Em um discurso a empresários alemães, o chanceler conservador alemão, Friedrich Merz, fez uma fala tratada pela mídia brasileira como “enaltecedora” de seu país que traz consigo um pensamento de retomada do “orgulho” alemão nos moldes de um século atrás.
Na Cúpula do Congresso do Comércio, que ocorreu em Berlim, no último dia 13 de novembro, o chanceler alemão, do partido conservador “União Democrata Cristã” (CDU), Friedrich Merz, fez uma fala que só uma semana depois reverberou no país sede da COP deste ano. Ao discursar sobre como a Alemanha tem de mostrar que seu sistema é capaz de trazer bem-estar para sua população e que a democracia é um sistema mais atrativo que a (crescente) autocracia, Merz decidiu utilizar a cidade nortista de Belém como um exemplo depreciativo para “enaltecer” a Alemanha:
“Senhoras e senhores, vivemos em um dos países mais bonitos do mundo. Na semana passada, perguntei a alguns jornalistas que estavam comigo no Brasil: quem de vocês gostaria de ficar aqui? Ninguém levantou a mão. Todos ficaram felizes por termos voltado para a Alemanha na noite de sexta para sábado, principalmente por termos saído daquele lugar onde estávamos“1.
Ainda no início desta semana, alguns jornais brasileiros trouxeram manchetes como “chanceler alemão enaltece Alemanha“, focando na primeira parte do pensamento de Merz, onde ele, de fato, enaltece seu país. Esta fala, porém, é apenas a ponta do iceberg nas “gafes” do chanceler alemão (que, na verdade, de gafes não têm absolutamente nada).
Esta fala de Merz (ainda) não atingiu o público e a mídia alemã. Mas, se vier à tona, será apenas mais uma fala a ser repreendida do atual mandatário do país. Há quase exatamente um mês, Merz gerou uma grande discussão em seu país quando fez uma fala ambígua contra imigrantes. À época, em uma fala à imprensa junto ao governador do estado de Brandemburgo, o chanceler respondeu à pergunta de um jornalista, que lhe havia perguntado sobre uma fala dele em 2017 sobre “diminuir à metade as intenções de voto do partido de extrema-direita”, o Alternativa para a Alemanha (AfD)”. Ao responder à pergunta, Merz relativizou sua fala e, depois de afirmar que o populismo de direita é um problema europeu e mundial, não só alemão, defendeu que seu governo estava avançando muito na área de migração, diminuindo os números de imigrantes (referindo-se a refugiados, mas sem especificar). Então, ele traz sua frase ambígua:
“No quesito migração, nós avançamos muito. Neste governo, nós diminuímos os números de agosto de 2024 e agosto de 2025, em comparação, em 60%. Mas, é claro, ainda temos esse problema na paisagem urbana. É por isso que o Ministro Federal do Interior está agora a permitir e a realizar repatriações em grande escala. E isso tem que continuar“2.
O “problema na paisagem urbana” (Problem im Stadtbild), segundo Merz, são os imigrantes. Mas não qualquer imigrante. Após a fala estourar um debate no país, jornalistas tentaram fazer com que o chanceler fosse mais preciso em sua fala e afirmasse categoricamente quem é o problema ao qual ele se referia. Uma semana depois, respondendo a outro jornalista que tentou tirar mais clareza da “gafe” do chanceler, Merz afirmou que “quem vive o dia a dia (na Alemanha) sabe que eu estou certo com essa afirmação. Não foi a única vez que disse isso e não fui o único a dizer isso. Há muitos por aí que dizem o mesmo e que avaliam a situação da mesma maneira“. Ele completou, rebatendo ao jornalista: “Pergunte a seus filhos, pergunte às suas filhas, pergunte no grupo de amigos. Todos vão confirmar que isso é um problema. (…) Por isso, nós vamos resolver esse problema“3. No noticiário brasileiro, alguns diriam que Merz “dobrou a aposta”.
Por mais que evite ser mais direto (talvez para manter a única diferença aparente que suas falas têm daquelas da extrema-direita), Merz deixa claro nas entrelinhas o que ele quer dizer. Em um comício em julho de 2024, ao defender controles permanentes nas fronteiras alemãs, minando o princípio da livre movimentação estabelecido nos Acordos de Schengen, Merz “tranquilizou” o público alemão no estado da Saxônia, no leste do país, o segundo maior curral eleitoral dos extremistas de direita, afirmando que:
“No início da semana, Markus Söder (governador da Baviera) e eu fizemos um apelo público para que os controles nas fronteiras sejam mantidos. E que durem até que o problema seja resolvido. E, para que nenhuma dúvida surja: nós não vamos fechar as fronteiras novamente. (…) E nossos policiais da Polícia Federal assim como da Polícia Estadual, vão olhar se vocês tiverem a oportunidade e quiserem ver, eles têm muita experiência. Quando eles estão lá (fazendo o trabalho deles), eles sabem muito bem em que carros migrantes ilegais provavelmente estão, onde prováveis traficantes de pessoas estão. Não são vocês quando estão voltando de férias. Vocês passam direto. Mas aqueles com carros esquisitos, com pessoas esquisitas dentro, eles são parados e checados. Esse tipo de controle é o que precisamos na Alemanha, nas fronteiras da Alemanha, para que em algum momento nós limpemos esse problema“4.
Diferentemente de outros comentários, Merz fez questão de “não deixar dúvidas” sobre o que ele queria dizer com “o problema“. A fala gerou uma grande comoção nacional, com acusações diretas de racismo e o uso do chamado “perfilamento racial” (ou o ato de suspeitar de uma pessoa com base em características ou comportamentos assumidos de um grupo racial ou étnico) como política de estado.
Enquanto presidente do partido conservador CDU, a fala de Merz foi rapidamente contrastada com uma outra figura proeminente do partido, que esteve à frente da chancelaria do país por quase 20 anos: Angela Merkel.
Em 2017, ano em que o partido de extrema-direita, AfD, entrou no parlamento alemão, Merkel, então chanceler do país, confrontou uma fala do porta-voz do partido extremista, que se assemelhava às falas atuais de Merz, em um programa da televisão pública. Jörg Meuthen, do AfD, afirmou à época que, quando andava pelas cidades alemãs, “só conseguia ver poucos alemães”. Esta ideia vem da tese de que migrantes estão “substituindo” os alemães em seu próprio país. Este pensamento vem sobretudo como uma crítica à política das portas abertas idealizada, implementada e defendida por Merkel à época do que ficou conhecido como “crise dos imigrantes” em 2015. Merkel respondeu à época:
“Eu não sei o que o Senhor anda vendo, porque quando eu ando nas ruas, eu não consigo diferenciar pessoas com passado migratório que são cidadãos alemães ou não“5.
“Passado migratório” (Migrationshintergrund) é o termo, digamos, politicamente correto na Alemanha para falar de pessoas que não se parecem “alemãs” (vulgo, que não são brancas de olhos claros e têm traços “alemães”). Em reiteradas falas e participações em eventos com grupos de diversas origens, Merkel reafirmava a posição de uma “nova Alemanha”: uma de diversidade. A de uma sociedade que não deveria mais ser marcada pelo seu passado racista e genocida, mas de uma sociedade acolhedora, democrática e diversa. Daí vem também um outro termo alemão como “país de migração” (Einwanderungsland), algo que é normalmente usado apenas para países do novo mundo como o Brasil.
As falas polarizantes (e, por vezes, racistas) de Merz têm um contraste gritante com aquelas humanas e democráticas de Merkel. Não à toa, muitas organizações midiáticas passaram um tempo abordando as intrigas pessoais entre os dois políticos da CDU que defendem duas vertentes bem diferentes do partido (vale salientar que Merz saiu da política quando Merkel passou a liderar o partido, por volta de 2005, e só voltou próximo a ela sair do poder, em 2021). Mas as comparações das falas de Merz não foram apenas de contraste, mas também de semelhança com o passado sombrio da Alemanha.
Para um “alemão raiz”, não é raro que, indo um pouco mais atrás na árvore genealógica, se encontre alguém que estava comprometido com a causa nazista há quase um século. Claro, ninguém é responsável pela opinião e atos de seus parentes, muito menos de seus antepassados. Mas, como bem pontuou o título de uma postagem em um blog judaico nos idos de 2004, “o problema não é o avô: o estranho orgulho de Friedrich Merz“. Naquele ano, Merz chegou a celebrar seu avô que havia sido prefeito da cidade de Brilon, sua cidade natal. À época, quando os sociais-democratas ganharam a eleição da prefeitura da cidade, Merz, então líder do partido no parlamento, clamou pelo voto contra o “prefeito vermelho”. Para ele, era um “profundo horror” que um social-democrata estivesse à frente da prefeitura de sua cidade e isso tinha que “ser acabado”, associando a saída do partido rival com a vitória de seu avô para prefeito na cidade na década de 1930. Acontece que o orgulho de Merz causou estranheza à época, já que seu avô permaneceu prefeito durante o regime de Hitler e era um fã do ditador. Naquele tempo, apenas políticos alinhados à ideologia nazista podiam se manter no poder (algo que o próprio “lendário” chanceler da CDU, Konrad Adenauer, não fez, enquanto prefeito de Colônia, por se opor a Hitler)6, 7.
Vinte anos depois, Merz continua atraindo para si comparações com fãs de Adolf Hitler. Sua fala sobre a “paisagem urbana” fez muitos rapidamente recobrarem um pensamento do ideólogo de Hitler, Joseph Goebbels, que escreveu em seu diário em 1941:
“É revoltante e escandaloso que na capital do Império Alemão 70.000 judeus, em sua maioria parasitas, possam andar por aí. Eles não só estragam a paisagem urbana, como a moral. (…) Nós temos que abordar esse problema sem nenhuma sentimentalidade“8.
Em um país, e sobretudo vindo de uma geração, confrontado diuturnamente com um sentimento de culpa sobre seu passado, esse tipo de “semelhança” é raramente uma coincidência.
É um fato que a CDU tem caminhado mais para a direita desde o fim da Era Merkel. Durante suas quase duas décadas à frente da chancelaria do país, Merkel governou de maneira centrista, forjando compromissos entre a centro-esquerda e centro-direita. Claro, o partido manteve sua posição conservadora de democracia-cristã. Mas, seu tempo à frente do governo do país foi um período de mais calmaria política do que aquele marcado após sua saída. Não à toa, uma das maiores revistas do país, a Spiegel, mesmo que categorizada como mais à esquerda liberal, dedicou uma edição recente ao sentimento de “saudade da Era Merkel”9. De fato, uma pesquisa recente apontou que cerca de 25% dos alemães sentem saudade de Merkel no governo, sobretudo os mais jovens10.
Não obstante, é fato também que a política de Merkel das portas abertas em 2015 foi como um tiro que saiu pela culatra. Além dos problemas estruturais da Alemanha, que não permitiam o tratamento célere de milhões de pedidos de asilo e a integração dessas pessoas na sociedade alemã (pela falta de digitalização, processos burocráticos extremamente complexos e simples falta de pessoal para tratar os pedidos), a entrada de pessoas que “estragam a paisagem urbana” ou que são “um problema na paisagem urbana”, para usar os termos em que são tratados atualmente, funcionou como mais lenha na fogueira da chama eugênica que se manteve latente na sociedade alemã por décadas após a Segunda Guerra Mundial.
Movimentos como “PEGIDA” (ou “Patriotas Europeus Contra a Islamização do Ocidente”) e o AfD (criado à época da crise do Euro, não dos imigrantes) ganharam mais força e obtiveram influência política crescente no contexto alemão. A Era Merkel chegou ao fim não em paz e harmonia, mas em decadência e descrédito das pessoas em relação às instituições políticas tradicionais.
As eleições de 2021, as primeiras sem Merkel no páreo, foram inéditas em duas décadas na Alemanha, porque os partidos tiveram que, depois de muito tempo, se diferenciar de fato. O governo que saiu desse pleito, chamado “semáforo” pelas cores dos partidos à frente da coalizão, foi um governo fraco, formado por três forças quase antagônicas: sociais-democratas, verdes e liberais. Com uma forte sabotagem dos liberais, como ficou claro com a divulgação de documentos internos do partido11, o governo ficou conhecido apenas por confusões públicas, o que ofuscou políticas positivas que foram implementadas durante os três anos de governo.
É sabido que populistas se desenvolvem bem em meio a crises políticas. E foi assim que o AfD conseguiu subir da quinta posição nas eleições de 2021 (com 10% dos votos, após uma queda de 2% em relação ao pleito anterior) para a segunda posição nas eleições de fevereiro de 2025 (agora com 20% dos votos).
Como em outros locais do mundo, a centro-direita vê o crescimento da extrema-direita, parcialmente, como uma ameaça ao seu próprio poder, já que é uma competição dentro de seu campo político, mas também, em parte, como uma oportunidade de crescimento de seus quadros, seja por meio do fim da necessidade de compromissos mais ao centro ou à esquerda, seja por meio do fim da necessidade de mascarar certos interesses até então não tão bem aceitos na sociedade. No caso alemão, este último cenário parece ser uma forte opção para alguns correligionários da CDU que ou passaram a adotar a retórica populista de direita para crescer ou abandonaram o partido de vez e se juntaram ao AfD.
Assim como no Brasil, nos EUA, no Reino Unido ou na Holanda, na Alemanha, a centro-direita tem se movido cada vez mais para o lado direito do espectro, tentando impedir sua derrocada e “impedir” que a extrema-direita a substitua por completo. No entanto, como se viu nesses outros países, o cenário é sempre o mesmo: não importa quanto a centro-direita adote a retórica populista. Esse tipo de reação lhe dá, no máximo, uma sobrevida de uma ou duas eleições. Eventualmente, o eleitorado frustrado tenderá a abandonar o “tradicional se passando por novo” e abraçará aquele que de fato se coloca como novidade. Foi assim com o PSDB e Bolsonaro, com os Republicanos e Trump, com os Conservadores e agora o “Reforma” de Farage e os holandeses VVD e PVV. A CDU parece trilhar um caminho bem semelhante em relação ao AfD.
Saber de fato o que se passa na cabeça de Merz, ou de qualquer líder político, é algo que, para analistas, sempre traz consigo um quê de especulação. Afinal, analisam-se apenas as falas e as ações desses políticos, sem que se possa ter uma conversa franca e aberta com eles sobre suas intenções pessoais.
Neste sentido, não se pode dizer (com certeza) onde está o posicionamento de Merz em termos ideológicos de fato. O que se pode dizer é que, enquanto político conservador alemão, ele não parece medir muito o impacto de suas falas que fazem referência ao passado sombrio de seu país, tampouco parece ter problema em proferir falas que gerem um sentimento de discriminação contra minorias em seu país (leia-se que seus comentários enquanto político de longa data não se limitaram a migrantes – no geral, não só refugiados -, mas também foram na direção da comunidade LGBTQIA+ e até mesmo de mulheres).
Analisando seu passado político e sua atuação no presente, também voltando ao comentário feito em relação ao Brasil e à “superioridade alemã” (pontuada como “enaltecimento”), não é surrealista acreditar que Merz representa um político de seu tempo. Um alemão do pós-guerra, com membros da família que partilhavam as mesmas visões racistas e de superioridade branca que levaram a Europa à guerra total e ao extermínio de milhões de pessoas, que, pela capitulação total, foi forçado a “aprender” que esse tipo de colocação, em público, é “feia”, mas que, no privado, pode ser compartilhada à vontade. Em plena década de 2020, em que o mundo político parece estranhamente se tornar saudosista das décadas de 1920 e 1930, tais figuras veem a oportunidade de trazer à tona aquilo que permaneceu enterrado por quase um século, sem jamais morrer de fato.
O papel crucial que tais figuras exercem na política mundial não é o de agente revolucionário em si, visto que, em determinada medida, esses políticos ainda mantêm um pé naquilo que se convencionou ser “civilizado” no pós-Guerra Fria. Sua função, ao que parece, é a de ser um agente transitório que prepara a sociedade para a chegada daquilo que os antigos gregos já nomeavam como demagogós, ou, literalmente, “líder da massa”.
Como bem dizia Aristóteles, em seu livro “Política”:
“Um tipo de democracia é aquele em que todos os cidadãos de nascimento ilibado participam dos cargos públicos, mas que a lei reina; noutra, basta alguém ser cidadão para acessar todos os cargos públicos, mas a lei governa; mas outra é aquela em que tudo funciona, mas a multidão tem a decisão final, não a lei. Neste caso, tudo é decidido por votação popular e não pela lei; e isso acontece por meio dos líderes populares (demagogos). Pois, nas democracias em que a lei prevalece, não surgem demagogos, (…) porém, onde as leis não decidem, surgem demagogos“12.
Políticos como Merz não são demagogos. Eles ainda estão ligados às leis, seja por crença pessoal, seja por inabilidade ou falta de interesse em sobrepujá-las. Seu papel, no entanto, consciente ou inconsciente, é o de enfraquecer as instituições a tal ponto que os reais demagogos possam surgir e, a partir desse momento, não mais a lei reine, mas a “vontade popular”. Aquela que não se baseia em princípios, mas que é arbitrária, não-humana, não-civilizada. A corrupção da democracia, como fala Aristóteles, já foi observada em vários momentos da história. Mas, aparentemente, nossa geração poderá vivenciar mais um episódio desnecessário deste fenômeno.
1 – https://www.bundesregierung.de/breg-de/aktuelles/rede-kanzler-handelskongress-2393818
2 – https://www.youtube.com/watch?v=qE4Ws_jcJPY
3 – https://www.youtube.com/watch?v=SDVvrQCdlV8
4 – https://www.youtube.com/watch?v=XdbUs-b7sCI
5 – https://www.facebook.com/watch/?v=10155863259214407
6 – https://taz.de/Merz-bejubelt-rechten-Grossvater/!806584
7 – https://www.hagalil.com/archiv/2004/01/merz.htm
8 – https://katapult-magazin.de/de/artikel/ist-der-vergleich-zulaessig
12 – Aristoteles. Politik. Hamburg: Rowohlt Taschenbuch Verlag, 2014. (pg. 186).
