A ameaça nuclear continua sobre a Ucrânia: o que pensar disso?

Em fevereiro de 2022, a Rússia invadiu a Ucrânia. O que muitos consideravam improvável aconteceu e, como é o caso de muitos conflitos em andamento, as previsões não se confirmaram. A guerra não apenas começou, mas também não terminou rapidamente, como alguns acreditavam que aconteceria, à semelhança do fait acompli na Crimeia em 2014. A guerra tem se arrastado por mais de dois anos e envolve o maior arsenal nuclear do mundo: a Rússia.

Embora seja improvável que armas nucleares sejam usadas no conflito atual, o fato de elas existirem e de fazerem parte da retórica do Kremlin não deixa outra alternativa a não ser pensar que elas poderiam ser usadas e que as consequências seriam tremendas. Mesmo que apenas as armas nucleares não estratégicas (táticas) sejam usadas, a ideia de que a tradição de não-uso dessas armas seria desbancada após quase 80 anos é assustadora. Além disso, como a Ucrânia não possui armas nucleares, isso colocaria o Ocidente (OTAN) em uma encruzilhada. Continuar a ajudar a Ucrânia significaria que eles estão dispostos a arriscar uma guerra nuclear, e interromper essa ajuda significaria que Putin poderia conseguir o que deseja ao agitar a “varinha nuclear”.

Mas, novamente, há cenários mais prováveis. É muito mais provável que o principal objetivo da retórica de Putin seja evitar essa escalada da guerra. Nesse sentido, as armas nucleares servem como um instrumento de coerção – ou de compelência, para usar o vocabulário de Schelling. Portanto, se presumirmos que o que o Kremlin realmente quer é terminar a guerra em seus termos, também podemos inferir que a ameaça de usar armas nucleares não estratégicas na Ucrânia é um meio de atingir esse objetivo.

Limites da coerção nuclear

No entanto, como muitos autores já apontaram, a coerção nuclear é difícil. Pode-se argumentar que, até agora, ela não funcionou. Por exemplo, desde o início do conflito na Ucrânia, Putin decidiu colocar seu arsenal nuclear em alerta máximo. O fato de o maior arsenal nuclear do mundo ter aumentado sua prontidão de combate não fez com que o Ocidente desistisse da decisão de ajudar militarmente a Ucrânia e de aumentar essa ajuda progressivamente. Apesar disso, pode-se argumentar, como faz Brands (2023), que o arsenal nuclear da Rússia impediu um envolvimento direto (com tropas no solo) da OTAN na Ucrânia. Para ele, é a posse de armas nucleares pela Rússia que restringe mais fortemente as ações americanas no conflito.

No ano passado, Putin decidiu enviar armas nucleares para Belarus e, mais recentemente, realizar exercícios nucleares com seu vizinho. A determinação de colocar armas nucleares não estratégicas em Belarus, juntamente com o lançador Iskander-M com capacidade de uso dual, não impediu que a OTAN e os EUA autorizassem jatos F-16 e treinamento de pilotos para a Ucrânia.

Lançadores de mísseis russos Iskander-M fornecidos à Belarus. Fonte: FAS.

Mais recentemente, o presidente dos EUA, Joe Biden, permitiu publicamente que a Ucrânia usasse munições americanas para atacar a Rússia. “Nas últimas semanas, a Ucrânia nos procurou e pediu autorização para usar as armas que foram fornecidas para se defender contra essa agressão” perto de Kharkiv, “inclusive contra as forças russas que estão se aglomerando no lado russo da fronteira”, disse Antony Blinken, secretário de Estado dos EUA, em uma coletiva de imprensa em Praga, informa a CNN. Isso representa uma mudança em relação ao início do conflito, quando as armas deveriam ser usadas apenas para fins de defesa, e pode ser interpretado como uma escalada do ponto de vista russo. As apostas são cada vez mais altas para ambos os lados desse conflito. E esse não é um cenário otimista para ninguém.

Apesar disso, as vozes que defendem o uso de armas nucleares em Moscou não são tão escassas quanto se poderia pensar. Para muitos em Moscou, três quartos de século sem uma guerra de grandes proporções já tiraram da mente das pessoas o medo de que uma posssa ocorrer (Karaganov, 2023; 2024; Trenin, 2023). Como eles apontam, o medo é uma ferramenta poderosa e pode ser usado para evitar perigos graves, como uma guerra nuclear total. Nesse sentido, trazer as armas nucleares – mesmo as não estratégicas – de volta à mesa de discussão serve ao propósito de lembrar ao mundo que ele pode ter um fim horrível. Usar essas armas na Ucrânia, para Karaganov (2023), poderia atingir o objetivo de finalmente fazer os EUA recuarem da Europa (em contraste ao envolvimento ainda maior do país no continente visto até então), deixando o caminho livre para a Rússia restabelecer um equilíbrio – talvez um novo equilíbrio de poder.

Mais uma vez, esse não é o cenário mais provável. Até mesmo Putin indicou a falta de necessidade de armas nucleares. Ele acredita que a Rússia pode vencer na Ucrânia sem recorrer materialmente a elas, mesmo que a ameaça ainda esteja pairando sobre o conflito. Embora a possibilidade de uso de armas nucleares na Ucrânia seja pequena, é importante lembrar a todos o quão delicada é a situação do regime de controle de armas nucleares atualmente.

E quanto ao controle de armas nucleares?

Atualmente, não há acordo nuclear bilateral entre os dois maiores arsenais do mundo – Rússia e Estados Unidos. Após o início da invasão da Ucrânia, Putin suspendeu a participação russa do Novo START, alegando “ações hostis do Ocidente contra a Rússia”. O tratado estabelece limitações para a quantidade de ogivas estratégicas e lançadores que poderiam ser implantados por ambos os países e foi o último acordo bilateral válido de controle de armas nucleares em vigor. Com a deterioração das relações entre esses países, agravada pelo conflito, as perspectivas de renegociação desses acordos são escassas no momento. Mesmo antes da guerra, os EUA haviam se retirado do Tratado INF.

No entanto, esses tratados desempenharam um papel importante no apoio à estabilidade estratégica nuclear entre a Rússia e os Estados Unidos e foram responsáveis durante a Guerra Fria, a partir da segunda metade da década de 1980, por uma redução significativa de ambos os arsenais nucleares. Como Savelyev (2023) aponta, os acordos estratégicos de controle de armas nucleares aumentam a previsibilidade das relações estratégicas entre as partes.

O fim de tais acordos em um contexto de competição estratégica renovada representa mais um desafio para a chamada estabilidade nuclear, considerando que há outras potências nucleares em jogo atualmente. Os EUA têm se manifestado sobre seu desejo de incluir a China em futuras negociações de controle de armas nucleares, embora o país tenha um arsenal significativamente menor em comparação com os EUA e a Rússia.

No entanto, o escopo desses acordos era limitado. Eles não incluíam armas nucleares não estratégicas, por exemplo. As armas nucleares não estratégicas ou táticas são exatamente a ameaça atual para a Ucrânia. Para muitos, como Tannenwald (2022), qualquer uso nuclear seria catastrófico e poderia abrir um precedente que minaria a longa tradição de não uso de armas nucleares. Embora a diferença entre armas nucleares estratégicas e não estratégicas possa não ser clara para muitos, as últimas são geralmente entendidas como menores, mais precisas, com menor alcance e menos precipitação radioativa.

E quanto às armas nucleares não estratégicas?

No atual conflito na Ucrânia, é exatamente porque essas armas são menores que a ameaça de usá-las é mais crível. Ademais, as armas nucleares modernas podem ter uma grande variedade de rendimentos. Enquanto uma bomba maior pode ser mais eficaz para a dissuasão, ou seja, para evitar agressão; as bombas menores podem ser mais úteis para a coerção, fazendo com que os outros acreditem que um tomador de decisões, como Putin, estaria mais disposto a usá-las devido aos seus efeitos reduzidos. É muito mais crível que a Rússia corra o risco de escalar a guerra do que querer destruir completamente a Ucrânia e alienar possíveis amigos e inimigos durante esse processo, o que obviamente aconteceria se uma arma nuclear estratégica fosse usada na Ucrânia.

Mas mesmo as armas nucleares “não estratégicas” fazem parte da estratégia nuclear russa. Depois de um recente ataque da Ucrânia na Crimeia (a Rússia considera parte de seu território, enquanto a Ucrânia e a maior parte da comunidade internacional a entendem como uma parte legítima da Ucrânia ocupada pela Rússia) que matou seis pessoas, a Rússia culpou os EUA por serem os fornecedores de armas. O presidente russo indicou que o uso de armas americanas em território russo não ficaria sem consequências, de acordo com a Sky News. Além disso, Putin anunciou que está pensando em atualizar a Doutrina Nuclear Russa.

“Em particular, dispositivos nucleares explosivos de potência extremamente baixa estão sendo desenvolvidos. E sabemos que há ideias circulando em círculos de especialistas no Ocidente de que esses meios de destruição poderiam ser usados”, afirmou o presidente da Federação Russa.

Mais uma vez, o fato de que as armas nucleares poderiam ser usadas é evidente. Isso não significa que elas serão usadas. Tampouco que o Ocidente deva descartar completamente essa possibilidade. Como aconteceu com outros campos das Ciências Sociais e Políticas, a Estratégia Nuclear tem sido compreendida principalmente de um ponto de vista racional, ou seja, ninguém seria tão louco a ponto de arriscar uma guerra termonuclear. Dessa ideia, deriva-se o conceito de MAD (Destruição Mútua Assegurada), que ainda está em vigor. Entretanto, para entender melhor a racionalidade, devemos ter em mente as preferências de cada ator. Nesse caso, as preferências da Rússia, da Ucrânia e do Ocidente.

Antes de mais nada, a Ucrânia é importante para a Rússia. Muito mais do que para o Ocidente. A ameaça de uso nuclear demonstra essa importância. A autorização, pela primeira vez, de exercícios nucleares táticos com Belarus em meio ao conflito é exemplo disso. Isso significa que a Rússia está muito mais disposta a tomar riscos para atingir seu objetivo, uma determinação que o Ocidente, até o momento, tem se mostrado disposto a testar.

Fontes

https://www.reuters.com/world/europe/belarus-conducts-tactical-nuclear-inspection-together-with-russia-2024-05-07

https://www.bloomberg.com/opinion/articles/2023-08-27/how-nuclear-threats-not-weapons-have-shaped-the-war-in-ukraine?embedded-checkout=true

https://www.scientificamerican.com/article/limited-tactical-nuclear-weapons-would-be-catastrophic

https://www.euronews.com/next/2022/09/29/what-are-tactical-nuclear-weapons-and-could-russia-use-them-in-ukraine

https://edition.cnn.com/2024/05/30/politics/biden-ukraine-limited-strikes-russia/index.html#:~:text=President%20Joe%20Biden%20has%20given,the%20country%20close%20to%20the

https://news.sky.com/story/russia-updating-its-nuclear-doctrine-amid-current-realities-13158091

https://www.bbc.com/news/articles/c6pppr719rlo

https://www.reuters.com/world/europe/putins-nuclear-warnings-since-russia-invaded-ukraine-2024-03-13