Palavras vazias? Como Putin aproveita a memória soviética como ferramenta retórica

Em 2005, Vladimir Putin, iniciando seu segundo mandato como presidente da ainda jovem Federação Russa, declarou que o colapso da União Soviética foi “a maior catástrofe geopolítica do século” passado. Essa afirmação, provavelmente, gerou diversas reações em diferentes camadas sociopolíticas. Alguns viram na declaração uma remota possibilidade de um retorno do socialismo ao poder na Rússia, enquanto outros se preocupavam que essa chance de ressurgimento da Rússia como um major player na ordem internacional poderia vir como uma busca por vingança pela contra-revolução que atendia a onda neoliberal do final dos anos 1980, que acabou seduzindo Gorbachev.

Foto: Putin recebendo o comando do país de Boris Yeltsin, em 1999. AFP/Getty Images

Foto: Putin recebendo o comando do país de Boris Yeltsin, em 1999. AFP/Getty Images

Na prática, o fim da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) deixou a Rússia com inúmeros problemas. A base econômica, anteriormente vinculada a uma economia planificada promovida pela integração das Repúblicas Soviéticas, encontrava-se em frangalhos em 1991, e essa desintegração contribuiu significativamente para outro problema: a perda da identidade russa. Em suma, naquele momento, não se sabia ao certo o que a Rússia representava, nem quais seriam seus objetivos além de garantir sua sobrevivência e integridade territorial, como explorado no discurso de Putin em 2005 em discurso ao parlamento:

“Primeiro e antes de tudo, vale a pena reconhecer que a morte da URSS foi a maior catástrofe geopolítica do século. No que se refere aos russos, ela se tornou uma verdadeira tragédia. Dezenas de milhares de nossos concidadãos se encontram além das fronteiras do território russo. E a epidemia do colapso chegou até a própria Rússia.”

Após o colapso da URSS, a Rússia tentou se aproximar de potenciais parceiros ocidentais, incluindo a União Europeia e a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN). O próprio Putin relatou, em 2015, que décadas antes, durante a visita de Bill Clinton a Moscou, havia a ideia de que uma união russa ao bloco remanescente da Guerra Fria poderia ser benéfica. No entanto, essa integração não se concretizou.

Ademais, as potências ocidentais não estavam dispostas a correr o risco de uma possível (re)ascensão russa nos moldes da antiga URSS, motivo pelo qual mantê-la fora da OTAN pareceu a melhor decisão na conjuntura geopolítica da época. Resta a dúvida se essa foi realmente a melhor solução e se ignorar a Rússia, que estava em processo de reconstrução doméstica, poderia ter evitado alguns dos problemas que culminaram na atual Guerra da Ucrânia.

Não obstante, Vladimir Putin reforça a percepção de observadores internacionais de que estaria preparando terreno para a reestruturação de uma União Soviética 2.0. Em junho de 2020, lançou um artigo em que conclamava a necessidade de uma “nova Yalta”. Sim, a mesma Conferência de Yalta em que se reuniram Winston Churchill, Franklin Roosevelt e Iósif Stalin. Declarações como essa evocam memórias amargas no Ocidente e demonstram a habilidade retórica de Putin, ao aludir à própria cidade de Yalta, situada na Crimeia, anexada pela Rússia em 2014.

É fato que para a Rússia é uma questão de segurança nacional manter a OTAN o mais distante possível de suas fronteiras. Apesar da organização negar que tenha prometido não expandir, a realidade mostra uma evolução de 12 membros originais para 32 países integrantes, com a Suécia sendo o mais recente a ingressar no presente ano.

No início do atual conflito entre Rússia e Ucrânia, o presidente estadunidense Joe Biden afirmou, em um pronunciamento em fevereiro de 2022, que Putin tinha a intenção de “restabelecer a União Soviética”. No entanto, essa afirmação carece de uma base material concreta. Apesar da Rússia tentar se posicionar no cenário internacional como antagonista aos Estados Unidos, reminiscentes da dicotomia entre capitalismo e socialismo, internamente o governo de Putin está alinhado às elites dominantes que respondem a forças conservadoras e reacionárias. Estas forças, na verdade, prefeririam um retorno ao czarismo do que ver o ressurgimento da bandeira soviética.

A memória soviética em praça pública

Foto: Alexander Nemenov

No último dia 9 de maio, a Rússia celebrou o 79º aniversário do Dia da Vitória sobre o nazifascismo, um evento cuja imagem mais emblemática é a bandeira soviética erguida sobre o Reichstag, o edifício que abrigava o antigo parlamento alemão. Apesar do fim da União Soviética, o Desfile da Vitória na Praça Vermelha continua a ser realizado anualmente, simbolizando um momento de grande importância histórica e emocional para o povo russo. Embora alguns vejam essa celebração como uma simples apologia ao período soviético, no imaginário e na memória coletiva russa, a vitória sobre o Terceiro Reich representa, sem exagero, uma vitória sobre a morte. É crucial lembrar que os sacrifícios humanos da União Soviética durante a Grande Guerra Patriótica (nomenclatura utilizada na Rússia para se referir ao período da Segunda Guerra Mundial) ultrapassaram, segundo algumas estimativas, a marca de 20 milhões de almas.

Foto: Sergei Bobylov/POOL/AFP

Entretanto, tem se tornado cada vez mais evidente a tentativa de Vladimir Putin de utilizar essa data e outros marcos históricos soviéticos em sua retórica para justificar ações contra a Ucrânia e insinuar uma disposição para expandir as fronteiras russas, desde que isso assegure a segurança e integridade do país.

Todavia, de forma a reforçar as palavras de Putin, não apenas a Ucrânia, mas muitos dos países que faziam parte da União Soviética entraram numa campanha de retirar (no melhor dos cenários) parte de memorabilia que remetesse ao período soviético, ou remodelar alguns dos monumentos históricos que tivessem a tríade: estrela vermelha, foice e martelo. E, para além disso, alguns desses países, em especial a Ucrânia e os países do Báltico (Estônia, Lituânia e Letônia) tem afrouxado muitos os limites de “liberdade de expressão” no que se refere à memória nazista.

Portanto, essa escolha de narrativa, quando bem convém ao líder russo, embaça muitas das percepções que um observador externo desatento possa ter do comportamento do Kremlin nesses últimos quatro anos. Não obstante, é importante perceber que não são escolhas derivadas de uma série de decisões puramente autocráticas, como entendemos a partir de uma lente realista das relações internacionais, os Estados devem garantir acima de tudo sua sobrevivência, ao passo que lidam com as disputas de poder presentes no sistema internacional anárquico, e portanto, é crucial compreender que apesar de qualquer discordância e estranhamento, a Rússia ainda está fazendo escolhas políticas racionais, afinal, é necessário atender a certas camadas sociais para retroalimentar o governo que está posto.

A tentativa de reconfigurar o legado soviético é vista não apenas em retóricas internas, mas também em ações concretas, como a anexação da Crimeia e as iniciativas para manter a OTAN afastada das fronteiras russas. Enquanto o Ocidente vê essas ações com preocupação, temendo um ressurgimento da influência soviética, Putin maneja essas percepções para consolidar seu poder e apresentar a Rússia como um defensor de sua própria segurança e soberania. Portanto, é essencial reconhecer que as ações do Kremlin são fruto de uma estratégia política racional, fundamentada na necessidade de garantir a sobrevivência do Estado russo em um sistema internacional competitivo e anárquico. Mesmo que as decisões de Putin geram controvérsia, elas devem ser compreendidas dentro do contexto de assegurar a continuidade e a estabilidade do governo russo. Assim, o uso da memória soviética serve tanto como uma ferramenta de legitimação interna quanto como um meio de projetar poder e influência no cenário global.

Referências

https://www1.folha.uol.com.br/fsp/mundo/ft2604200511.htm

https://www.bbc.com/portuguese/internacional-60518951

https://www.bbc.com/portuguese/internacional-60383194

https://www.state.gov/disarming-disinformation/roleta-da-desinformacao-o-ano-das-mentiras-do-kremlin-para-justificar-uma-guerra-injustificavel

https://pt.euronews.com/my-europe/2024/05/09/russia-mostra-poderio-militar-nos-festejos-do-dia-da-vitoria

https://congressoemfoco.uol.com.br/projeto-bula/reportagem/o-discurso-de-vladimir-putin-sobre-a-questao-da-crimeia

https://www.bbc.com/portuguese/internacional-55944027https://www.youtube.com/watch?v=G8DB-5Wl_lo

https://oglobo.globo.com/mundo/vista-como-inimiga-russia-foi-deixada-de-fora-da-europa-pelo-ocidente-afirmam-especialistas-25331944

https://www.brasildefato.com.br/2022/03/10/vladimir-putin-anti-imperial-ou-nacionalista-entenda-a-trajetoria-e-como-pensa-o-lider-russo