Itália : Giorgia Meloni, a chama tricolor e o mediterrâneo 

A primeira mulher a se tornar primeira-ministra na Itália é de direita. Silvio Berlusconi, ex-primeiro-ministro italiano e seu aliado durante a campanha que a elegeu, descreveu-a como: “Obstinada, prepotente, arrogante, ofensiva. Não se pode estar de acordo com ela”. O político italiano permitiu que filmassem suas palavras escritas em um papel após os resultados das eleições de 2022, quando Meloni (a mais votada) e Salvini dividiram os cargos para formar novo governo, deixando Berlusconi (já da velha guarda) de fora. Meloni retribuiu seu aliado Berlusconi, líder do Forza Italia (Força Itália), de maneira elogiosa em seu obituário. Por meio de sua rede social Instagram, Meloni descreveu-o como: “Combatente, corajoso, determinado” e continuou: “Obrigada, Silvio. Não te esqueceremos”. A primeira-ministra havia sido Ministra da Juventude durante o governo de Berlusconi.

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Defendendo o famoso slogan “Deus, Pátria e Família”, Meloni ganhou apoio por seus discursos incisivos e levou seu jovem partido, Fratelli d’Italia (FdI) ou Irmãos da Itália, em português, ao cargo mais alto do executivo italiano. Após anos na oposição a Mario Draghi (ex-primeiro-ministro), com 26% dos votos, Meloni liderou seu partido de uma sigla insignificante na política italiana em 2012 à chefia do governo em 2022. 

As origens do Fratelli d’Italia são um tanto controversas. O partido tem suas raízes no Movimento Social Italiano (MSI), fundado em 1946 por membros do regime fascista de Mussolini e dissolvido em 1995. Do MSI, que nos anos 1990 tornou-se Aliança Nacional, o FdI conservou a chama tricolor (verde, branca e vermelha, como as cores da bandeira italiana), um símbolo por vezes associado ao fascismo. 

Além disso, a participação de pessoas ligadas ao passado fascista italiano no governo de Meloni causam desconfiança da oposição. Exemplo disso foi a nomeação de Ignazio La Russa para a presidência do Senado, que não foi apoiada por Berlusconi e seu partido, Forza Itália, mas passou com votos da oposição. Ignazio La Russa é filho de um secretário do partido fascista de Mussolini.

Após quase um ano e meio de governo (iniciado em outubro de 2022), pode-se dizer que Meloni mudou o tom de sua retórica. Isso porque, naturalmente, a retórica de uma campanha eleitoral é diferente daquela necessária para governar, mesmo em uma coligação que detenha a maioria. 

A Itália já teve 68 governos desde a queda do fascismo, o que dá uma média de quase um governo por ano. Não por acaso, a política italiana passou por muitos períodos de instabilidade. Embora a volatilidade dos governos parlamentaristas possa ser maior do que a daqueles presidencialistas, essa média revela um ritmo de mudança governamental incomum, mesmo em comparação a outros modelos parlamentaristas, como o alemão. Modelo esse que foi escolhido a fim de evitar a concentração de poder que poderia ocorrer em um sistema presidencialista, por exemplo. Meloni tem, portanto, o desafio de manter-se no poder por cinco anos, a fim de alcançar as reformas, ou ao menos parte delas, que prometeu em campanha.

A guerra na Ucrânia e o alinhamento com o Ocidente

Eleita também por suas críticas à União Europeia e à imposição de políticas à Itália, Giorgia Meloni manifestou seu apoio total à Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) e à Ucrânia ainda durante a campanha. A primeira-ministra italiana é líder de uma direita pró-Ocidente e que, nas palavras dela, “não quer destruir a Europa ou deixar a Europa”. Mas que deseja “uma atitude diferente no cenário internacional”, disse Meloni em campanha, fazendo frente às acusações de que seu governo seria um risco para a Europa. 

Após a invasão da Ucrânia pela Rússia em 2022, até os governos mais simpáticos à Moscou precisaram se reposicionar — ao menos no que se refere a sua imagem perante o público. A agressão russa trouxe à tona medos que outrora pareciam superados. Putin fez a ameaça de que a Rússia pudesse invadir outros países da Europa tornar-se mais crível — ao menos aos olhos de alguns. O flagelo da guerra não está, afinal, somente no passado europeu. Essa circunstância colocou governos, como o de Viktor Orbán na Hungria, em uma saia justa, já que por seu caráter menos liberal — ou mais autoritário — parece alinhar-se mais com Moscou do que com a própria União Europeia da qual faz parte.

Na Itália, Matteo Salvini, aliado de Meloni e membro do partido Lega Nord (Liga Norte, depois rebatizado apenas como Liga), foi constrangido quando vieram à tona fotos de 2014, nas quais ele trajava camiseta com a foto de Putin. Mais recentemente, Salvini, atual ministro de Transportes e vice-primeiro-ministro, chegou a criticar Macron, presidente francês, acusando-o de colocar a Europa em perigo por suas palavras duras contra Putin. 

Meloni vê-se, então, na posição de acalmar Kiev e afirmar que a Itália apoia totalmente a resistência ucraniana à invasão. Exemplo disso foi o acordo bilateral de segurança firmado entre os dois países. Em fevereiro, quando a guerra na Ucrânia completou dois anos, Meloni visitou o país. Durante a visita, a primeira-ministra afirmou que apoiar a Ucrânia significa necessariamente dar apoio militar “porque confundir a palavra tão divulgada ‘paz’ com ‘rendição’, como alguns fazem, é uma abordagem hipócrita que nunca partilharemos”, informa a CNN.

Pautas morais

Católica, Meloni opõe-se abertamente ao aborto, à regulamentação do casamento homossexual, à ideologia de gênero e à barriga de aluguel ou adoção de crianças por casais homoafetivos. “Uma criança merece o melhor: ter um pai e uma mãe”, Meloni afirmou.

Durante seu governo, a primeira-ministra italiana chegou a conceder cidadania à bebê britânica Indy Gregory e a seus pais depois que a justiça britânica determinou a retirada de seu suporte vital. Indy nasceu com uma doença congênita rara, que comprometia suas mitocôndrias, isto é, sua estrutura celular que produz energia. Desse modo, ela não conseguia respirar sem a ajuda de um ventilador hospitalar. 

Contra a vontade dos pais, o hospital onde Indy estava internada e a justiça britânica decidiram que estava no melhor interesse da menina que seu ventilador fosse retirado. Em uma tentativa frustrada de reverter a situação, Meloni concedeu, além da cidadania italiana, a possibilidade de que o governo italiano pagasse pelos custos da transferência de Indy até o hospital pediátrico Bambino Gesú, em Roma, onde ela receberia tratamento experimental gratuito. A oferta foi negada pela justiça do Reino Unido. 

Nesta mesma seara, o FdI aprovou um projeto de lei que retoma a legislação de 2004, a qual, além de proibir a prática da barriga de aluguel na península italiana, torna-a crime quando realizada no exterior. Conforme o portal G1, a Itália tem uma das mais duras legislações contra barriga de aluguel na Europa, bem como restringe o acesso à reprodução assistida a casais homossexuais.

Possível limitação à cidadania italiana

A questão migratória é uma pauta cara para os eleitores europeus. Os debates giram em torno da necessidade de mais mão-de-obra frente às baixas taxas de natalidade, bem como da compatibilidade cultural das levas migratórias. Não é somente sobre receber ou não imigrantes, mas também sobre quais imigrantes. 

Nesse sentido, uma proposta de lei apresentada pelo senador Roberto Menia, do partido de Meloni, pode impactar os processos de obtenção de cidadania italiana — inclusive de brasileiros. 

Conforme explica o jornal Gazeta do Povo, se aprovada, a proposta inclui que, para o reconhecimento da cidadania italiana sem a necessidade de residir no país, o qual pode ser feito até a terceira geração (bisnetos), é necessária a comprovação que o requerente fale o idioma italiano. 

O nível exigido seria o B1. Segundo o padrão internacional de proficiência em idiomas, há seis níveis de compreensão, escrita e fala de uma língua, partindo do A1 ao C2. O B1 indica uma habilidade de conversação e escrita sobre assuntos gerais, por exemplo. 

Essa possível mudança na lei pode ser compreendida sob a ótica de que se deseja manter a tradição e a cultura italianas. Por isso, a priorização de concessão à cidadania àqueles que têm algum domínio sobre o idioma, elemento considerado essencial à identidade nacional. 

Além disso, o projeto de lei imporia à solicitação de cidadania por parentesco um limite geracional. Isto é, a partir da quarta geração, é necessário que o requerente resida, por pelo menos um ano, na Itália em vista de garantir que o requerente de fato possui ligações com o país. Atualmente, não há limite de gerações para a solicitação caso haja a comprovação de ascendência italiana.

Todavia, em um mundo cada vez mais globalizado, muitas pessoas — estima-se que há mais de 30 milhões de descendentes de italianos só no Brasil — buscam a cidadania italiana como uma forma de diversificar seus negócios, expandir suas possibilidades de viagem, ou mesmo como uma alternativa de moradia para a aposentadoria. Ou seja, a concessão de cidadania não tem, necessariamente, a ver com a mudança permanente do requerente para a Itália. 

Nas palavras do senador Roberto Menia, proponente da lei: “A cidadania é uma coisa séria, assim como o pertencimento nacional e a italianidade. Significa aderir a uma série de princípios não escritos que passam pelo modo de ser, os valores em que você acredita e a língua que fala”. Ou seja, a ascendência italiana não seria suficiente.

Em outro sentido, Francesco Lollobrigida, ministro da Agricultura e Segurança Alimentar, chegou a afirmar: “Devemos apoiar mais nascimentos, não a substituição étnica”, referindo-se às baixas taxas de natalidade em contraste à chegada de imigrantes. O comentário recebeu duras críticas, como “racista” e “xenófobo”. De todo modo, revela um sentimento que não é tão incomum quanto outrora pensava-se, o de que a nacionalidade também está relacionada à etnia. Quer dizer, para alguns, ser italiano significa falar italiano, ter valores e cultura italianas, mas também parecer de um certo modo. 

Essa categorização simplista ignora, no entanto, as diferenças presentes dentro da própria Itália. O italiano é derivado do fiorentino e tornou-se a língua franca do país após a unificação, mas há milhares de dialetos presentes na Itália. Um italiano da Sicília certamente se reconhece de modo distinto, culturalmente, em relação a um italiano nascido em Milão. A maior parte da população se comunica no dia-a-dia utilizando dialetos e não é incomum que pessoas de diferentes regiões não consigam se compreender devido às diferenças dos dialetos. Em Tirol do Sul, por exemplo, fala-se majoritariamente alemão.

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A posição quanto aos imigrantes ilegais

Meloni foi eleita prometendo combater a imigração ilegal e chegou a falar de um bloqueio naval à Líbia durante a campanha. “Não vou permitir que a Itália se torne o campo de refugiados da Europa”, afirmou Meloni após a chegada de 10 mil pessoas à praia de Lampedusa, no sul da Itália, em 2023. Mas decorrido mais de um ano de governo, a primeira-ministra admitiu que esperava ter conseguido fazer mais. 

“Esperava mais em matéria de imigração. Trabalhamos arduamente, mas os resultados não são os que esperávamos, porque a questão é muito complexa. Esta questão merece uma segunda fase de esforços”, afirmou a PM italiana. Seu eleitorado certamente não está satisfeito com os números que indicam um aumento na chegada de imigrantes ao país entre 2022 e 2023, totalizando 132.867 imigrantes que desembarcaram na Itália no último ano, informa o jornal Diário de Notícias. Dados da ONU indicam que a maioria dos quase 261.000 migrantes que cruzaram o Mediterrâneo desde o norte de África em 2023 entraram na Europa através da Itália, aponta o jornal Euronews. 

Para continuar combatendo a imigração ilegal, Meloni aposta no investimento no continente africano e deseja contar com o apoio do G7 e da União Europeia. A estratégia pode parecer interessante, mas é de longo prazo, o que não necessariamente será capaz de satisfazer o eleitorado que deseja soluções para as levas migratórias atuais.

O Plano Mattei, apresentado por Meloni na reunião do G7 em Roma, visa controlar os fluxos migratórios advindos da África para a Europa melhorando as condições de vida no continente africano. A ideia é simples: uma vez que haja melhorias socioeconômicas na África, as pessoas seriam desmotivadas a deixar seu continente em busca de melhores condições de vida na Europa. A Itália deseja colocar-se, assim, como ponte entre os dois continentes, favorecendo a cooperação, em vez de ser vista como mera porta de entrada da imigração ilegal e do tráfico. 

A proposta italiana lhe confere destaque no cenário europeu, o que certamente favorece a posição de Meloni internamente, ao reposicionar a Itália no cenário internacional. Todavia, o Plano Mattei recebeu críticas da União Africana, que ponderou que gostaria de ter sido consultada sobre o plano previamente.

Conforme noticiou o jornal Deutsche Welle, “O Plano Mattei pode contar com 5,5 mil milhões de euros entre créditos, doações e garantias”, disse Giorgia Meloni. Ainda assim, mesmo que bem-sucedido, o plano não resolve o problema das rotas migratórias mortíferas hoje. Como a primeira-ministra afirmou, esse é um problema complexo e exige combate em muitas frentes. 

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Vale ressaltar ainda que o Fratelli d’Italia não quer simplesmente impedir a entrada de qualquer imigrante, mas, sim, eleger quais imigrantes deseja integrar à sua sociedade, preferencialmente aqueles que possuam determinadas características que facilitem essa integração. Exemplo disso é que a Itália foi o quarto país que mais recebeu refugiados ucranianos após a invasão russa.

Fontes

https://apnews.com/article/elections-rome-italy-6aa9fcb003071c307190a4053f199d98

https://www.instagram.com/reel/CteUkORM0Ci/?igsh=cDZsaG1sNXF1MjB2

https://www.gazetadopovo.com.br/opiniao/editoriais/indi-gregory-crianca-condenada-a-morte

https://www.publico.pt/2024/01/09/mundo/noticia/video-mostra-centenas-pessoas-saudacao-fascista-roma-oposicao-pede-respostas-2076184

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https://www.gazetadopovo.com.br/mundo/projeto-em-analise-no-parlamento-italiano-que-limita-cidadania-pode-atingir-milhoes-de-brasileiros

https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2023/02/rotina-de-refugiados-da-ucrania-em-milao-reflete-incerteza-no-1o-ano-da-guerra.shtml#:~:text=A%20Itália%20é%20o%20quarto,entre%202001%20e%202011%2C%20contribuiu.

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https://www.bbc.com/portuguese/articles/cv2kx33ejmxo

https://www.bbc.com/portuguese/internacional-63003142

https://g1.globo.com/mundo/noticia/2023/07/26/deputados-conservadores-e-anti-lgbtqia-da-italia-tornam-barriga-de-aluguel-ilegal-ate-quando-realizada-no-exterior.ghtml#

https://g1.globo.com/mundo/noticia/2022/09/29/giorgia-meloni-como-neofascismo-avanca-na-italia-e-pode-impactar-restante-da-europa.ghtml

https://www.folhape.com.br/noticias/giorgia-meloni-de-fa-de-mussolini-a-primeira-ministra-da-italia/244341

https://oglobo.globo.com/mundo/noticia/2022/10/posse-do-novo-parlamento-italiano-prenuncia-dificuldades-para-coalizao-de-direita.ghtml

https://exame.com/mundo/ucrania-assina-acordos-de-cooperacao-em-seguranca-com-italia-e-canada

https://veja.abril.com.br/mundo/nao-permitirei-que-italia-vire-campo-de-refugiados-da-europa-diz-meloni