Panorama: Dois anos de guerra na Ucrânia

Os antecedentes do conflito

No dia 24 de fevereiro de 2022, a Rússia invadiu a Ucrânia, mas as ameaças russas em relação à soberania ucraniana datam muito antes da invasão. No dia 22 de fevereiro do mesmo ano, o presidente russo Vladimir Putin, em discurso televisionado à nação, reconheceu a independência das repúblicas separatistas ucranianas de Donetsk e Lugansk. Além disso, o presidente apresentou o que podemos considerar a justificativa (do ponto de vista dele) para a “Operação Militar Especial”, isto é, para a guerra na Ucrânia.

Para compreender melhor a questão, no entanto, é preciso entender que a divisão política das ex-repúblicas soviéticas costuma dar-se em torno da Rússia. A população divide-se, assim, entre aqueles que desejam uma maior proximidade da Rússia e aqueles mais simpáticos à integração europeia. Não por acaso, governos debatem sobre a manutenção de certos símbolos, como estátuas de herois de guerra, associados ao período soviético. Nesse mesmo sentido, a Ucrânia dispunha também de uma certa divisão geográfica, estando o leste mais sob a influência russa (inclusive linguisticamente), em contraste ao oeste.

Pensando neste cenário, irrompe em 2014 os chamados protestos da Euromaidan (nome da praça onde os manifestantes se reuniam em Kiev, capital da Ucrânia). Iniciados ainda em novembro de 2013, os protestos foram deflagrados devido à decisão do então presidente ucraniano, Viktor Yanukovich, de não realizar acordo comercial com a UE. Em vez disso, Yanukovich preferiu o alívio financeiro advindo da Rússia. Em meio a trocas de acusações entre Rússia e o chamado Ocidente de interferência na política ucraniana e após 4 meses de protesto, Yanukovich foi deposto e fugiu para a Rússia. Em 2019, o presidente deposto foi condenado por alta traição e cumplicidade na agressão militar russa. Isso porque, ainda em 2014, a Rússia anexou a Crimeia. 

Assim, pode-se considerar a invasão da Ucrânia iniciada em 2022 como uma continuação dos eventos de 2014, já que desde aquele ano uma parte do território ucraniano estava ocupado. A incorporação da Crimeia ao território russo, no entanto, não foi mera retaliação russa à deposição de Yanukovich. Isso porque o território incorporado abriga a base de Sebastopol, na qual está localizada toda a frota russa do Mar Negro.

A Ucrânia se tornou independente da extinta União das Repúblicas Soviéticas (URSS) em 1991 e já em 1997, um acordo foi firmado entre Ucrânia e Rússia, que tornou esta última arrendatária do porto por 30 anos. Assim, a base de Sebastopol continuou a ser uma base histórica russa, ainda que em território ucraniano.  

Representação gráfica da localização geográfica da Base de Sebastopol. IMAGEM: Elaboração própria.

Ademais, havia a presença de uma maioria étnica russa na península da Crimeia, como há no leste ucraniano. Assim, nacionalistas russos na região passaram a exigir sua integração à Rússia desencadeando a crise. A anexação da Crimeia ocorreu de maneira rápida e pacífica, caracterizando-se como um fait accompli. Isso porque pelo tratado bilateral entre Rússia e Ucrânia que se seguiu aos acordos supracitados, a Rússia poderia manter até 25.000 soldados estacionados na península. A Rússia foi sancionada internacionalmente por sua ação, já que a anexação (não reconhecida como legítima pela Ucrânia) é contrária ao direito internacional. Assim como no atual conflito, as sanções econômicas aplicadas contra a Rússia não foram suficientes para dissuadir os objetivos russos.

Outrossim, desde 2014, a Rússia faz uso dos chamados “little green men”, isto é, soldados profissionais que não usam insígnias (não apresentam vinculação a uma bandeira nacional). Esses soldados ficaram ainda mais conhecidos por sua participação no atual conflito no leste da Ucrânia, onde atuam com separatistas ucranianos desde 2014. As tensões envolvendo o Grupo Wagner em junho de 2023, quando o grupo mercenário marchou para Moscou,  ganharam ainda mais visibilidade quando Prigozhin, líder do grupo, morreu após queda de seu jato executivo em agosto do mesmo ano. O levante do grupo foi motivado, segundo Prigozhin, por erros da liderança russa que resultaram na morte de muitos combatentes. Putin considerou tal ato uma traição, mas negou qualquer participação no acidente.

A justificativa de Putin para a “Operação Militar Especial”

Dado esse panorama, em 2022, quando Putin já dava sinais da invasão, como a mobilização de tropas na fronteira russo-ucraniana. Sinais esses lidos por alguns como demonstração de poder (posturing) ou mesmo como busca por coagir o governo de Kiev a não dar prosseguimento às suas pretensões (constitucionais) de entrar para a UE e OTAN. Essa foi a leitura adotada pelo próprio governo ucraniano que semanas antes da invasão não parecia lhe dar suficiente credibilidade.

Já no dia 22 de fevereiro de 2022, Putin fez um discurso televisionado à nação, no qual reconheceu a independência das repúblicas separatistas da Ucrânia, na região da bacia do Don. Nesse discurso, fica clara a visão de Putin sobre a Ucrânia: “Gostaria de enfatizar novamente que a Ucrânia não é apenas um país vizinho para nós. É uma parte inalienável de nossa própria história, cultura e espaço espiritual”. Quiçá as considerações histórico-culturais das relações entre esses dois países devessem ter tido mais peso na leitura ocidental quanto aos interesses russos na Ucrânia. 

Inobstante. as justificativas apresentadas pelo governo russo para a intervenção na Ucrânia foram:

  • Garantir a neutralidade ucraniana (isto é, sua não adesão à UE e à OTAN);
  • Garantir a segurança do território russo (Putin vê a adesão da Ucrânia à OTAN como uma ameaça direta à Rússia);
  • Proteger populações etnicamente russas que vivem na região de Donbass (proteção essa que é um dever do governo russo, conforme sua constituição);
  • “Desnazificar” o governo de Kiev.

Apesar de não justificarem a invasão do ponto de vista do direito internacional, que considera a guerra como ilegal, os pontos apresentados por Putin são relevantes para compreender as razões que levaram ao conflito. Não obstante às justificativas legalistas de Putin, que evocou o artigo 51 da Carta das Nações Unidas para justificar a intervenção na Ucrânia, está clara a violação da soberania ucraniana – desde 2014. 

A posição da OTAN 

A Organização do Tratado do Atlântico Norte, por sua vez, mantém sua “política de portas abertas”, caracterizada pela abertura a qualquer país europeu a se candidatar à membresia. Como dispõe o próprio sítio da Organização, a adesão à OTAN está aberta a “qualquer outro Estado europeu em posição de promover os princípios deste Tratado e contribuir para a segurança da área do Atlântico Norte”. Nesse espírito, a OTAN não só recusou-se a emitir garantias de que uma adesão ucraniana não ocorreria, como ampliou-se com a adesão da Finlândia e da Suécia. Com a invasão da Ucrânia pela Rússia, a OTAN ganhou novo fôlego, uma vez que é justamente a ameaça russa que justifica a existência da Organização. Antes da invasão a OTAN enfrentava desafios quanto a seus gastos orçamentários, bem como o apoio interno de suas populações. A agressão russa, todavia, serviu para fortalecer a importância da aliança militar.

Debates sobre o apoio militar à Ucrânia no Congresso Americano

Assim como a Rússia, os Estados Unidos possuem eleições presidenciais marcadas para o ano de 2024, o que aumenta a pressão sobre o atual governo em relação à ajuda militar para a Ucrânia. Soma-se a isso a guerra em Gaza, que também tem custado aos cofres americanos. Ao contrário da Ucrânia, no entanto, Israel possui mais apoio bipartidário nos EUA e tende a ter prioridade quanto à aprovação de doações para as regiões em conflito. Além disso, denúncias de corrupção no governo ucraniano, bem como a falta de perspectiva quanto ao fim da guerra na Ucrânia levam alguns políticos americanos, especialmente algumas alas do partido republicano. a questionar até quando seu país deve financiar a guerra. 

Por um lado, há quem defenda a ajuda militar como um modo de “sangrar a Rússia”, isto é, forçar o governo a empregar mais recursos no conflito e prejudicar sua economia. Por outro lado, os países da OTAN também sofrem com o conflito, já que também são impactados pelas sanções econômicas e estão investindo alto na defesa da Ucrânia. Exemplos disso são a alta no preço da energia em países como Reino Unido e Alemanha ou mesmo os protestos de agricultores na França contra a entrada de grãos ucranianos (mais baratos) no mercado francês. Ademais, o complexo industrial militar russo tem se mostrado capaz quanto à reposição de armamentos e equipamento bélico. Dados da União Europeia indicam que a ajuda militar conjunta advinda desses países à Ucrânia já soma trinta bilhões de dólares. Enquanto isso, os EUA somam US$ 46,8 bi em ajuda militar, conforme o Council on Foreign Relations. Não estaria, então, a Rússia “fazendo sangrar” em contrapartida?

Perspectivas do conflito

A Ucrânia não tem sinalizado um interesse em mudar sua emenda constitucional quanto à adesão à UE, muito menos deseja ceder parte de seu território à Rússia. Pelo contrário, Zelensky, presidente ucraniano, tem buscado reafirmar os interesses ucranianos em se aproximar do Ocidente. Assim. reforça o desejo de afastamento da esfera de influência russa, além de ratificar a integridade territorial ucraniana (incluindo a Crimeia). Zelensky busca também reforçar a percepção de interesse coletivo quanto ao resultado da guerra. Ou seja, almeja que os países que o apoiam considerem a resistência ucraniana de vital importância para o futuro das democracias ou mesmo para o futuro da integridade territorial dos países soberanos e. por extensão, para a manutenção da ordem internacional. Quanto mais caro para cada país envolvido seja o interesse em jogo, maior o compromisso com o resultado final da guerra.

A Rússia, por sua vez, não tem sinalizado um recuo à invasão. De todo modo, a Ucrânia depende da ajuda estrangeira e, uma vez que esta se mantenha, o país tende a enfrentar um conflito prolongado. A percepção de uma guerra longa, no entanto, traz sérias considerações ao Ocidente. Se uma derrota na Ucrânia é vista como um precedente que não pode ser aberto, até quando a ajuda militar deve prosseguir? 

Referências

https://www.bbc.com/portuguese/articles/c9793q3z5gvo

https://g1.globo.com/mundo/noticia/2023/08/27/prigozhin-morte-confirmada-dizem-autoridades-russas.ghtml

https://www.gazetadopovo.com.br/mundo/impasse-no-congresso-americano-interrompe-envio-de-ajuda-a-ucrania-afirma-casa-branca/

https://estudogeral.uc.pt/handle/10316/84393

https://exame.com/mundo/russia-anuncia-que-regioes-anexadas-da-ucrania-votarao-nas-eleicoes-presidenciais-de-2024/

https://g1.globo.com/mundo/noticia/2022/10/05/putin-assina-anexacao-de-quatro-regioes-ucranianas-a-russia.ghtml#:~:text=O%20presidente%20da%20R%C3%BAssia%2C%20Vladimir,em%20seguida%2C%20assinadas%20por%20Putin.

https://www.eeas.europa.eu/delegations/united-states-america/eu-assistance-ukraine-us-dollars_en?s=253

https://www.cfr.org/article/how-much-aid-has-us-sent-ukraine-here-are-six-charts

https://www.nato.int/cps/en/natohq/topics_49212.htm#:~:text=NATO’s%20%22open%20door%20policy%22%20is%20based%20upon%20Article%2010%20of,of%20the%20North%20Atlantic%20area%22.

https://ompv.eceme.eb.mil.br/images/conter/criseru/Li%C3%A7%C3%B5es_aprendidas_conflito_R%C3%BAssia_e_Ucr%C3%A2nia.pdf

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