Síria Revisitada: os desafios externos da reconstrução

Por Nicolas Zupardo Dutra* e Cinthya Araújo

Em dezembro de 2024, publicamos uma coluna discutindo a ofensiva rebelde síria e as implicações da mesma para o futuro do país. O presente texto pode ser entendido como uma continuação da coluna original, essencialmente revisitando a Síria e buscando entender o que aconteceu nos últimos nove meses. A fim de tornar o entendimento do contexto sírio mais efetivo, essa é a primeira parte da análise, focada em compreender os aspectos  externos do atual governo. Portanto, a presente coluna irá abordar como a vasta gama de atores estrangeiros, alguns com uma presença militar dentro do país, entre Israel, Rússia, Turquia, Estados Unidos e outros, operam no entorno do país. 

Contextualização

A Guerra Civil Síria teve uma reviravolta dramática quando no final de 2024, grupos rebeldes iniciaram uma ofensiva, tomando a capital, Damasco, em menos de 2 semanas, e encerraram o governo de mais de 50 anos da família Assad. De maneira resumida, a queda do governo de Bashar Al-Assad pode ser compreendida através de  uma deterioração contínua de sua base de poder, devido ao agravamento das condições de vida, à escassez de serviços básicos e à insatisfação mesmo em áreas tradicionais e leais ao regime. Em paralelo a esse processo, grupos rebeldes, especialmente o grupo jihadista liderado por Ahmed Al-Sharaa, o Hayat Tahrir Al-Sham (HTS), mantiveram focos ativos de resistência e desenvolveram suas capacidades militares contra o regime Assad através de um processo de institucionalização do HTS. Nesse sentido, a desarticulação econômica do regime, somada à retirada gradual de parceiros como Rússia e Irã, diante de outras prioridades estratégicas, resultou em dezembro de 2024 em um paradigma ideal para uma ofensiva rebelde. Assim, apesar da queda de Bashar al-Assad se concretizar de forma abrupta, ela se deveu a uma deterioração contínua de sua base de poder, marcada pela erosão da autoridade central e pela fragmentação territorial. É dentro desse contexto que o atual Governo Transicional Sírio, encabeçado por Ahmed Al-Sharaa, surge. Apesar da inauguração do mesmo ter de fato encerrado um ciclo do conflito sírio, o novo governo deu início a uma fase de incerteza a respeito do novo Estado Sírio, devido a vasta gama de desafios presentes dentro da Síria, passando por uma crise econômica agravada por sanções internacionais, a erosão da autoridade central e a dificuldade inicial de reconhecimento do Governo Transicional Sírio, devido às conexões do mesmo com antigas organizações jihadistas.

A ofensiva diplomática síria  

O príncipe herdeiro saudita Mohammed bin Salman, à direita, dá as boas-vindas ao presidente sírio Ahmad Al Shara em Riade, em 2 de fevereiro de 2025. Foto: EPA

Dentro desse panorama, a política externa síria se divide em dois eixos principais nos dois últimos nove meses, sendo eles primeiramente o reconhecimento do novo Governo Transicional Sírio como um ator legítimo internacionalmente e além dele a reconstrução e a estabilização do país, tanto sobre a perspectiva econômica quanto da segurança síria, com esse processo sendo conduzido essencialmente por Ahmed Al-Sharaa. O primeiro eixo a ser abordado será o reconhecimento do atual governo sírio como um ator legítimo, algo dificultado devido ao que pode ser entendido como uma preocupação no âmbito internacional ao redor do governo sírio pós-Assad, pois o grupo Hayat Tahrir Al-Sham se constituiu inicialmente como um grupo explicitamente jihadista com um histórico de violações de direitos humanos. O grupo recebeu de fato a designação de organização terrorista por uma série de países, incluindo os Estados Unidos, Rússia, Turquia e a União Europeia e o próprio Al-Sharaa foi designado como um indivíduo apoiador do terrorismo.  

Esse paradigma implicou em uma certa temeridade de outros atores do Sistema Internacional se engajar de maneira efetiva com a atual liderança síria, algo exemplificado pelos debates entre policy makers dos Estados Unidos, com o mesmo debate ocorrendo dentro da União Europeia, em ampliar relações diplomáticas com a Síria, devido ao histórico do governo com grupos jihadistas. Nesse sentido, a liderança síria, se engajou em uma verdadeira ofensiva diplomática ao redor do mundo, tentando apresentar o atual governo como composto por atores capazes de exercer governança local, fornecer segurança e se envolver de maneira pragmática com países no seu entorno, distantes de seu passado jihadista. Logo, o Ministério de Relações Exteriores e Expatriados Sírio, sobre o comando de Assad Al-Shaibani, se engajou em um esforço maciço, realizando em cerca de nove meses, 1.500 engajamentos diplomáticos com cerca de 87 países ao redor do mundo, além de instituições internacionais como o Tribunal Penal Internacional e uma série de órgãos da Organização das Nações Unidas. Esse esforço, centrado no reconhecimento do Governo Transicional Sírio como autoridade legítima sobre o território sírio, recolheu frutos significativos. Apoiado pela intercessão de atores como Turquia e Árabia Saudita, ambos ansiosos com a proposta de um governo em Damasco alinhado com seus interesses e longe da influência iraniana, o novo governo sírio conseguiu um aliviamento significativo das principais sanções colocadas sobre a Síria durante o governo de Assad e o reconhecimento de sua autoridade sobre a Síria de uma série de Estados, que vão desde a China e  Rússia  à União Europeia e os Estados Unidos.

Nesse sentido, cabe um breve destaque da relação entre a Síria e os seus dois principais parceiros no âmbito internacional: a Árabia Saudita e a Turquia. Ambos Estados possuem um forte papel na normalização do novo governo sírio, e, dialogando com o segundo eixo mencionado anteriormente, a reconstrução do país. Como abordado anteriormente, a Árabia Saudita desempenha um papel crítico na reinserção da Síria no sistema internacional, como demonstrado pela intercessão saudita perante os Estados Unidos, contribuindo para a reunião entre Al-Sharaa e Donald Trump em maio deste ano, normalizando relações entre ambos Estados, mas além disso, os sauditas são uma das principais fontes de fundos para a reconstrução da Síria, algo demonstrado, por exemplo, pelas propostas de investimento bilionárias visando recapitalizar a infraestrutura síria. Já a Turquia, além do papel diplomático e também financeiro, possui uma relação que dialoga mais com questões na área de segurança, com o Governo Transicional Sírio possuindo uma parceria significativa militar com o governo turco, incluindo compartilhamento de inteligência, intercâmbios militares e recentemente, transferências de equipamento militar turco para forças militares sírias. De maneira simples, ambos Estados são um componente da política externa síria, sendo responsáveis por quase um terço dos engajamentos diplomáticos sírios no último ano.

Dentro desse paradigma, cabe ressaltar a atuação de outros atores dentro da Síria. Em uma breve análise sobre os principais atores, dois imediatamente saltam ao olhar: A Rússia e os Estados Unidos. Ambos ainda mantêm uma presença significativa militar dentro da Síria, no caso russo majoritariamente contida a base naval de Tartus e a base aérea de Hmeimim, enquanto forças norte-americanas possuem uma constelação de bases ao longo do nordeste sírio, em parceria com milícias curdas. Atualmente a presença militar russa na Síria é um resquício do apoio militar fornecido pelos russos a Assad, onde em troca do mesmo, os russos possuíam o direito de utilizar pontos estratégicos na Síria para viabilizar sua projeção estratégica no Oriente Médio e África como um todo. Essa mesma presença se vê em uma posição delicada devido ao governo russo atualmente abrigar a família Assad e a pressão ocidental visando o fechamento dessas bases, entretanto o governo sírio atualmente adotou uma posição marcada pelo pragmatismo, reconhecendo a presença militar russa no país, mas visando extrair concessões diplomáticas do Estado russo. Já a dinâmica em relação à presença militar norte-americana no país passa principalmente por duas questões: as tensões ao redor da minoria curda e a manutenção de sua autonomia, algo que será abordado com mais detalhe na segunda parte dessa coluna, e o interesse norte-americano em evitar o ressurgimento do Estado Islâmico (IS na sigla em inglês) na região. Nesse sentido, a presença norte-americana também é um resquício, mas da intervenção contra o IS ao longo da guerra civil síria. Apesar de discussões relacionadas a retirada de fato de todas as tropas norte-americanas da região, ainda existe essa presença devido às operações realizadas contra o IS, que são um ponto de cooperação entre o Governo Transicional Sírio e os Estados Unidos, devido à ameaça elencada por células do Estado Islâmico a estabilidade síria ao longo prazo. Além disso, é importante ressaltar que essa cooperação era algo já originário da cooperação entre o HTS e o governo norte-americano em eliminar células da Al-Qaeda dentro da Síria.

Os desafios externos de segurança e reconstrução síria: o papel israelense 

Paraquedistas israelenses, nesta sexta-feira, em frente à fronteira com a Síria. Foto: Reuters.

É possível observar então que apesar do sucesso do governo sírio em alcançar o reconhecimento internacional e o mesmo ter realizado alguns passos significativos para sua reconstrução econômica, ainda existem desafios na área de segurança para a reconstrução síria como um todo, com dois casos de interesse aparecendo no Líbano e em Israel. Primeiramente, o caso do Líbano, o qual foi marcado por choques entre forças militares sírias e tribos locais associadas com o grupo libanês Hezbollah, na fronteira dos dois países ao longo de março de 2025. Apesar das tensões iniciais, na qual a Síria acusou o Hezbollah de executar três de seus soldados e forças sírias terem respondido com bombardeamentos de posições libanesas, ambos os governos, após a deflagração dessa crise, entraram em acordo em busca de meios diplomáticos para resolver tal problema, enfatizando a importância da colaboração e da coordenação bilateral. Não houve, entretanto, diálogo direto com o Hezbollah ou grupos afiliados, apenas a iniciativa de delimitar suas fronteiras com base na cooperação com o Líbano. Essa iniciativa se demonstra como importante devido  a gama de atores irregulares que permeiam a fronteira de ambos os Estados e o papel dos mesmos em atividades como tráfico de armas e entorpecentes.

O caso israelense por sua vez apresenta uma complexidade significativa, posto que após dois dias da derrocada do governo de Al-Assad, Israel procurou fragilizar o poder bélico sírio em busca de, de acordo com fontes israelenses, impedir que este não fosse usado de forma imprudente pelo Governo Transicional Sírio, se valendo da justificativa das afiliações jihadistas do mesmo, lançando cerca de 500 ataques aéreos, destruindo grande parte do armamento e dos estoques militares sírios, incluindo, segundo informações, armas químicas. A resposta de Al-Shara para a situação não foi de contra-ataque; foi declarado, em particular e publicamente, que a Síria, sob seu governo, não será uma plataforma de lançamento para ataques a nenhum Estado vizinho, incluindo Israel. Ahmed Al-Sharaa declarou que continuará cumprindo o acordo de cessar-fogo de 1974 e pediu às potências estrangeiras maneiras de pressionar Israel a continuar também seguindo o acordo. Apesar disso, forças militares israelenses continuam suas operações dentro da Síria com certa frequência, e negociações por parte do Governo Transicional apresentam poucos resultados, o que apresenta um problema devido à franca superioridade militar israelense e capacidade do mesmo de exercer pressão sobre o Estado Sírio. Atualmente, militares israelenses ocupam uma faixa de território sírio e ataques aéreos israelenses à infraestrutura militar síria são comuns, totalizando cerca de 90 ao longo deste ano, inclusive, durante a escrita deste texto, a Força Aérea Israelense conduziu ataques contra depósitos militares sírios em Homs e Latakia. 

Além disso, existe um aspecto a ser ressaltado que é a interferência israelense na nova fase do conflito interno sírio, especialmente em questões relacionadas com a minoria étnico-religiosa drusa. Apesar desse conflito por si só ser abordado em mais detalhes na segunda parte da análise, a atual interferência israelense pode ser compreendida através do interesse dos mesmos em uma região drusa autônoma no sul da Síria como parte de uma zona tampão mais ampla na região. Esse projeto já era cobiçado por políticos israelenses antes da queda de Al-Assad devido à, na época, a presença de milícias iranianas na região, com a queda do governo de Assad oferecendo a oportunidade necessária para a consolidação do mesmo. 

Agora, por que especificamente os drusos como o principal componente desse projeto israelense no sul da Síria? De maneira resumida, drusos são um grupo étnico-religioso com uma presença significativa tanto na Síria quanto em Israel e lideranças drusas sírias, como Hikmat Al-Hijri, identificando esse interesse israelense, estabeleceram, através de líderes drusos israelenses como Mowafaq Al-Tariq, relações com oficiais israelenses ao longo do último ano, que além do interesse geopolítico, possuem um interesse em cultivar o voto druso israelense. Dentro dessa lógica, atritos entre lideranças drusas sírias e Damasco rapidamente culminam em operações militares israelenses contra forças do Governo Transicional Sírio, como exemplificado pelos choques em Jaramana em maio de 2025 e posteriormente em Suwayda em julho posteriormente. Dessa forma, o atual governo sírio se vê em uma posição extremamente precária no sul sírio, devido a incapacidade de efetivamente exercer sua autoridade na região. Entretanto, deve ser enfatizado que essas ações israelenses estão motivando o Governo Transicional Sírio em procurar parceiros estratégicos na área de segurança para agirem de maneira a oferecer um contrapeso às ações israelenses, como a Turquia já mencionada anteriormente como um importante parceiro econômico e político.

O futuro da Síria? Vamos para onde? 

Se por um lado, a Síria pós-Assad avançou no campo diplomático, em busca de se afastar de um passado jihadista, ao passo que conquista reconhecimento internacional e apoio econômico de atores regionais; por outro, continua enraizada em vulnerabilidades e pressões externas, para além das próprias disputas de poder no território. O Governo Transicional ainda tem um longo caminho para demonstrar capacidade efetiva de governança e estabilização interna, ao mesmo tempo que faz um jogo arriscado para equilibrar as relações com potências rivais.

A trajetória síria dependerá de uma amálgama de fatores, que se bem reunidos poderá transparecer a habilidade de transformar esse período ainda tão frágil em uma maior solidificação em sua soberania e reconstrução interna. Há nove meses encerramos a coluna sobre Síria com um tom esperançoso: “O governo da família Assad marcou a história da Síria e com o fim deste capítulo, a esperança é que os próximos sejam escritos com menos sangue”, no entanto, o que se vê nessa revisitação é que o contexto sírio entra em outra fase, numa mistura de novos e antigos atores. Nesse sentido, apesar da Síria de fato adentrar em uma encruzilhada histórica, marcada por possibilidades e oportunidades, ainda enfrenta incertezas significativas sobre o seu futuro.

*Nicolas Zupardo Dutra, graduando em Relações Internacionais pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB), membro do Grupo de Pesquisa em Estudos Estratégicos e Segurança Internacional (GEESI-UFPB).

O presente artigo tem por base informações obtidas até o dia 10 de setembro de 2025.

Referências

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https://warontherocks.com/2024/12/the-patient-efforts-behind-hayat-tahrir-al-shams-success-in-aleppo/

https://www.levantine.press/p/tour-de-force-foreign-affairs

https://www.reuters.com/world/middle-east/saudi-arabia-announces-64-billion-syria-investments-2025-07-24

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https://www.aljazeera.com/news/2025/8/27/israel-launches-new-operations-in-syria-after-strike-kills-soldiers

https://english.aawsat.com/arab-world/5184279-israeli-strike-hits-near-syrian-city-homs%C2%A0

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https://www.washingtoninstitute.org/policy-analysis/reducing-us-presence-syria-too-quickly-could-help-islamic-state

https://www.aljazeera.com/news/2025/3/17/syria-points-finger-at-hezbollah-as-fighting-erupts-on-border-with-lebanon

https://www.middleeasteye.net/news/turkey-begins-training-syrian-forces-under-new-security-deal

https://vizier.report/p/sunni-corridor-syria-linchpin