Na última coluna…
Na última coluna, de mesmo nome mas parte I, discutimos a razão para a simplificação de todas as ditaduras sob a alcunha única de “ditaduras”, de como tal simplificação pode ser prejudicial na forma como lidamos com as diversas ditaduras pelo mundo, e por fim discutimos o primeiro dos exemplos, o da Rússia (1999 – presente). Nessa, discutiremos o segundo exemplo, o da China pós Mao e pré Xi (1976 – 2012), e por fim faremos a comparação entre os dois exemplos para explicitar não só suas diferenças, como também as consequências práticas dessas diferenças na forma como lidamos com cada um.
É portanto necessário lembrar ao leitor que ambas colunas devem ser lidas, já que se complementam. Sem a primeira, esta ficará incompleta. Sem a segunda, a primeira ficará enviesada.
O caso chinês (1976 – 2012)
A política na China, especialmente no período que descreveremos (entre os anos de 1976 e 2012) é intrinsecamente entrelaçada com as políticas partidárias. Em outras palavras, ainda que a China tenha outros oito partidos políticos além do Partido Comunista Chinês (PCC), que juntos fazem a chamada “frente única”, o PCC é constitucionalmente o único partido a comandar o país. Portanto, as próprias estruturas e instituições da China se entrelaçam com as do partido, e mesmo as outras forças dentro do país – como exército, elite econômica, forças policiais e etc. – ainda são, em primeira instância, compostas por membros do partido.
Como ilustrado por Li, a cidade de Xangai possui um prefeito e um secretário do PCC. O prefeito só consegue ser prefeito por ser, primeiramente, um alto membro do partido. Ainda assim, por não estar em posição tão alta na hierarquia do PCC quanto o secretário do partido, este exerce mais influência e poder real em Xangai que o prefeito.
Mas se o PCC é oficialmente o único partido a governar, o que fazem os outros oito partidos? Em essência, consultoria política e formação de quadros técnicos para apoiar a governança do PCC. Em um grau mais simbólico, os partidos também conferem maior legitimidade ao sistema político, simbolicamente aumentando a visibilidade para problemas minoritários e por vezes cooptando politicamente possíveis dissidentes.
O PCC é até hoje o partido com o maior número de membros no mundo, e segundo em longevidade no poder de forma constitucional, perdendo apenas para o partido comunista da Coréia do Norte. O poder do partido é centralizado nos sete membros do Comitê Permanente do Politburo – tradicionalmente incluindo ao menos um membro do exército, e garantindo assim a aquiescência das forças armadas. Decisões menores, agendas específicas e influência ainda podem ser comandadas pelo restante do Politburo, que contabiliza um total de vinte e cinco membros. Ambos são oficialmente votados no poder pelo Comitê Central, que por sua vez são votados no poder pelos delegados a cada cinco anos durante o Congresso Nacional do PCC. Delegados são representantes das trinta e uma unidades administrativas da China a nível de províncias, representantes da minoria taiwanesa, e ex-membros ilustres do partido, agora aposentados.
Na prática, no entanto, o Politburo apresenta ao Comitê Central uma lista de candidatos que gostariam de ver no poder, restringindo de forma não oficial a liberdade de voto do Comitê Central. Apesar de não haver uma prescrição formal na constituição do PCC, é prática aceita – e foi de fato o caso durante o período que analisamos – que a posição de secretário geral (a posição mais alta na hierarquia do partido) não deve exceder dois termos (dez anos). Após esse período, um novo secretário geral deve tomar o poder, garantindo assim uma certa rotatividade, e fazendo com que cada membro do Politburo tenha uma chance real de alcançar o poder.
O PCC descreve suas lideranças em termos geracionais, e de forma geral, o secretário geral como o núcleo representante daquela geração. No período em que analisamos, os secretários gerais foram, em ordem, Hua Guofeng; Deng Xiaoping; Jiang Zemin e Hu Jintao. É também prática comum – e foi o caso durante todo o período – que o sucessor do secretário geral vigente seja “apontado” durante o fim do primeiro termo do secretário geral vigente, o promovendo para cargos de alta visibilidade, incluindo posição no Comitê Permanente do Politburo.
É durante os encontros anuais do Comitê Central que cargos são distribuídos e novas políticas são apresentadas. Foi durante uma reunião anual do Comitê Central, por exemplo, que Deng Xiaoping apresentou sua política de abertura comercial da China – responsável pelo florescimento de uma indústria forte e competitiva globalmente, que por sua vez criou uma nova elite econômica diretamente atrelada ao Estado chinês. Apesar da ideia de abertura sugerir uma economia de mercado, as indústrias e suas elites se beneficiam constantemente do apoio chinês em regulamentação, subsídio, aporte e até em defesas comerciais consideradas abusivas por outros países.
Já que há bem menos assentos que candidatos, existe muita competição política para participar do Comitê Central. Essa competição, aliada a um sistema de governança complexo e multinível, faz com que possíveis opositores do governo se percam na burocracia ao tentar lutar contra iniciativas do governo. A estabilidade política criada pelas regras não oficiais de sucessão dos governantes e constantes eleições, a estabilidade econômica criada pelo rápido desenvolvimento e a estabilidade social ao fazer do PCC uma força visível nos cantos mais remotos do país fizeram com que o país não passasse por grandes turbulências políticas ou movimentos gerais de oposição durante o período analisado.
Há também um outro elemento responsável pela coesão social e falta de manifestações pró-democráticas por parte da população chinesa, ainda que não seja um consenso entre todos os pesquisadores e especialistas em China: as reminiscências confucionistas. Como propôs Lieberthal, durante o período imperial, os valores do confucionismo foram propagados como valores centrais do Estado, especialmente através dos exames públicos para cargos no governo, e pela influência da figura do imperador e governantes locais. Segundo o autor, os rituais eram vistos como a expressão formal da “conduta correta”, de forma que a “prática correta” moldaria o “pensamento correto” ao longo do tempo, e, portanto, o foco estava na ortopraxia em vez da ortodoxia. Em outras palavras, o império estava preocupado em como as pessoas agiam, não em como pensavam, entendendo que a ação eventualmente mudaria o pensamento. Essas reminiscências confucionistas sobre o poder da ação pró-governo acima do controle mental dos cidadãos é um aspecto central do pensamento comunista chinês.
O Comitê Central para Inspeção da Disciplina é um órgão menos concorrido que o Comitê Central, mas vital no monitoramento e vigilância dos membros do partido. É através de suas ações que membros corruptos ou que agem contra as diretrizes do partido são punidos, e de certa forma é um instrumento institucional de promoção da subserviência ao partido. O Secretariado é responsável por funções secretariais como organizar viagens, reuniões e redigir documentos. É também responsável por supervisionar os departamentos organizacional, de propaganda (e publicidade), da frente de trabalho unida, e liaison internacional. Esse maquinário estatal gigantesco garante espaço para diversos membros das elites políticas do país, bem como a possibilidade de outsiders participarem do processo político, incorporando aqueles mais distantes do centro do poder ao Estado.
Exemplos dessa trajetória da periferia ao centro do poder no Estado chinês são vários, incluindo os próprios Jiang Zemin e Xi Jinping. Jiang foi criado por um tio adotivo após a morte do pai quando ainda era criança. A vida de limitações financeiras não o impediu de estudar engenharia, e aos poucos alçar cargos mais e mais importantes dentro do partido até finalmente chegar à presidência da China. Similarmente, Xi passou a adolescência trabalhando em uma aldeia pobre de Shaanxi, vivendo em cavernas e realizando trabalhos manuais.
Uma outra maneira, não tão heróica, de se olhar para a possibilidade de inclusão do sistema político chinês é através da análise sistemática da manipulação de dados vindos das províncias. De acordo com Jeremy Wallace em seu estudo seminal (referenciado abaixo) sobre a manipulação dos dados enviados pelas províncias ao governo central chinês, ciclos eleitorais são os principais responsáveis pelo aumento substancial na produção e envio de dados que não condizem com a realidade. Isso indica menos um medo de punição – ou a manipulação seria contínua através do tempo – e mais um desejo de promoção, o que demonstra o quanto esses líderes regionais estão integrados nas práticas informais necessárias para alçar novos cargos dentro do regime.
Comparação
Para tornar a comparação entre a Rússia de Putin (1999-presente) – discutida na coluna anterior, parte I -, e a China pós Mao e pré Xi (1976 – 2012) mais clara, façamo-la em resposta a algumas perguntas-guia. Serão elas: 1) O que acontece quando o líder morre? 2) Por que as elites políticas aceitam o regime? 3) Por que as forças armadas não se revoltam? 4) Por que os líderes regionais não se revoltam? 5) Por que as elites econômicas aceitam o regime? 6) Por que as respectivas populações não se revoltam?
O que acontece quando o líder morre?
Como discutido na última coluna (parte I), o sistema russo sob Putin é altamente personalista. O poder não está institucionalizado em partidos, regras de sucessão ou arranjos burocráticos estáveis, mas sim concentrado diretamente na figura do presidente. As instituições foram moldadas e constantemente adaptadas para garantir a centralidade da sua liderança: elites políticas, militares e econômicas competem entre si para agradá-lo; líderes regionais são escolhidos por ele; a oposição é neutralizada. Isso gera um dilema: se Putin morre ou perde a capacidade de governar, não há mecanismo claro para garantir a transição, fazendo do regime altamente instável, e por isso perigoso. O risco é de um vácuo de poder comparável ao da Líbia pós-Gaddafi, mas em escala infinitamente maior devido ao peso da Rússia no sistema internacional. Como Trenin aponta, o problema mais grave pode não ser a política externa de Putin, mas sim a ausência dela caso o líder desapareça de repente.
Na China, ao contrário, a morte de um líder está prevista em práticas institucionais e normas partidárias. O Partido Comunista Chinês (PCC) organizou um sistema de sucessão relativamente estável, baseado no Politburo e no Comitê Central, em que o secretário-geral não permanecia além de dois mandatos (regra informal, mas respeitada nesse período). Além disso, já no fim do primeiro mandato, o sucessor era apontado e promovido a posições de visibilidade, garantindo assim uma transição suave, como com Jiang Zemin e Hu Jintao, por exemplo. A política chinesa do período não dependia de uma figura em especial, mas sim na estrutura burocrática do PCC, tornando o regime estável tanto interna como externamente, o que o torna menos perigoso e lhe permite a concepção de políticas de longo prazo. Assim, a morte ou aposentadoria de um líder não representava colapso, mas sim a continuidade do PCC como instituição, fortalecendo ainda mais a ideia de que o partido é maior do que qualquer indivíduo.
A comparação em si já torna clara algumas das formas como outros países podem lidar com as diferenças de regime entre os dois contextos autocráticos. A China estável tende a seguir padrões e tendências, e portanto gera expectativas claras sobre suas ações nos campos político, econômico, de saúde, etc. Dada a longevidade do sistema, políticas multilaterais e de longo prazo podem ser pensadas para a China. No entanto, dada a estabilidade e a não-personalidade do regime, sua democratização é menos provável. O mesmo não pode ser dito da Rússia.
Políticas bilaterais e de curto prazo seriam mais fáceis de executar que multilaterais ou de longo prazo dado o limite temporal do regime de Putin. Há menor confiança no mercado e nas ações do governo de forma geral, dada a instabilidade do regime. Fóruns informais de negociação tomariam precedência sobre os formais, como burocracias do Estado ou canais institucionais.
Por que as elites políticas aceitam o regime?
Na Rússia, Putin garante benefícios às elites políticas, mas também as coloca em constante competição. Partidos de oposição formais são recompensados pela lealdade e punidos pela dissidência. Além disso, ele promove rivalidade interna para evitar união contra si. As elites aceitam o regime por incentivos materiais e medo da exclusão. Já na China, o PCC oferece canais claros de ascensão política. Há competição para participar do Comitê Central, e a possibilidade real de outsiders chegarem ao poder. A rotatividade e as regras não oficiais de sucessão oferecem previsibilidade. Assim, elites políticas aceitam o regime porque o sistema oferece estabilidade e oportunidades de promoção.
As consequências para terceiros países são novamente claras. Se algum país buscasse desestabilizar a Rússia, precisaria apenas encontrar formas legítimas – ou no mínimo aceitáveis, dadas as condições políticas internas deste terceiro – de modificar a equação incentivos materiais-risco de exclusão. Por exemplo, durante a guerra na Ucrânia, países da União Europeia criaram embargos econômicos para a elite de Putin, buscando diminuir os incentivos materiais, tornando assim uma revolta da elite política mais fácil. Putin então re-calibrou os riscos e aumentou os incentivos outrora dados ao “excluir permanentemente” membros antigos da elite, diminuindo o número de indivíduos que precisariam ser recompensados, e portanto podendo aumentar a recompensa para os ainda vivos.
A desestabilização chinesa por parte das elites seria mais complicado, dada a complexidade da relação instrumental elite-Estado. Nesse caso, talvez o melhor cenário para países terceiros fosse se utilizar dos vários fóruns da burocracia chinesa para alcançar resultados mais favoráveis. Em outras palavras, negociações poderiam ser feitas tanto com o governo central, como com governos regionais, companhias, etc. Além disso, canais informais de negociação funcionariam de forma amplificada durante os ciclos de eleição na China.
Por que as forças armadas não se revoltam?
Na Rússia, Putin divide funções entre diferentes agências de segurança e até promove rivalidade entre elas. Todas competem por recursos e privilégios concedidos por ele. Assim, nenhuma agência ou o exército isoladamente tem condições de desafiar o regime. Além disso, militares de alto escalão fazem parte do círculo íntimo do poder. Já na China, o exército é formalmente subordinado ao partido, não ao Estado. Há sempre ao menos um militar no Comitê Permanente do Politburo. O prestígio político e os recursos do exército dependem do partido, e não de indivíduos. Portanto, o exército é parte estrutural do regime, e não tem incentivo para revoltar-se.
Em ambos os casos, o exército parece ter sido neutralizado em termos de riscos políticos ou mesmo como um agente político independente. Apesar das diferentes formas de se atingir esse resultado, em termos práticos a diferença entre os dois regimes é marginal.
Por que os líderes regionais não se revoltam?
Na Rússia, os governadores dos oblasts não são eleitos, mas sim nomeados por Putin. Frequentemente vêm de regiões diferentes, o que dificulta a identificação com a população local. Recebem menos recursos do que precisariam, enfraquecendo sua base política. Isso reduz qualquer chance de autonomia ou de revolta regional. Já na China, os líderes regionais buscam ascensão dentro do PCC. Manipulação de dados econômicos mostra sua tentativa de se destacar e obter promoções. A integração ao sistema partidário central transforma a competição regional em instrumento de lealdade. Eles podem subir no partido, mas apenas seguindo as regras estabelecidas.
A principal instrumentalização para países terceiros tem a ver com o grau de agência dos líderes regionais. Enquanto na Rússia são apenas pró-forma, na China possuem agência suficiente para possibilitar fóruns de negociação independentes.
Por que as elites econômicas aceitam o regime?
Na Rússia, a elite econômica foi criada no período de privatizações. Sob Putin, ela se transformou em oligarquia dependente do Estado. Aqueles que se alinham ao regime recebem contratos, privilégios e proteção; os que resistem são perseguidos pelo aparato de segurança. A sobrevivência dos oligarcas depende da lealdade a Putin. Já na China, a abertura econômica pós-Deng Xiaoping criou uma elite empresarial vinculada ao Estado e ao PCC. Essas elites se beneficiam de subsídios, regulações favoráveis e apoio do governo. Em troca, devem manter proximidade com o partido. O crescimento econômico e a integração global funcionaram como incentivo contínuo à sua lealdade.
Ao que tudo indica, a equação recursos-risco parece ser comum em ambos os casos, ainda que no caso chinês os recursos sejam exponencialmente maiores e os riscos menores, além de serem atrelados ao partido e não a um líder em específico, o que possibilita maior margem de manobra.
Por que as respectivas populações não se revoltam?
O regime russo usa veto presidencial, instituições paralelas (como a Câmara Pública), manipulação eleitoral e repressão direta para conter descontentamentos. Além disso, revoluções geralmente dependem do aval das elites, e não da população. O sistema eleitoral adulterado e a centralização federativa enfraquecem qualquer movimento popular. Já o regime chinês é marcado por forte contraste. A estabilidade política, o crescimento econômico acelerado e a difusão do PCC em todos os níveis da sociedade reduziram o ímpeto popular de contestação. Elementos culturais confucionistas também contribuem, reforçando a ideia de lealdade prática ao governo. Além disso, há canais institucionais de representação simbólica (outros partidos da frente única) que ajudam a neutralizar tensões.
A influência de países terceiros é pequena na população da Rússia, dado os canais de informação com conteúdos altamente controlados pelo Estado. Ainda assim, canais paralelos existem, e o controle russo é pouco eficiente. Já na China, não apenas o conteúdo é magistral e eficientemente controlado, como os próprios canais de informação também o são. A internet particular da China dificulta ainda mais o processo.
Conclusão
As ditaduras não são todas iguais, e os exemplos tratados nas partes I e II demonstram isso, ainda que não sejam os exemplos mais discrepantes possíveis. A Rússia representa um modelo personalista, dependente do líder, instável na sucessão e centrado em redes de lealdade pessoal. A China, no período analisado, representa um modelo institucionalizado, no qual o partido garante estabilidade, sucessão ordenada e integração de elites. Ignorar essas diferenças é perigoso: estratégias eficazes para lidar com um modelo podem ser um desastre para o outro.
Referências
Fernández-Villaverde, J., Ohanian, L. E., & Yao, W. (2023). The neoclassical growth of China. National Bureau of Economic Research Working Paper Series, No. 31351.
Li, C. (2024). China’s Communist Party‑State: The structure and dynamics of power (pp. 201–236). In W. A. Joseph (Ed.), Politics in China: An introduction (4th ed.). Oxford University Press.
Lieberthal, K. (2004). Governing China: From Revolution Through Reform (2nd ed). New York: W. W. Norton & Company.
Wallace, J. L. (2014). Juking the stats? Authoritarian information problems in China. British Journal of Political Science, 46(1), 11–29.