UNIVERSIDADES, AUTOCRACIAS E LAMENTOS

Em janeiro de 2025 Trump assume a presidência dos Estados Unidos, e entre outras promessas de campanha, assume o compromisso de reprimir manifestações pró-palestinas, entendidas por ele como antissemitas. É inegável o conteúdo antissemita em muitas das manifestações pró-palestina, no entanto, a generalização é maliciosa, já que impede também protestos que respeitam os Direitos Humanos e lutam apenas pelo cessar das agressões. Sobre a questão israelo-palestina, nuance é vital, e se perde em generalizações.

Aqui é válido pensar o porquê do comportamento generalista. Pode-se argumentar, com alguma razão, uma heurística específica da direita americana – esses atalhos mentais comuns da mente humana que conservam energia e otimizam o processo mental, mas que podem gerar erros de interpretação, comportamentos fóbicos e inadequação de respostas, como no caso. Pode-se argumentar, igualmente, um compromisso estadunidense histórico com a preservação do Estado de Israel e o direito dos povos judeus como um todo. Pode-se também argumentar a relação única e estratégica entre os dois países, já que Israel serve como um aliado útil em uma região contenciosa.    

Talvez todas essas respostas sejam não apenas possíveis, mas corretas, e contribuam em alguma medida para o mosaico da situação. Ainda assim, gostaria de oferecer mais uma razão, essa menos comentada pela mídia tradicional, mas que a meu ver merece também atenção: a liga autoritária. Como argumentei em maior fôlego em uma coluna anterior intitulada “interdependência e suas promessas vazias” (e recomendada para mais detalhes), regimes contemporâneos com tendências ao autoritarismo tendem a se unir em ajuda mútua.  

Seja como for, a promessa de repressão às manifestações pró-palestinas foi cumprida ainda em janeiro deste ano com o uso de medidas executivas (vindas diretamente do presidente Trump) que demandavam às universidades fiscalizar seus alunos, em especial estrangeiros, e que tomassem providências severas uma vez que a associação destes com os movimentos pró-palestina fosse encontrada. As medidas executivas versavam ainda sobre a repressão de políticas de DEI (Diversidade, Equidade e Inclusão), o carro chefe da “luta cultural” da direita estadunidense conservadora branca e cristã. 

Em fevereiro, o departamento de justiça americano criou uma força especial contra o antissemitismo em escolas e universidades, visitando, entre outras instituições de ensino, Columbia e Harvard. Dia 7 de março o executivo cortou quatrocentos milhões de dólares em financiamento (contratos e subsídios federais) para Columbia, oferecendo como razão a inação da universidade em combater o antissemitismo em seus campi. Ainda nesse mesmo mês a ameaça velada da ação de 7 de março foi desvelada com uma carta do departamento de educação estadunidense às demais universidades visitadas pela força especial do departamento de justiça. No dia 21 de março, Columbia acata as ordens trumpistas e bani o direito de usar máscaras em seus campi (facilitando a identificação dos militantes), além de autorizar a polícia dos campi a prender os manifestantes. Não somente isso, mas Columbia elege um novo administrador para monitorar os Departamento de Estudos de Oriente-Médio, Sul-Asiático e África e o Centro para Estudos Palestinos. Caso não tenha ficado claro ao leitor, trata-se de censura, já que a falta de nuance entre antissemitismo e crítica às ações atuais de Israel ou em defesa do apoio humanitário na região limita substancialmente o que se pode dizer, pesquisar ou publicar. 

Situações semelhantes ocorreram ao longo da história. Lembre-se, por exemplo, do apoio dado ao governo Hitler pela Universidade de Heidelberg, expurgando discentes e docentes judeus, queimando livros anti-germânicos, e claro, censurando institucionalmente departamentos, centros de estudo, pesquisas e movimentos pró-judeus. Um exemplo mais próximo de nós, a antiga Universidade do Brasil, hoje UFRJ, foi uma apoiadora ávida do Estado Novo varguista, promovendo o ideário da “educação cívica” e controle ideológico via Ministério da Educação, e especialmente garantindo que professores fizessem parte do governo ditatorial enquanto influenciavam diretamente o currículo. A história há de julgá-los todos.

No dia 31 de março, os departamentos de educação, saúde e U.S. General Service Administration anunciaram a revisão de 255,6 milhões de dólares em subsídios e 8,7 bilhões de dólares em contratos com Harvard, ainda sob a desculpa da luta contra o antissemitismo. Dia 11 de abril o governo Trump enviou uma carta reiterando suas demandas para Harvard. 14 de abril Harvard recusa as exigências, dizendo que a universidade não abriria mão de sua independência e direitos constitucionais, o que faz com que a receita federal estadunidense (IRS) ameace revogar seu status de isenção fiscal e o financiamento à pesquisa começar a ser congelado. É a partir desse evento que dois polos do conflito são delineados: o governo autoritário Trump contra Harvard e sua luta pela independência intelectual e liberdade. Após esse evento, várias outras datas se seguem em que o governo congela ou encerra várias fontes de renda e fundos para a universidade – o que será devastador para o desenvolvimento tecnológico do país -, até que em 22 de maio Kristi Noem, Secretária de Segurança Interna dos EUA, revoga a certificação da universidade no SEVP (Student and Exchange Visitor Program), ameaçando o futuro dos estudantes e professores internacionais. Nessa lógica, todos os estudantes internacionais, incluindo aqueles já matriculados e cursando, terão seus vistos suspensos daqui em diante. Um juiz federal emitiu uma liminar para bloquear essa medida, e a disputa pode acabar sendo julgada pela Suprema Corte.   

É claro o uso da desproporcional “ameaça antissemita” como desculpa para uma ação autoritária. É também claro seu foco indevido nos imigrantes e ideologias anti-trumpistas. Ainda mais claro o ataque à uma instituição que pode ser uma adversária política – instituição essa mais antiga que o próprio país independente dos EUA, formadora histórica de presidentes e tomadores de decisão pelo mundo todo. Em análise publicada pela GZERO Media, Ian Bremmer argumenta que a confrontação em si parece ser o verdadeiro objetivo da estratégia adotada. Trump parece compreender que instituições como Harvard — diferentemente de atores estatais como a China — não possuem os meios institucionais para oferecer uma resposta simétrica. Além disso, Trump reconhece que, ao provocar a reação de defesa por parte do Partido Democrata, especialmente em favor de uma universidade vista como símbolo da elite progressista e liberal, fortalece a coesão de sua base eleitoral, particularmente em momentos de instabilidade econômica, como o aumento das expectativas inflacionárias. A escolha de Harvard como alvo se insere, portanto, em uma lógica populista de enfrentamento simbólico com as chamadas “elites”.

Esse tipo de manobra já foi empregado anteriormente em outras frentes: por exemplo, ao realizar deportações sumárias de imigrantes em situação irregular, o governo força os oponentes políticos a tomarem a defesa de indivíduos que a narrativa trumpista associa — frequentemente sem provas — a organizações criminosas. A mensagem política construída por Trump é direta e eficaz: enquanto os democratas estariam do lado de imigrantes ilegais e supostos criminosos, ele estaria defendendo os interesses do “americano comum”.   

Como consequência, as ações comprometem diretamente a capacidade dos Estados Unidos de atrair talentos globais (ou mesmo de impedir a evasão de sua mão-de-obra qualificada), especialmente nas áreas de ciência e saúde pública. A sinalização de que estudantes estrangeiros não gozarão das mesmas garantias constitucionais que os cidadãos americanos pode desencorajar a vinda de acadêmicos altamente qualificados, afetando negativamente a produção científica e a liderança internacional do país no longo prazo. 

Se Columbia encontra na UFRJ e Universidade de Heidelberg seus pares na história, os pares de Harvard são outros, a começar pela universidade recentemente comentada pelo The New York Times (precisamente por seus paralelos com a história recente de Harvard), a Universidade Centro Europeia (CEU). Fundada em 1991 com o objetivo de promover a democracia, os direitos humanos e o pensamento crítico nos países da Europa Central e do Leste após o colapso do bloco soviético, a universidade possui uma história recente de luta anti-autoritária da qual Harvard pode tirar várias lições úteis. Criada a partir da idealização do filantropo George Soros, que buscava evitar que a história de seu país se repetisse – Soros é um judeu húngaro sobrevivente da invasão nazista e do regime comunista que conseguiu sucesso financeiro na Inglaterra e posteriormente nos EUA (e por isso é alvo de amplas conspirações de autocracias, geralmente com um cunho antissemita) – a CEU é hoje uma das dez universidades mais prestigiosas da Europa.

No fim dos anos 80 a Open Society Foundation – um outro braço educacional dos esforços democráticos de Soros – ajudou financeiramente os estudos de um outro húngaro famoso: Viktor Orbán. A partir de 2010, com a ascensão de Orbán e seu governo autoritário na Hungria, a CEU enfrentou crescentes restrições legais e políticas, culminando em uma lei em 2018 que tornou impossível a permanência da CEU em Budapeste, acusando-a de operar ilegalmente, embora cumprisse todas as exigências internacionais de ensino superior. Em 2019, a CEU transferiu sua sede para Viena, Áustria, onde já tinham planos para uma filial. Hoje, a universidade pode ser vista em seu exílio no prédio de um antigo banco do distrito 10 de Viena, ainda operando segundo a mesma missão. Como propõe o artigo do The New York Times, existem sempre três opções: exilar-se, lutar e se calar. A CEU não possuía os recursos para o segundo, nem a covardia para o terceiro. Sobrou-lhe o primeiro. 

Um outro par histórico curioso é o do Instituto para Pesquisa Social da Universidade de Frankfurt, que nos anos 30 age contra o nazismo e curiosamente encontra refúgio na universidade de Columbia (essa mesma que hoje se associa ao regime autoritário trumpista). Em tempos de retrocesso democrático global e de uma nova aliança entre populismos autoritários, o papel das universidades volta a ser crucial — como espaço de crítica, diversidade e imaginação política. Harvard, agora sitiada, pode encontrar na CEU, em Frankfurt dos anos 1930 e em todas aquelas que se recusaram a ajoelhar-se, não apenas exemplos históricos, mas uma genealogia de resistência à qual passa a pertencer.

A questão que permanece, contudo, é inquietante: quantas outras universidades escolherão o silêncio — ou pior, a colaboração? E quantas estarão dispostas a pagar o preço por não se calarem? A resposta, como sempre, dirá mais sobre o futuro do que sobre o passado.

Referências:

Blinder, A. (2025, June 8). Harvard’s battle is familiar to a university the right forced into exile. The New York Times.https://www.nytimes.com/2025/06/08/us/trump-harvard-hungary-orban-george-soros.html

Bremmer, I. (2025, June 3). Trump’s Harvard crackdown is good politics, but his war on global talent will cost America dearly. GZERO Media. https://www.gzeromedia.com/by-ian-bremmer/trumps-harvard-crackdown-is-good-politics-but-his-war-on-global-talent-will-cost-america-dearly

Cser, A. (2007). Kleine Geschichte der Stadt Heidelberg und ihrer Universität. Karlsruhe: Verlag G. Braun.

Department of Education, Department of Health and Human Services, & General Services Administration. (2025, April 11). Letter sent to Harvard University outlining conditions for maintaining federal research funding. Harvard University. https://www.harvard.edu/research-funding/wp-content/uploads/sites/16/2025/04/Letter-Sent-to-Harvard-2025-04-11.pdf

Molinero Jr., G. R. (2025, May 30). Interdependência e suas promessas vazias. DPolitik. https://dpolitik.com/blog/2025/05/30/interdependencia-e-suas-promessas-vazias/

Queiroz, A. C. B. (2021). As memórias em disputa sobre a ditadura civil-militar na UFRJ: Lugares de memória, sujeitos e comemorações. Tempo, 27(1), 185–203.

The White House. (2025, January 29). Additional Measures to Combat Anti‑Semitism (Executive Order No. 14188). https://www.whitehouse.gov/presidential-actions/2025/01/additional-measures-to-combat-anti-semitism/

Trump promises crackdown on pro‑Palestinian protests if elected. (2024, May 28). Al Jazeera. https://www.aljazeera.com/news/2024/5/28/trump-promises-crackdown-on-pro-palestinian-protests-if-elected

U.S. Department of Education. (2025, March 7). DOJ, HHS, ED, and GSA announce initial cancelation of grants and contracts to Columbia University worth $400 million [Press release]. https://www.ed.gov/about/news/press-release/doj-hhs-ed-and-gsa-announce-initial-cancelation-of-grants-and-contracts-columbia-university-worth-400-million

U.S. Department of Education, U.S. Department of Health and Human Services, & U.S. General Services Administration. (2025, March 31). Agencies announce review of contracts and grants with Harvard University amid anti-Semitism concerns [Press release]. https://www.ed.gov/about/news/press-release/doj-hhs-ed-and-gsa-announce-initial-cancelation-of-grants-and-contracts-columbia-university-worth-400-million

U.S. Department of Health and Human Services, Office for Civil Rights. (2025, May 22). OCR Joint Notice of Violation to Columbia University [Notice of violation]. https://www.hhs.gov/hipaa/for-professionals/compliance-enforcement/agreements/ocr-joint-notice-of-violation-to-columbia.html


U.S. Department of Justice. (2025, February 3). Justice Department announces formation of task force to combat anti‑Semitism [Press release]. Office of Public Affairs. https://www.justice.gov/opa/pr/justice-department-announces-formation-task-force-combat-anti-semitism