O que fazer quando votam contra o seu direito de votar

Era uma sexta-feira cedo em Viena. O frio do outono aparecia aos poucos, e com um café quente nas mãos eu esperava pelo trem que me levaria a Budapeste, atravessando a fronteira entre Áustria e Hungria. Adoraria estar indo a passeio – Budapeste é linda -, mas essa viagem seria talvez ainda mais interessante: teria a chance de assistir a uma palestra do professor Milan Svolik, possivelmente um dos maiores nomes no estudo de ditaduras e autocratização no mundo. 

Depois de duas horas e meia de viagem até Budapeste, e mais uma meia hora até o centro, finalmente cheguei ao antigo campus de minha universidade, a Central European University, forçada ao exílio em Viena pelo regime autoritário de Viktor Orban. É estranho ver tamanha beleza arquitetônica, e ao mesmo tempo sentir tamanha melancolia pelos fortes símbolos naquele campus de um outro tempo mais democrático. Subi as belas escadas até o Instituto de Democracia, e finalmente me deparei com um pequeno grupo de pessoas que ria e comentava as notícias do dia. No grupo, outro grande nome do campo, professor Andreas Schedler.

Logo mais Svolik chega e a palestra começa. E foi assim, de forma despretensiosa e tranquila, que várias das minhas crenças sobre educação, competência democrática, o papel das instituições e a história democrática da América Latina foram irremediavelmente estilhaçadas. Nas interações entre Milan e Andreas pude vislumbrar, com algum terror, que a realidade era ainda mais absurda do que imaginava. Essa coluna é sobre as reflexões que tanto me espantaram, sobre o papel do eleitorado na crise democrática, mas também sobre o que se pode ser feito. É sobre terror, mas também, assim espero, sobre esperança.   

Comecemos com o terror. A esperança, espero eu, vem depois.

O terror

O trabalho do professor Svolik ampliava vários de seus estudos anteriores sobre o comportamento dos eleitores frente à democracia. Era um trabalho robusto, de várias décadas coletando e interpretando informações sobre os Estados Unidos, Sérvia, Espanha, Suécia, Israel, Brasil, México e muitos, muitos outros países. O estudo tinha uma pergunta aparentemente simples: qual o preço da democracia?

Mais especificamente, Svolik e seus vários co-autores ao longo dos anos buscavam entender até que ponto os eleitores estão dispostos a trocar a democracia por políticas que eles preferem. Ou seja: quantas e quais políticas atrativas um político precisa oferecer para que as pessoas tolerem que ele enfraqueça a democracia.

Svolik comentou conosco que esperava encontrar uma grande diferença entre países, mas que, para sua surpresa, a diferença dentro de cada país era muito maior que a diferença entre países. Mais especificamente, Svolik descobriu algo chocante.

Primeiro, Svolik descobriu que eleitores que se identificavam como “mais à direita” tinham uma forte tendência a valorizar pouco a democracia, e portanto o mínimo necessário para trocá-la por políticas de sua preferência era muito mais baixo do que o de eleitores “mais à esquerda”. A diferença entre os dois grupos não era marginal ou ignorável, mas uma diferença abissal, substancial. 

Isso não é dizer que eleitores de esquerda não abririam mão da democracia por suas políticas preferidas, mas sim que precisariam da promessa de várias políticas preferidas antes de fazê-lo. A diferença está no grau. Eleitores de direita parecem confortáveis em abrir mão da democracia por muito pouco.   

Seria dizer, por exemplo, que um candidato que persegue juízes de seu país e ONGs internacionais seria eleito pelos eleitores de direita, desde que privatizasse algumas empresas pouco lucrativas. Ou que um candidato que pede pela volta de uma ditadura histórica seria eleito pelos votantes de direita caso propusesse também que as ruas do país fossem propriamente asfaltadas. 

Isso parece surpreendente no contexto da América Latina, que viu nascer em seu solo diversas ditaduras de esquerda ao longo da história. Deveríamos esperar, se seguíssemos a tendência histórica, que eleitores da esquerda latina seriam tão facilmente “compráveis” como os eleitores de direita, se não mais. No entanto, os dados apontam uma outra realidade. 

É provável que o pouco amor que os eleitores de direita cultivam pela democracia na América Latina seja na verdade um reflexo de um fenômeno global, e não um evento isolado, regional, já que a tendência aparece em todo lugar analisado pelo professor. Autocratas aprendem uns com os outros, e é provável que essa difusão de narrativas e estratégias entre os líderes de direita pelo mundo seja a razão desse evento global.

Segundo, Svolik descobriu que essa escolha por políticas do agrado em detrimento da democracia é uma escolha consciente. Por volta de 60% dos entrevistados era conhecedor do significado de democracia, como funciona e de sua importância. Isso é dizer que eleitores de direita sabem o que é a democracia, eles só preferem outra coisa.

Caso você leitor esteja tão chocado como eu, permita-me compartilhar um pouco mais sobre o papel da educação na autocratização de países, e sobre como temos a tendência a inflar a sua influência para o bem. Educação de massa (educação para grandes parcelas da população) se deu durante governos não democráticos. Começou com a Prússia absolutista, e foi desenvolvida durante o governo de regimes oligárquicos. Quando a democracia chegou na Europa ou na América Latina, a maioria das crianças já estava inscrita na educação primária.

Mas o que ganha um ditador com um povo bem instruído? Não é mais difícil controlar um povo mais bem educado? A resposta curta é não. Como mostram Paglayan e Cantoni (ambos estudos referenciados abaixo), o currículo certo e a forma correta de ensino pode ser vital na doutrinação das crianças. Não há razão para que o ditador se preocupe com um povo que acredita na ditadura, a prefere e até a ama, ou ainda se preocupar com um povo que acredita que nada pode ser feito, que a política é na verdade um problema cultural, intransponível. Um povo doutrinado não se revolta.

Há ainda uma segunda razão, tão perversa como a primeira. Segundo Bueno de Mesquita, quanto mais educado um povo, maior é sua produtividade, o que significa, em contextos autoritários, maiores recursos para que o governante se mantenha no poder. É mais difícil democratizar a China, que vai bem economicamente, que o Zimbábue de Robert Mugabe, por exemplo, já que a China tem recursos suficientes para garantir que a elite não se revolte contra o líder.     

Eleitores de direita sabem o que é a democracia, ainda assim votam contra ela. Mas qual sua razão? Afinal de contas, poderia-se pensar que os eleitores aceitariam que políticos corroessem a democracia por causa de crises econômicas ou ameaças externas. No entanto, Svolik descobriu que, para eleitores de direita, o que realmente pesa é a agenda social. Questões como limitar a imigração ou reduzir direitos de minorias são aquelas pelas quais eles estão mais dispostos a abrir mão da democracia. Um curioso exemplo disso é a Polônia, que mesmo com desenvolvimento acelerado, votou no PiS antidemocrático.

Como discutimos na coluna anterior chamada “Que a resistência lhe traga liberdade, ainda que não lhe traga paz”, qualquer solução institucional que se dê para a autocratização depende fundamentalmente do apoio do eleitorado. Com um eleitorado cada vez mais à direita, e com isso mais anti-democrático, o que resta para nossa já machucada democracia? 

A esperança

A primeira forma de esperança é um tanto polêmica, e entendo a razão. Trata-se da reformulação da esquerda, de forma que aprenda com as vitórias autoritárias pelo mundo. É tomar para si algumas das agendas da direita, como o nacionalismo, a propaganda digital e a vilanização da alteridade. Opositores dirão, com alguma razão, que isso apenas transformaria a esquerda na nova direita, que diluiria os valores da esquerda, que faria com que o jogo político fosse oficialmente de baixo calão. Apontariam a Polônia pós-PiS e mostrariam como a estratégia de “ser mais de direita que a direita” agora faz com que a coalizão democrática não consiga governar sem se auto-apunhalar a cada nova política feita.

Uma resposta justa, creio. Um medo real, justificado por exemplos modernos.

Ainda assim, será que a coalizão democrática na Polônia teria vencido o PiS em primeiro lugar se não tivesse se utilizado dos mesmos discursos e adotado as mesmas estratégias? Melhor dificuldade para governar de forma democrática do que viver um governo autocratizante. O eleitorado parece se virar cada vez mais à direita, e manter as mesmas estratégias e discursos de sempre será a derrota da esquerda, e com isso da democracia. 

Após as tarifas de Trump, Lula conseguiu retomar o nacionalismo brasileiro sob a bandeira do anti-americanismo da esquerda e do soberanismo nacional da direita. Kalla fez algo parecido na Estônia, munindo-se de um nacionalismo anti-russo e cosmopolita. Nacionalismos não precisam ser etno-nacionalismos, não precisam se focar em um povo, raça ou religião. O nacionalismo democrático pode se focar nos símbolos nacionais, como música, bandeira e etc. Pode se focar no orgulho às instituições, à democracia. 

A segunda é a crença, ainda que agora abalada, no papel da educação. Não a educação como é, mas como pode ser. Em particular, penso em nomes que empurramos para fora da América Latina, como Paulo Freire, e em sua proposta de uma educação crítica, que tanto em forma de ensino como em conteúdo promova a libertação dos educados.

Penso também no papel da sociedade civil, das mobilizações e mesmo dos intelectuais públicos. Por algum tempo, a esquerda se valeu da ideia de que engajar e debater com extremistas era dar-lhes legitimidade, e que como sociedade, deveríamos transpor esses debates “básicos”, e “evoluir” para debates sobre como tornar a democracia ainda mais funcional, ainda melhor para todos. Foi o período logo após a queda da URSS, e o otimismo sobre a vitória democrática reinava. Autores como Fukuyama chegaram mesmo a proclamar o fim da história, com a vitória irreversível e soberana da democracia. 

Não debatemos com fascistas, nem com populistas, e como consequência eles se apoderaram dos palcos que abandonamos, se espalhando sem contra-argumentos. Passaram a influenciar milhões enquanto nos negamos a engajar. Mas isso pode mudar. Podemos retomar esses palcos que abandonamos, e com paciência refutar os argumentos que nos parecem um retrocesso político e social.

Assim também evitamos, em certa medida, a erosão social da polarização. É necessário saber quando valer-se do tato ou da força argumentativa, e isso se aprende fazendo.

Referências

Bueno de Mesquita, B., Smith, A., Siverson, R. M., & Morrow, J. D. (2003). The logic of political survival. MIT Press.

Cantoni, D., Chen, Y., Yang, D. Y., Yuchtman, N., & Zhang, Y. J. (2017). Curriculum and ideology. Journal of Political Economy, 125(2), 338–392.

Fish, M. Steven (2024) The Power of Liberal Nationalism, Journal of Democracy, Volume 35, Number 4, 20-34.

Molinero Jr., G. R. (2025, 28 de novembro). Que a resistência lhe traga liberdade, ainda que não lhe traga paz. DPolitik.

Paglayan, A. S. (2022). Education or indoctrination? The violent origins of public‑school systems in an era of state‑building. American Political Science Review.

Svolik, M. W. (2020). When polarization trumps civic virtue: Partisan conflict and the subversion of democracy by incumbents. Quarterly Journal of Political Science, 15(3), 261–287.

Svolik, M. W., Avramovska, E., Lutz, J., & Milačić, F. (2023). In Europe, democracy erodes from the right. Journal of Democracy, 34(1), 5–20.

Svolik, M. W. (2023). Voting against autocracy. American Political Science Review.