Em tempos de esvaziamento da reflexão política, é imperativo enxergar além das aparências e das retóricas superficiais. Na última semana nos deparamos com o presidente da Venezuela, e candidato à reeleição, Nicolás Maduro, tecendo comentários sobre o sistema eleitoral brasileiro dignos de um bolsonarista — de voto impresso a não auditoria dos votos. Ao lançar um olhar crítico sobre a proximidade discursiva de Jair Bolsonaro e Nicolás Maduro, revela-se uma verdade desconfortável: ambos são e sempre foram farinha do mesmo saco. Apesar de se colocarem em espectros políticos aparentemente opostos, a essência autoritária que compartilham os une de maneira inegável.
No Brasil, assistimos a um espetáculo de hipocrisia onde a retórica eleitoral sugere que Lula transformaria o país em uma nova Venezuela. No entanto, os mais atentos percebem que essa narrativa serve apenas para mascarar a própria admiração que Bolsonaro tem pelo modelo autoritário venezuelano. A “união cívico-militar-policial”, como chama Maduro, é o sonho do bolsonarismo. Assim revela-se a hipocrisia da retórica eleitoral de que o Lula transformaria o Brasil na Venezuela. Os mais atentos sabem que essa galera adora um já cadavérico ideólogo que dizia: “acuse os adversários do que você faz, chame-os do que você é” (e não é Lênin, que nunca disse isso).
A direita brasileira, com frequência, usa a Venezuela como exemplo de tudo o que há de errado no socialismo. Essa crítica é frequentemente distorcida por uma guerra cultural, mais preocupada em demonizar o “inimigo” do que em promover uma análise genuína das condições do país. Algumas histórias da carochinha são requentadas da guerra fria e inundam as redes sociais brasileiras, associando um pseudo-comunismo do governo com a crise humanitária vivida pela população venezuelana, muito em função da retórica anti-imperialista, anti norte-americana, contida nos discursos desde a chamada Revolução Bolivariana.

No entanto, o próprio Bolsonaro, em diversas ocasiões, expressou admiração por Hugo Chávez, reconhecendo o viés militarista do ex-presidente venezuelano. Em 1999, ano em que Chávez assumiu o poder num golpe militar, Bolsonaro afirmou que ele era “esperança para América Latina” e que gostaria que sua “filosofia chegasse ao Brasil”. Além disso, em 2006, Chávez defendeu armar um milhão de venezuelanos para consolidar seu poder — uma retórica assustadoramente similar à de Bolsonaro na infame reunião ministerial de abril de 2020, onde sugeriu armar a população brasileira. Detalhe importante, as proximidades não ficaram no campo da retórica, o governo venezuelano é militarizado, assim como foi o gabinete ministerial de Bolsonaro, que com o passar do tempo foi ficando cada vez mais parecido com uma reunião do alto comando das Forças Armadas, assumindo do ministério da saúde à, ironicamente, Casa Civil.
Hugo Chávez, ainda tomou outras atitudes que parecem inspirar Bolsonaro: aumentou o número de cadeiras na Suprema Corte da Venezuela, permitindo a nomeação de seus apoiadores e garantindo decisões favoráveis ao seu governo, modelo herdado por Maduro. Bolsonaro, em um movimento similar, manifestou seu desejo de expandir o Supremo Tribunal Federal (STF) e frequentemente se referia aos ministros indicados por ele como “seus”. Tal atitude revela um padrão autoritário comum: a tentativa de subordinar o Judiciário ao Executivo para assegurar a perpetuação no poder.
Na relação com opositores, ambos se confundem, com a diferença que o Brasil manteve alguns freios institucionais que na Venezuela já não existem, isso impediu alguns avanços autoritários de Bolsonaro. Lá, a chamada Forças de Ações Especiais da polícia é acusada de perseguir opositores e oprimir populares, utilizando até de execuções extrajudiciais e uma ampla lista de abusos. Aqui, Bolsonaro utilizou a Polícia Rodoviária Federal (PRF) em ações fora do seu escopo de atuação, equipando-a para combate e empoderando os agentes. Sem esquecer a tentativa de impedir eleitores do principal concorrente de chegarem às urnas no segundo turno do pleito de 2022. Além disso, ambos utilizaram as agências de inteligência do governo para espionar opositores, jornalistas e, até, apoiadores, como estamos descobrindo com as investigações sobre as ações da Agência Brasileira de Inteligência no governo Bolsonaro. Esses paralelos evidenciam a proximidade das táticas autoritárias comuns entre os dois líderes e que ambos compartilham as mesmas visões sobre como governar.
Essa aproximação ideológica fica ainda mais clara quando analisamos a relação de Bolsonaro com o segmento neopentecostal das igrejas protestantes. Na Venezuela, a Igreja Universal do Reino de Deus, liderada pelo bispo Edir Macedo, declarou apoio a Nicolás Maduro e defendeu o fim das sanções ao regime venezuelano, entrando de cabeça nas eleições locais. Conseguiram acesso ao orçamento do governo e até um programa para equipar as igrejas foi criado. Este apoio revela uma contradição flagrante: enquanto no Brasil, Bolsonaro e seus apoiadores denunciam a Venezuela como exemplo do fracasso do “esquerdismo anticristão”, seus aliados de fé constroem laços com o regime de Maduro, querendo as benesses dos amigos do rei.
No cenário internacional, Maduro e Bolsonaro revelam preferências similares a governantes autoritários. O maior símbolo disso na atualidade é Vladimir Putin. A Rússia de Putin é um dos principais parceiros comerciais e o principal parceiro militar da Venezuela, diante das sanções ocidentais. Com Bolsonaro, a relação de Putin foi coroada com a visita oficial do então presidente brasileiro dias antes do início da “operação militar especial”, ou melhor, da invasão da Ucrânia pela Rússia. Nessa visita, Bolsonaro se referiu ao mandatário russo como “prezado amigo” e classificou a relação do Brasil com a Rússia como um “casamento perfeito”.
A manipulação eleitoral é outro ponto de convergência entre Bolsonaro e Maduro. Maduro, ao desenhar um processo eleitoral favorável ao seu regime, frequentemente ataca a legitimidade de eleições em outros países, incluindo o Brasil, que assumiu a liderança dos acordos de Barbados, em conjunto com a Noruega, buscando trazer a Venezuela novamente à normalidade democrática e consequente retirada de sanções econômicas. Maduro já foi acusado de manipulação em pleitos anteriores e tem uma clara aversão a observadores internacionais, preferindo conduzir suas eleições sem o escrutínio externo que poderia expor irregularidades. Dessa forma, assim que a comissão eleitoral divulgou o resultado na noite deste domingo (28), muitas foram as manifestações de desconfiança da comunidade internacional.
Maduro também vê nas preocupações eleitorais do Brasil uma oportunidade para enfraquecer a autoridade regional do país, jogando lenha nos delírios de Bolsonaro. Este, por sua vez, não hesita em atacar o sistema eleitoral brasileiro, alimentando teorias conspiratórias e levantando suspeitas infundadas sobre fraudes antes, durante e depois das eleições, semeando desconfiança e instabilidade. Um detalhe curioso é que, na Venezuela, os votos são registrados em urnas eletrônicas com um comprovante impresso ao final — um modelo muito semelhante ao que Bolsonaro exaustivamente defendeu antes das eleições de 2022. Interessante, não?

Quando se veem ameaçados de perder o poder, tanto Bolsonaro quanto Maduro recorrem à retórica do medo. Ambos evocam imagens de “banho de sangue”, “levantes populares” e “guerra civil” para justificar suas ações autoritárias. Em alguns casos, também estimulam movimentos violentos, como o caso do 08 de janeiro em Brasília e ao que se desenha no pós-eleição na Venezuela. É um velho truque: todo autoritário busca um pretexto para se agarrar ao poder, manipulando o medo e a insegurança da população. Essa estratégia não é nova, mas é eficaz na manutenção do controle e na supressão de opositores. Como bem disse o jornalista Ricardo Noblat, depois de tanto tentar se manter no poder no Brasil, imaginem que inveja Bolsonaro não deve estar sentindo do seu “friend” Nicolás Maduro…
No final das contas, a discussão sobre direita e esquerda não colabora mais com o debate político mundial. A atual divisão está entre autoritários e democráticos e, como observadores da política internacional, não podemos fugir da responsabilidade de apontá-los. Em uma sociedade que valoriza a liberdade e a democracia, reconhecer essa distinção é crucial. Cabe a nós, cidadãos, defender os valores democráticos e combater qualquer forma de autoritarismo, independentemente de sua origem. Portanto, a proximidade entre Bolsonaro e Maduro não é coincidência, mas sim uma manifestação clara de que o autoritarismo se disfarça de diversas formas, mas sempre com o mesmo objetivo: manter o poder a qualquer custo.
Fontes
https://veja.abril.com.br/politica/bolsonaro-defende-hugo-chavez-em-entrevista-de-1999
https://www.poder360.com.br/midia/internautas-compartilham-montagem-de-maduro-e-bolsonaro/
https://www.intercept.com.br/2024/03/19/igreja-universal-apoia-nicolas-maduro-na-venezuela/
https://brasil.elpais.com/brasil/2019/08/26/internacional/1566812838_110189.html