas aos produtos brasileiros, mas também a sanção a ministros da Suprema Corte10. Nesta terça-feira (09), a porta-voz do governo em Washington chegou a ameaçar o Brasil, afirmando que Trump “não tem medo de usar meios econômicos nem militares para proteger a liberdade de expressão ao redor do mundo”, no contexto do julgamento de Bolsonaro11.
Diferentemente da postura democrática adotada pelo governo Biden no passado, reafirmando que os Estados Unidos ficariam a favor da democracia brasileira, o regime Trump vê, nas palavras da própria porta-voz de seu governo, como uma prioridade a intervenção na política brasileira a fim de salvaguardar os interesses estadunidenses.
Chegamos finalmente ao título desta coluna. Há exatos oitenta anos, em 1945, finalizava-se a Segunda Guerra Mundial após seis anos de conflito. Na Europa, a capitulação dos nazistas frente à investida Aliada não significou o fim das hostilidades no continente. O nazismo deixou uma chaga em todos os cantos por onde passou, por meio de seus crimes horrendos contra a humanidade. Até recentemente, era um consenso mundial que seus feitos e sua ideologia eram algo abominável. Infelizmente, a política mundial dos anos 2020 não reflete mais esse pensamento humanista.
Com tantos horrores perpetrados pelos nazistas, chegou-se à conclusão no fim de 1945 que um tribunal seria montado para julgar aqueles que estavam à frente do regime. Assim, formou-se na cidade alemã de Nurembergue. Dez anos antes, a cidade havia sido palco do comício anual do partido nazista, onde se introduziu as chamadas “Leis de Nurembergue”. Estas eram um conjunto de leis antissemitas que impunha, na prática, a desumanização de pessoas de fé judaica e diferentes etnias na sociedade nazista. Neste mesmo local, vários líderes nazistas (que ainda estavam vivos e não haviam fugido) foram colocados em bancos de réus para responder por seus crimes, no que ficou conhecido para muitos como o nascimento do Direito Penal Internacional.
Para além de punir os nazistas de uma maneira civilizada, por meio de um tribunal, o intuito dos Julgamentos de Nurembergue era também apresentar à sociedade mundial os horrores perpetrados pelo nazismo. Aquele momento deveria servir de exemplo para qualquer um, em qualquer canto do mundo, que aquelas atrocidades eram desumanas e jamais deveriam se repetir. Nurembergue tem, assim, um peso histórico e simbólico muito maior que o fato específico vivenciado durante aqueles dias de julgamento.
Interessante notar um aspecto da coleta e apresentação de provas pelas partes denunciantes. O foco das evidências foi colocado quase que inteiramente sobre os documentos que sobreviveram à tentativa nazista de ocultação de suas ações (mapas, documentos, fotos, etc.). Relatos das vítimas, por mais que apelassem para a opinião pública, foram evitados, pois se acreditava que essas seriam evidências que poderiam ser consideradas “subjetivas” e, assim, enfraquecer a acusação. Foram 111.000 documentos, 4.600 evidências, 30 km de filmes e 25.000 fotografias. Mesmo declarando-se todos inocentes, os líderes nazistas foram declarados culpados em meio às provas irrefutáveis apresentadas pelas acusações estadunidense, francesa, britânica e soviética.
A história do Brasil como país independente é uma história de uma sucessão de golpes.
Após a declaração de independência em 7 de setembro de 1822, o Brasil, diferente de seus vizinhos latino-americanos, tornou-se uma monarquia constitucional. A ideia é que o Brasil não seria governado pelos interesses de uma pessoa, mas do “povo do Brasil”. No ano seguinte, o imperador Dom Pedro I convocou uma Assembleia Constituinte que deveria, segundo ele, escrever uma constituição que fosse “digna dele” (do imperador, não do povo). Quando os constituintes tentaram diminuir o poder do imperador, o primeiro golpe. O exército foi convocado para prender os constituintes na madrugada do dia 12 de novembro de 1823. No ano seguinte, o próprio imperador criou uma constituição e a impôs.
Longe de ser uma democracia nos moldes modernos, o regime monárquico permitia a participação da elite por meio de voto ao Senado e à Câmara dos Deputados (para aqueles que tivessem o equivalente a cerca de R$ 50.000,00, atualmente, de patrimônio). No fim desse século, viria um outro golpe.
A declaração da República brasileira deu-se por meio de um golpe militar, com apoio das elites, que destituiu o imperador Dom Pedro II e impôs o regime republicano no país. O povo, como mencionam várias fontes históricas, ficou atônito à mudança de regime (muito também, porque eram simpáticos ao imperador). A partir desse momento, a relação entre as elites econômicas e as forças militares seria a força motora dos próximos golpes no país.
A República Velha (1889-1930) era democrática na teoria, mas controlada completamente pelas elites econômicas, na prática. Essa era a época do coronelismo e da chamada “Política café com leite”, pela qual as elites paulistas (do café) e mineiras (do leite) se revezavam no poder. O fim desta república deu-se com outro golpe cívico-militar. Com o fim do consenso do café com leite, Getúlio Vargas, com apoio do exército, dá um golpe de Estado e assume o governo. Quatro anos depois, Vargas é eleito indiretamente seguindo uma nova constituição (que era democrática, na teoria, permitindo até mesmo o voto das mulheres pela primeira vez). Em 1937, no fim de seu mandato, Vargas dá outro golpe e perpetua-se no poder, iniciando a ditadura do “Estado Novo”. À época, sua desculpa era que os comunistas estavam tentando dar um golpe no Brasil. Com o fim da Segunda Guerra, em 1945, Getúlio sofre um golpe por parte dos militares e é retirado do poder pela primeira vez.
Segue-se um período de quase 20 anos de democracia real, com partidos à esquerda e à direita. Tão aberta que mesmo o ex-ditador Getúlio participa (e é eleito!). No entanto, “o fantasma do comunismo” volta a rondar a cabeça das elites econômicas brasileiras que apoiam, novamente, os militares a dar um golpe. Esse foi o início da Ditadura Militar de 21 anos em 1964.
Após prender, torturar, matar e “fazer sumir” diversas pessoas contrárias ao regime ditatorial, dentre elas crianças, foram dificuldades econômicas que fizeram com que a “popularidade” dos ditadores militares fosse diminuindo entre as elites, o que os pressionou para “dar de volta” a democracia ao povo. Naturalmente, neste momento, a sociedade civil brasileira já não era a mesma dos anos da República Velha e estava pressionando por meio de grandes protestos populares (como o “Diretas Já”, a favor da volta da democracia). O cenário internacional também teria colaborado, sobretudo com a mudança de governos nos EUA que, agora, já não eram mais tão simpáticos às ditaduras que eles mesmos haviam ajudado a implantar na América do Sul.
Desde 1988, então, temos uma nova república no Brasil. Uma que, de fato, é democrática e liberal. Foram trinta anos até que os militares voltassem, de novo, com ajuda de elites econômicas, a tentar destruir a democracia brasileira.
Em nenhum momento desses mais de 200 anos de independência brasileira, um golpista sentou no banco de réus. Dom Pedro I voltou para Portugal para ser rei ali. Marechal Deodoro da Fonseca, general à frente do golpe da república, tornou-se o primeiro presidente da República Velha. Getúlio se manteve no poder, foi deposto, voltou eleito e só saiu de novo (como havia prometido) morto. Os militares que depuseram Getúlio jamais foram presos. Não só isso, o Exército tentou dar outro golpe em 1955, impedindo que o presidente-eleito Juscelino Kubitschek assumisse. Com o golpe tendo falhado, Kubitschek anistiou os golpistas para “pacificar o país”12. Nove anos depois, eles voltaram e tomaram o poder por 21 anos, ceifando a vida de centenas e acabando com a paz de milhares. Nenhum desses homens foi julgado por suas táticas desumanas de tortura. Pelo contrário, foram anistiados e continuaram adorando seu “conto democrático heroico” nas casernas, cozinhando um sentimento golpista por três décadas até tentarem tomar o poder novamente com Bolsonaro.
Pela primeira vez em 200 anos de golpes, golpistas enfrentam a justiça no Brasil. O consenso ao redor da retidão desse julgamento, porém, está longe de estar assegurado. Menos de 50% da população brasileira acredita que uma condenação de Bolsonaro seja justa. Quase 40% afirmam que seria injusto que ele fosse condenado13. Em pesquisa recente, observou-se que cerca de 21% dos brasileiros não acreditam na democracia. E, mesmo com a grande maioria acreditando, 71% se dizem insatisfeitos com a maneira com que ela tem sido exercida14. Vale lembrar que, mesmo depois de anos de discurso golpista e descaso com a vida humana durante a pandemia, Bolsonaro ainda recebeu mais de 58 milhões de votos no 2º turno.
No último domingo, dia da independência do Brasil, pela primeira vez, se viram pessoas desfilando com a bandeira dos Estados Unidos em São Paulo, em um protesto em defesa de Bolsonaro. Pessoas que, segundo elas mesmas, são patriotas e “defendem o Brasil”.
Há quem acredite que o julgamento de Bolsonaro, e dos demais golpistas, seja só de fachada. Que o resultado já esteja dado, porque os ministros estariam conspirando contra Bolsonaro pessoalmente. No entanto, assim como os horrores de 1945 estavam escancarados tanto para aqueles que os viveram, como para aqueles a quem foram apresentadas as provas, a culpa dos crimes imputados aos novos golpistas é translucidamente clara. As provas são contundentes e mostram não só a intenção como o início da execução do golpe.
O julgamento, iniciado em 2 de setembro, tem previsão de correr até o fim desta semana (12), mas já há mais de mês se fala no Congresso Nacional em aprovar uma anistia aos golpistas. Assim como no passado, há forças (muitas também de extrema-direita) no Congresso que não querem ver as pessoas que se empenharam a roubar mais uma vez a democracia dos brasileiros enfrentando a justiça por causa dos crimes que cometeram. O relativismo das ações golpistas vai da negação total delas até a aceitação de que tudo de fato ocorreu, mas que seria necessário “esquecer tudo” e seguir em frente.
O peso do simbolismo de Nurembergue para o fim da Alemanha nazista é, guardadas as proporções, o mesmo que o julgamento do golpe no Supremo Tribunal Federal representa para o regime democrático brasileiro. E isso não quer dizer que eles representem um final feliz da história. Muito pelo contrário. Como afirmado, a barbárie nazista não se dissipou com o suicídio de Hitler, nem mesmo com o julgamento dos demais nazistas. Contudo, ele foi forçosamente freado ao ponto que só passou a surgir com força novamente 80 anos depois. No Brasil, onde é praxe “esquecer e olhar para frente”, não temos tantas décadas entre um golpe e outro. Desta vez, porém, algumas instituições de fato republicanas parecem fortes o suficiente para dar um basta e impor um exemplo. É sob essa luz que o julgamento desta semana de independência deve ser considerado.
Mais que tudo, este julgamento, assim como o de Nurembergue, é a exposição pública dos intentos golpistas, explorados detalhadamente. Ele é um exemplo para a história brasileira, que só deve fortalecê-la, empoderando futuros democratas brasileiros a lutar pelo regime democrático do país e, ao mesmo tempo, frustrando novas tentativas de roubar o povo brasileiro de sua liberdade.
O bolsonarismo não vai se extinguir com uma possível condenação de Bolsonaro e seus aliados na próxima sexta-feira. Longe disso. Mas este é um passo imprescindível para que a democracia brasileira se mostre forte e resiliente, impondo um exemplo singular na história de dois séculos de nosso país.
1 https://www.youtube.com/watch?v=21lQ84pnuwo
7 https://veja.abril.com.br/brasil/coronel-da-pm-diz-que-exercito-dificultou-prisao-de-golpistas
9 https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2025/08/21/bolsonaro-asilo-milei-hungria.htm
10 https://www.bbc.com/portuguese/articles/c8rymrp7817o
14 https://www.uff.br/29-04-2025/pesquisa-da-uff-revela-que-79-dos-brasileiros-acreditam-na-democracia