Ecos da Guerra Fria: do Pacto de Varsóvia à Aliança Rússia-Coreia Popular

A VISÃO CLÁSSICA DA GEOPOLÍTICA

No final da Segunda Guerra Mundial, o diplomata de carreira George Kennan ajudou a dar forma ao pensamento geoestratégico dos Estados Unidos, que, por sua vez, daria as cartas durante a Guerra Fria por vir. A chamada Teoria da Contenção bebeu diretamente de uma interpretação da dualidade entre as teorias clássicas da geopolítica: o Heartland de Mackinder, que sugeria que quem controlasse o Heartland controlaria a “World Island” (Eurásia e África) e, consequentemente, o mundo; e o Rimland de Spykman, que defendia que controlar o Rimland era essencial para dominar a política mundial, pois essa área servia como zona tampão entre as potências continentais e marítimas.

Para Kennan, os EUA precisavam adotar uma postura de enfrentamento, o que gerou uma série de consequências sob a Doutrina Truman – que foram desde a resposta soviética com a criação do Pacto de Varsóvia até diversas intervenções militares e guerras por procuração ao redor do globo. 

Por que isso importa?

Mesmo após o fim da Guerra Fria em 1991, a OTAN continuou a se expandir, apesar dos alertas do próprio Kennan, refletindo uma nova reconfiguração do sistema internacional. Hoje, com a Guerra da Ucrânia, o confronto entre a expansão da influência russa e a contenção ocidental se intensifica.

AMIZADE ENTRE OS POVOS- VISITA DE PUTIN À PYONGYANG

O presidente russo, Vladimir Putin, é recebido pelo Líder Supremo da República Popular Democrática da Coreia, Kim Jong Un / Foto: Rodong Sinmun

Em 18 de junho deste ano, o presidente russo, Vladimir Putin, chegou à Pyongyang, capital da República Popular Democrática da Coreia (RPDC) – também comumente chamada de Coreia do Norte, para firmar um acordo de ajuda mútua junto ao Líder Supremo e Marechal Kim Jong Un, que engloba não apenas os setores civis, como ajuda em desastres ambientais, mas também inclui o viés militar. 

O acordo de ajuda mútua entre Rússia e a RPDC pode ser interpretado como uma resposta ao cerco geopolítico dos EUA. O próprio histórico da Coreia Popular, que conta com a invasão e colonização por parte do Japão, faz com que sua política seja voltada acima de tudo para a sobrevivência através da segurança. Se por um lado as armas nucleares da Coreia Popular são vistas com um enorme receio pelo sistema internacional, e principalmente pelos países no entorno, por sua vez, as bases militares estadunidenses na Coreia do Sul, Japão e Guam também não inspiram confiança mútua.

Como já salientava George Kennan, 

“Os russos são pouco impressionados com as garantias americanas de que isso não reflete intenções hostis. Eles veriam seu prestígio (sempre mais elevado na mente russa) e seus interesses de segurança como afetados adversamente. Eles não teriam, é claro, outra alternativa senão aceitar a expansão como um fato consumado militar. Mas eles continuariam a considerá-la como uma rejeição do Ocidente e provavelmente procurariam em outro lugar por garantias de um futuro seguro e esperançoso para si mesmos”. 

Não obstante, George Kennan reiterou em 1997, que os Russos ainda tinham a mentalidade de compreender melhor as nuances das relações internacionais através da força. Ou seja, não bastaria o que ele chamou de “uso da lógica” ou meras palavras para dar garantia de uma não-intervenção. Do mesmo modo, os norte-coreanos podem seguir essa perspectiva ao se perceberem encurralados no tabuleiro estratégico. Conforme divulgado pela própria mídia da Coreia Popular, durante a visita de Putin à Pyongyang, o presidente russo destacou que o principal motivo para a escalada das tensões na península coreana é a política de confronto dos EUA, que está aumentando e intensificando os exercícios militares com o envolvimento dos países hostis à RPDC, incluindo a República da Coreia e o Japão, e salientou que a Rússia nunca tolerará a tentativa de transferir a culpa pelo agravamento da situação para a RPDC.

Visita de Putin à Pyongyang / Foto: Rodong Sinmun

Logo, o tratado de parceria estratégica prevê a garantia de apoio mútuo se um dos signatários do tratado for invadido, disse Putin, acrescentando que a Federação Russa não descartará a cooperação técnica militar com a RPDC nos termos do tratado.

Sendo assim, o acordo de ajuda mútua entre Rússia e Coreia do Norte, firmado no dia 19 de junho do presente ano, surge em um momento de crescentes tensões globais. A Rússia, enfrentando sanções ocidentais devido ao conflito na Ucrânia, busca novos parceiros estratégicos para mitigar os impactos econômicos e políticos. Ao passo que a Coreia do Norte, isolada por suas atividades nucleares, vê na Rússia um aliado capaz de fornecer os recursos e a proteção necessários para sobreviver e desafiar a ordem internacional estabelecida.

Esse acordo pode levar a uma crescente militarização na região, com os países vizinhos aumentando seus arsenais em resposta às novas capacidades da RPDC. Ao passo que em resposta ao fortalecimento da aliança Rússia-RPDC, é possível que surjam novas formas de cooperação regional.  Como exemplo, o acordo de defesa – oficialmente acordo de acesso recíproco (RAA) – entre Japão e Filipinas, que na prática, também habilita que os dois países enviem tropas para ambos os territórios. 

Por sua vez, a China, apesar de ser o principal aliado da RPDC, pode ver a crescente influência russa na região com ambivalência. Por um lado, a China pode apoiar qualquer esforço que fortaleça a Coreia Popular e desafie a hegemonia dos Estados Unidos na Ásia. Por outro lado, Pequim pode se preocupar com a Rússia se tornando um competidor direto por influência sobre Pyongyang. Isso pode levar a ajustes na política externa chinesa, com a China buscando reafirmar sua posição dominante sobre a RPDC e monitorando de perto as atividades russas na região.

O acordo de ajuda mútua entre Rússia e RPDC representa um desenvolvimento significativo na geopolítica regional e global. Ao passo que as teorias clássicas ainda podem ajudar, se não a entender melhor as motivações, mas a pensar nas possíveis implicações para o equilíbrio de poder na Ásia e no mundo.

Logo, a Rússia, ao fortalecer sua aliança com a Coreia Popular, se guiados numa perspectiva clássica, busca expandir sua influência no Heartland e no Rimland, projetando poder naval no Pacífico Ocidental e desafiando a contenção americana. A Coreia Popular, por sua vez, ganha um poderoso aliado capaz de fornecer os recursos e a proteção necessários para resistir à pressão internacional e desafiar adversários regionais, não mais se colocando como um país envolto em isolamento.

As reações dos Estados Unidos e seus aliados, incluindo a intensificação da contenção e o fortalecimento das alianças regionais, determinarão em grande parte a estabilidade do Leste Asiático nos próximos anos. À medida que as dinâmicas de poder continuam a evoluir, será crucial para os líderes regionais e globais navegarem essas complexas interações e mitigar os riscos de conflitos e tensões escaladas.

REFERÊNCIAS

https://g1.globo.com/mundo/noticia/2024/06/20/o-inquietante-pacto-de-protecao-mutua-entre-russia-e-coreia-do-norte.ghtml

https://operamundi.uol.com.br/politica-e-economia/coreia-do-norte-e-russia-assinam-acordo-estrategico-em-reaproximacao-militar-que-preocupa-o-ocidente/

https://open.spotify.com/episode/2kicvOWFmjPAW7jZgdfpLC?si=8rkv_NY6TVO9gxxkvJArhw

https://www.opeu.org.br/2022/03/02/por-que-precisamos-ler-george-kennan-para-compreender-o-conflito-da-ucrania/

https://nsarchive.gwu.edu/document/21042-long-telegram-original

https://www.nytimes.com/1997/02/05/opinion/a-fateful-error.html

http://www.rodong.rep.kp/en/index.php?MzRAQEAxQHJ1c3NpYQ==