O paradoxo alemão do imigrante

Lendo o noticiário e os discursos de políticos do governo alemão (há anos já), entende-se rapidamente o que o país tem interesse em atrair estrangeiros, devido à falta de mão-de-obra nacional. Mas a prática da sociedade e governo alemães mostra o exato oposto.

Durante o que ficou conhecido como “Crise dos Refugiados” entre 2014-15, a então chanceler alemã, Angela Merkel, fez um discurso em que pronunciou uma frase emblemática que ressoa até hoje no país: “nós damos conta disso” (wir schaffen das). Ela defendia à época sua política de portas abertas, pela qual milhares de migrantes, fugindo da guerra em países do Oriente Médio e Norte da África, chegavam às portas da União Europeia. Em parte percebida como uma forma de “revitalização da imagem” (rebranding) do país, conhecido ainda hoje por seu passado tenebroso nacional-socialista, a política de receber pessoas refugiadas fazia parte de uma política maior de atrair mão-de-obra estrangeira, visando a diminuir este problema que o país enfrenta há anos.

Falta gente

No fim de 2022, os dados do Instituto da Economia Alemã (IW)1 apontavam para uma “lacuna” de meio milhão de pessoas que “faltavam” para suprir vagas no país. Esse número significa que, considerando as vagas abertas na Alemanha (em todas as áreas) e a quantidade de pessoas desempregadas para ocupá-las, ainda seriam necessários cerca de 533.000 indivíduos a mais para suprir a demanda. A Alemanha fechou 2023 com uma situação que pode ser considerada de “pleno emprego”, contando apenas 5,7%2 de desemprego.

“Fechado devido à falta de pessoal”. Fonte: Business Insider.

Essa falta de pessoas se percebe no dia-a-dia muito além das placas recorrentes em praticamente todos os negócios que anunciam vagas abertas, procurando às vezes urgentemente por reforço. Muitos negócios acabam diminuindo a carga horária de funcionamento, porque não há pessoas o suficiente para trabalhar em determinados horários. Mas não é só o comércio que se prejudica. Serviços públicos necessários para o quotidiano de milhões de pessoas, como creches, escolas ou mesmo repartições públicas, passam a abrir mais tarde, fechar mais cedo ou abrir apenas alguns dias na semana. E o buraco não diminui, pelo contrário, continua piorando ano após ano3. Com uma taxa de 1,53 criança por mulher (em 2020), o crescimento da população da Alemanha está estagnada. A solução para a falta de pessoas parece então clara: buscar pessoas no exterior.

Buscar trabalhadores no exterior não é novidade para a Alemanha. Logo após a Segunda Guerra Mundial, devido ao que ficou conhecido como “Milagre Econômico Alemão”, nas décadas de 1950 e 1960, o país passou por uma falta de mão-de-obra. Foi quando Bonn (à época, capital do país) fechou acordos com a Turquia, Itália, Espanha e Grécia para que nacionais desses países pudessem ser contratados por empresas alemães e fossem trabalhar no país como “trabalhadores convidados” (Gastarbeiter). A ida dessas pessoas para trabalhar na Alemanha, no entanto, era pensada como limitada, sem que houvesse intenção do governo alemão na estadia prolongada dessas pessoas. Elas deveriam servir somente para suprir a lacuna na mão-de-obra e, uma vez resolvida essa questão, deveriam voltar para seus países4.

Assim, eram-lhes oferecidas barracas próximas ao local de trabalho como “habitação” e, visando à volta dessas pessoas depois de um certo tempo, não lhes era ofertada a oportunidade de aprender o idioma propriamente ou de trazê-las para dentro da sociedade alemã. Consequentemente, esses “trabalhadores convidados” permaneceram à margem, sem se sentir como parte do novo país e sem se integrar. A política de busca de mão-de-obra estrangeira seria freada de toda forma com o primeiro Choque do Petróleo na década de 1970, quando as vagas de emprego encolheram. Muitos trabalhadores estrangeiros, porém, ficaram.

O resultado disso é que 28,7% da população alemã tem um “passado migratório”5, ou seja, são filhos ou netos daqueles estrangeiros que vieram trabalhar temporariamente e fizeram vida na Alemanha. Um problema recorrente, no entanto, é que essas pessoas não são consideradas, por muitos “alemães raiz”, como “alemães”. Na prática, muitos não são alemães oficialmente, dado que seus pais ou avós não tiveram direito à cidadania alemã, mesmo trabalhando e pagando impostos por décadas e, assim, essas pessoas que nasceram e se criaram aqui só são consideradas nacionais de outros países. Lê-se logo muito sobre a “má-integração” desses estrangeiros que falam “alemão quebrado”, “têm sobrenome estranho” e “não seguem as leis alemãs”. Isso, porque, para muitos, ser “alemão” vai muito além do que ter cidadania ou falar o idioma. “Boa integração”, no entanto, é um termo sem significado, já que ninguém fala o que de fato isso significaria – muito provavelmente, porque ser mais claro quanto a isso pode exigir que se tragam vocabulários que remetem a discursos das décadas de 1920/30. Para muitos, então, é melhor continuar no discurso mais vago.

Mesmo problema, mesma solução, mesmo tratamento

Em face de uma nova falta de mão-de-obra, a Alemanha busca novamente atrair estrangeiros, sem fechar acordos específicos com países. Políticos em Berlim discursam há anos sobre a falta de mão-de-obra e da necessidade em tornar o país mais “atraente” para estrangeiros que tenham experiência e capacitação para preencher as vagas que a população alemã já não conseguem mais suprir.

Novamente, lendo o noticiário, percebe-se uma vontade política em fazer com que isso de fato aconteça. Aprovam-se leis para fazer com que diplomas sejam reconhecidos, a emissão de permissão de residência seja agilizada e, mais recentemente, até mesmo uma obtenção da cidadania alemã seja possível em menos tempo – em alguns casos, até um tempo recorde de três anos. Mesmo assim, dados da pesquisa Expat Insider, que analisa a atratividade de países para estrangeiros, mostram que a Alemanha está na posição 49 dentre os 53 países analisados6. Atônitos na maioria das vezes, muitos alemães se perguntam o porquê disso. Basta não ser “alemão raiz” para entender.

Apesar de prover segurança trabalhista, estrangeiros ranqueiam a Alemanha mal em quesitos como digitalização (que é quase inexistente), administração pública complicada (que dificulta a vida prática), mercado imobiliário saturado (que inviabiliza o orçamento ou a habitação) e sociabilidade (que impede a tão preciosa integração). Cerca de 55% dos entrevistados indicam que acham difícil fazer amizades localmente, enquanto um terço aponta que sentem que os alemães não são simpáticos com estrangeiros7. Esses relatos mostram que o dia-a-dia na Alemanha vai bem além de ter que tratar com a “frieza” cultural desse povo germânico. Um resultado prático disso é que, mais uma vez, trabalhadores estrangeiros são marginalizados, reunindo-se apenas entre os seus ou outros estrangeiros, muitas vezes não desenvolvendo seus conhecimentos linguísticos e, consequentemente, “não se integrando” propriamente.

Para além dessa parte “social”, percebe-se que a vontade de tornar o país atrativo para estrangeiros termina nos discursos e na aprovação de leis mais “atrativas”. Isso porque, não se percebe investimento financeiro, de capacidade ou humano na infraestrutura do país para receber esses estrangeiros. Os chamados “Escritórios de Estrangeiros” (Ausländerbehörden) são uma grande dor de cabeça na vida dos estrangeiros na Alemanha. Os motivos para isso são diversos: a necessidade em resolver quase tudo via carta, a espera de meses (ou anos) para horários de atendimento ou o “silêncio” também por meses dos Escritórios (que não responde a cartas, e-mails ou telefonemas). Esta repartição pública alemã é um dos grandes multiplicadores do sentimento que é nutrido por muitos estrangeiros de que os alemães não querem pessoas de fora em seu país.

Usuário no Twitter/X fala sobre a espera no Escritório dos Estrangeiros em Darmstadt, onde pessoas chegavam às 4h da manhã e podiam passar o dia inteiro esperando para um horário de atendimento que só aconteceria meses depois, sem ter certeza que conseguiriam o horário.

Muitos já denunciaram as condições “não-humanas” que alguns Escritórios de Estrangeiros fazem estrangeiros passar, com esperas de horas no frio para marcar um horário para tratar de um assunto (que nunca será no mesmo nem, nem no mesmo mês) ou esperar meses para conseguir os documentos necessários para ficar ou trabalhar legalmente na Alemanha. Essas denúncias aparecem, vez ou outra, como postagens menores em portais de notícia, mas jamais em noticiários televisivos. Quando algum jornal resolve inquirir as prefeituras, responsáveis por esses locais, sobre essas condições, as respostas sempre são as mesmas: não há pessoal para tratar a questão.

A verdade é que não há interesse em investir nesses locais. A prática mostra uma realidade oposta ao discurso político, a de que não há interesse verdadeiro em trazer pessoas de fora. Aprovar novas leis que não podem ser levadas a cabo por funcionários in loco é fazer uma política conhecida no Brasil como “para inglês ver“. Outros países, até mesmo na Europa, afirmam querer estrangeiros, aprovam leis para atraí-los e investem para que os processos corram de maneira mais fluida. Na terceira economia mundial, porém, parece que há uma crença de que o discurso já basta.

Não bastasse a impressão, há a prática de alguns

O desenvolvimento político atual da Alemanha está criando mais um medo para muitos estrangeiros. As pesquisas políticas, conduzidas quase toda semana, apontam que o partido de extrema-direita “Alternativa para Alemanha” (AfD) está se consolidando como o segundo partido político mais forte do país. Atrás apenas da “União Democrata-Cristã da Alemanha” (CDU) de centro-direita, partido de Merkel, que tem desenvolvido um discurso cada vez mais populista, por meio de seu presidente Friedrich Merz. Dividem o governo três partidos opostos: o “Partido Social-Democrata da Alemanha” (SPD) de centro-esquerda, o “Partido Democrático Liberal” (FDP) de direita e os “Verdes” de esquerda. A chamada “Coalizão Semáforo” (que faz referência às cores dos três partidos) tem mostrado dificuldade em passar a imagem de que a Alemanha tem um governo estável, já que, nos últimos dois anos de governo, ministros que vêm de partidos opostos têm mostrado divergência aberta em público. Os populistas da AfD se aproveitam da desunião do governo para atacá-lo e aquecer o debate público, trazendo mais desunião e discórdia, jogando pela cartilha da extrema-direita. Por outro lado, buscando uma sobrevida política, políticos da CDU embarcam na adoção de motes populistas, para não perder voto para a extrema-direita, fazendo um discurso quase idêntico.

Com notórios fascistas e neo-nazistas em seus escalões, a AfD causou muito recentemente uma onda de protestos, após ter sido revelado pelo centro de pesquisa Correctiv que membros do partido realizaram uma reunião secreta para discutir um plano secreto para a deportação de milhões de “estrangeiros” (que, para eles, são pessoas que podem ter nacionalidade alemã, mas não são “alemães raiz”)8. Esta bandeira é conhecida por extremistas de direita como “remigração” e se assemelha a planos nazistas das décadas de 1920/30. Mais de um milhão de pessoas em toda a Alemanha têm tomado as ruas em várias cidades desde que esse plano foi relevado no começo de janeiro para mostrar seu repúdio ao crescimento da extrema-direita9.

Não só cidadãos comuns, mas também políticos e membros do governo se posicionaram contra o partido. Em um vídeo no canal oficial da chancelaria no Instagram, o chanceler Olaf Scholz expressou a preocupação dos estrangeiros que se perguntam atualmente “se eles têm um futuro na Alemanha“, reforçando logo em seguida que sim e rechaçando a extrema-direita10. De fato, como afirmou Scholz, estrangeiros (ou pessoas com “passado migratório”) estão presentes em todas as constelações alemãs: seja o padeiro, o colega de trabalho, a amiga da escola ou universidade ou a vizinha. A declaração, assim como os protestos, tem também a intenção de passar a imagem que a maioria na Alemanha defende o direito dos estrangeiros em ficar e se posiciona contra os extremistas. Discurso, importante, mas discurso.

No entanto, um crescente quinto dos eleitores alemães ainda tem intenção de votar nas listas da AfD. Em alguns estados da antiga Alemanha Oriental, o partido chega aos 30% de apoiadores entre os eleitores e eleger cargos executivos, como na prefeitura de uma cidade no estado da Saxônia-Anhalt.

Para além disso, a “ideia” causa a “realidade” em muitos casos. A falta de vontade dos alemães em interagir com estrangeiros causa a sua isolação em nichos de estrangeiros, o que, por vez, dificulta a sua integração na sociedade. Essa falta de integração, então, vira argumento de alimenta populistas que crescem rapidamente e podem causar estragos políticos e sociais.

Resumidamente, o paradoxo alemão do estrangeiro se traduz com: o estrangeiro é necessário, é retratado até como a “salvação” do país, mas, ao mesmo tempo, é usado como bode-expiatório para diversas mazelas do país. Entre “atrair” e “repulsar”, a Alemanha continua caminhando nesse caminho estreito em busca de aceitar o que parece ser a única solução para seus problemas: abrir-se para o diferente, o estrangeiro.

Fontes

1 https://www.deutschlandfunk.de/arbeitsmarkt-fachkraeftemangel-zuwanderung-arbeitslosigkeit-deutschland-100.html

2 https://www.arbeitsagentur.de/news/arbeitsmarkt

3 https://www.spiegel.de/wirtschaft/fachkraeftemangel-erreicht-neues-rekordniveau-a-6cebffa8-d308-4a90-9d36-e9936ee1d031

4 https://www.planet-wissen.de/geschichte/deutsche_geschichte/geschichte_der_gastarbeiter/index.html

5 https://www.svr-migration.de/wp-content/uploads/2023/12/SVR-Kurzbuendig_Einwanderung_2023.pdf

6 https://www.iamexpat.de/expat-info/german-expat-news/unhappy-and-lonely-germany-ranks-49th-new-expat-countries-survey

7 https://www.ovb-online.de/weltspiegel/made-in-germany-ist-ein-witz-warum-sich-auslaender-in-deutschland-ueberhaupt-nicht-wohl-fuehlen-92417328.html

8 https://correctiv.org/aktuelles/neue-rechte/2024/01/10/geheimplan-remigration-vertreibung-afd-rechtsextreme-november-treffen/

9 https://www.focus.de/politik/deutschland/die-schweigende-mitte-erhebt-ihre-stimme-wir-sind-die-brandmauer-bis-zu-5000-menschen-demonstrieren-in-cottbus_id_259594462.html

10 https://www.instagram.com/p/C2SG8nROk91/

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