O país que não aprendeu nada com a história

Não demorou cem anos para que a extrema-direita voltasse a ter força na Alemanha e os partidos tradicionais se corrompessem por seu apelo popular.

Muitas coisas podem vir à mente quando se pensa na Alemanha: carros, cerveja, futebol… Mas, ao adicionar a palavra “história” ao nome do país, há algo que salta à mente de qualquer um que a tenha estudado. Infelizmente, isto não é mais algo que só pertence à antiga história, mas está bem claro nas páginas jornalísticas atuais, a menos de se completar um século do período em que os fascistas alemães chegaram ao poder.

No vocabulário histórico da língua alemã, usa-se o termo “Machtergreifung” (ou “tomada do poder”) para se denotar a ascensão do ditador nazista Adolf Hitler à chancelaria alemã em 1933. Os próprios nazistas cunharam o termo similar, “Machtübernahme” (ou “aquisição do poder”), para dar ares de “legitimidade” ao seu novo regime. No entanto, ambos os termos parecem esconder uma realidade importante da história alemã. Hitler não tomou ou chegou ao poder por meio de um golpe. Isso ele tentou dez anos antes, em 1923, por meio do que ficou conhecido como o falho “Golpe da Cervejaria” (Bierkeller-Putsch), o que lhe rendeu alguns anos na prisão.

O partido nazista alemão (NSDAP) chegou ao poder por meio de eleições livres. A Alemanha deixou de ser uma monarquia com o fim da Primeira Guerra Mundial em 1918, tornando-se uma república que ficou conhecida como a “República de Weimar”. Por mais que o novo regime tenha de fato trazido a democracia para os territórios que sobraram da Alemanha pós-guerra, ele tinha diversas falhas, o que lhe deixava fraco. Constantemente havia forças políticas contrárias à democracia e que usavam de força bruta para apavorar outros partidos e cidadãos comuns. O partido nazista era apenas um a mais entre os outros partidos não-democráticos (como o Partido Comunista Alemão (KDP) ou o Partido Popular Nacional Alemão (DNVP)). Os nazistas só figuraram nas urnas a partir da quarta eleição da República de Weimar, em 1928, quando conseguiram pouco menos de três porcento dos votos.

Evolução da porcentagem de assentos no Reichstag (Parlamento Alemão) no fim da década de 1920 e começo de 1930.

Como se pode ver nos dados, no entanto, o partido rapidamente se elevou a uma das três maiores forças e passou os partidos que juntavam a maioria dos votos, os Sociais-Democratas (SPD) e o “Centro/Partido Popular da Baviera” (Z/BVP). O curto espaçamento das eleições entre dois e depois um período de meses mostra quão instável era a República de Weimar. Fato, porém, é que, em um curtíssimo período de tempo, os nazistas passaram de um nada politicamente a maior força política do país, o que lhes permitiu à ascensão ao poder.

Este é um resumo extremamente conciso e que ignora muito do que aconteceu, como a grande propaganda anti-democrática que era muito popular (junto à falsa ideia de que a Alemanha havia sido “traída” pelos social-democratas e judeus durante a guerra) e a predileção de agentes de poder a forças autoritárias de direita (como o então presidente alemão, Paul von Hindenburg). No entanto, ele ajuda a traçar paralelos interessantes para os dias atuais.

Aos que conhecem a história alemã, sabem que, após a derrota dos nazistas, as forças aliadas dividiram o que sobrou da Alemanha em quatro partes que, posteriormente, tornaram-se dois países antagônicos: a República Federativa Alemã (ou Alemanha Ocidental) e a República Democrática da Alemanha (a Alemanha Oriental). Se, na República Federativa um novo regime democrático federalista seria implementado, na República “Democrática” reinaria um regime comunista ditatorial de braço de ferro soviético. Por 41 anos, o “Oriente” (como os estados que compunham a antiga república soviética alemã são chamados até hoje (“Osten“)) viveu sob um regime comunista o que fez com que a região fosse, em comparação à República Federal, mais pobre, menos religiosa, menos populosa e, pelo que se vê, mais xenofóbica e autoritária.

Lado ocidentalRetrato de um país
dividido em dois
Lado oriental
80,5% da população
93,1% têm acesso a banda larga de internet (2019)
Idade média e 44,1 anos
13,2% da população é estrangeira
A renda per capita é de 3.526 euros
A taxa de desemprego é 4,7%
É onde fica a sede de 458 das 500 top empresas alemãs
19,5% da população
87,2% têm acesso a banda larga de internet
Idade média é 46,2 anos
7,9% da população é
estrangeira
A renda per capita é de 2.827 euros
A taxa de desemprego é 6,4%
É onde fica a sede de 42 das 500 top empresas alemãs
Dados de 2020. Informações de Zdf1.

A Reunificação Alemã só aconteceria em 1990, quando as regiões da Alemanha Oriental juntaram-se à República Federal Alemã, formando os cinco “Novos Estados”: Mecklenburg-Vorpommern, Saxônia, Saxônia-Anhalt e Turíngia. Berlim, que também é um estado alemão, não conta como um “novo estado”, porque o lado ocidental, que já era um estado antes da reunificação, apenas cresceu para abranger o lado oriental. A fronteira oficial sumiu há 34 anos. Mas a fronteira social persiste até hoje.

A nova república alemã, que teve sua capital em Bonn antes de voltar a Berlim após a reunificação, foi constituída de tal forma que o regime vigente impedisse a volta de uma nova ditadura (ou, pelo menos, é o que se diz).

Primeiramente, colocou-se encarnado no primeiro artigo da “Lei Fundamental” (Grundgesezt), o que regula como a constituição alemã, um princípio norteador da política da nova República: “A dignidade do ser humano é intocável. Respeitá-la e protegê-la é obrigação de todas as autoridades estatais.” Este artigo impediria que qualquer órgão, poder ou representante alemão pudesse ir contra a dignidade humana, impedindo que alguém como Hitler aplicasse sua política desumana.

Depois, assegurar o federalismo do novo Estado alemão era imprescindível para que os diferentes níveis da administração do poder público impedissem a concentração e exploração do poder por um único indivíduo ou conjunto de indivíduos.

Dois anos após a aprovação da constituição, foi fundada o Tribunal Constitucional Federal (das Bundesverfassungsgericht) que tem como função-mor a proteção da constituição alemã e da ordem democrática no país. Ela é responsável, entre outras coisas, por decidir sobre a proibição de partidos políticos – um mecanismo criado para impedir que agremiações partidárias contrárias à constituição e à ordem democrática pudessem continuar existindo e, assim, pôr a democracia alemã em perigo.

Todo esse processo aconteceu já depois da grande política de “desnazificação” levada a cabo pelas quatro forças aliadas que haviam controlado o território alemão no pós-guerra. Todos os aspectos da sociedade, cultura, imprensa, economia, justiça e política alemãs deveriam ser extirpado do espírito nazista que controlou tudo de maneira totalitária por 12 anos. Para isso, também, o assunto do nacional-socialismo foi e continua sendo um forte tema nas escolas. Palavras, gestos, frases, símbolos, qualquer cosia que faça alusão de longe ao nazi-fascismo foi banido e tornado ilegal na Alemanha.

Por fim, um país que aprendeu (ou foi forçado?) a aprender com sua história. “Nunca mais” (nie wieder) é uma frase que ressoa na Alemanha até hoje, entoando a responsabilidade histórica das novas gerações em jamais repetir o passado. Mas… e o que houve?

O nazismo não surgiu do vácuo. Grande parte das características que Hitler associou à Alemanha já existiam no país – e mesmo nos continentes europeu e americano. Não à toa, Hitler foi bastante influenciado por leis americanas2 para produzir suas leis racistas. Nesta época ainda havia zoológicos humanos na Europa e nos EUA, onde pessoas de outros continentes, com fenótipos tidos como “inferiores”, eram apresentadas como animais para as audiências brancas.

A Segunda Guerra Mundial, diferente da propagada do pós-guerra, não foi uma guerra civilizatória contra a barbárie. Foi uma guerra clássica de poder contra potências revolucionárias que pretendiam repaginar a ordem global. A visão de mundo dos outros líderes ocidentais, no entanto, não eram mais civilizadas (em nossos termos mais modernos) que à daquele que iniciou a guerra na Europa.

Dito isso, não é de se surpreender que a imposição de uma visão de mundo por meio de leis e frases vazias, que não se convertem na realidade, iria conquistar “corações e mentes”. Os horrores da Segunda Guerra Mundial serviram sim para minimizar e “tornar feio” ter um pensamento nazista, o que ajudou a criar um aparente mundo mais civilizado e progressista. No entanto, nas mentes de muitos ao redor do mundo, o sentimento racista e xenófobo se manteve latente em agrupamentos que se tornaram párias nas sociedades ocidentais. Isso até que elas estourassem em algum dado momento.

Novamente, esses ideais execráveis não são uma exclusividade alemã. Se muito, a Alemanha foi um local que permitiu o florescimento de uma pessoa específica que reverberou ad aeternum esse pensamento, encarnando-o em um movimento bem definido. Mas, esse pensamento existe em muitos outros países. O que se esperava, porém, era que, no local onde mais se houve o cuidado para que nada disso voltasse a se repetir, algo assim não voltasse a ter mais força e lugar na sociedade – se não para sempre, ao menos por um período mais longo.

A mais recente onda mundial da extrema-direita, no entanto, alcançou praticamente todos os países ocidentais, tirando do armário todos aqueles que partilham ideais fascistas e os alçando a cargos políticos cada vez mais altos. E a Alemanha não ficou de fora desse processo.

Anos e anos de um aparente cuidado para impedir que o berço do nazismo voltasse a dar essa erva daninha social parecem de nada ter servido com o surgimento e fortalecimento do primeiro partido de extrema-direita desde o fim do nazismo a se popularizar na Alemanha.

O partido alemão da vez é o chamado “Alternativa para a Alemanha” (AfD) que foi fundado em 2013 como um reflexo da Crise do Euro, em 2010. Criticando as políticas monetárias, mas não se opondo à participação da Alemanha na União Europeia. Certas bandeiras já estavam atreladas ao partido, tais como a “democracia direta” (usada por populistas para agitar a população), a oposição à imigração e ao casamento homossexual. O partido, no entanto, não conseguiu passar do mínimo de 5% dos votos para eleger candidatos na eleição de 2013 para o Bundestag (o parlamento alemão).

O que ficou conhecido como “crise dos refugiados”, quando milhões de pessoas fugidas do flagelo da guerra no norte da África e no Oriente Médio chegaram às fronteiras da União Europeia, porém, ofereceu a oportunidade para o partido crescer. A então chanceler alemã, Angela Merkel, da centro-direita, adotou uma política de “portas abertas”, com o intuito de fazer com que a Alemanha passasse a ser um exemplo de ajuda àqueles que buscavam asilo. Seria uma virada impressionante (e realmente civilizatória) para a história da Alemanha. Mas o tiro sairia pela culatra.

Nas próximas eleições, o partido conseguiu eleger 94 deputados, tornando-se a terceira maior força do parlamento alemão. As eleições de 2022 trariam um revés ao partido, fazendo sua força diminuir para cerca de 80 deputados (ou 2% a menos).

Evolução da porcentagem de assentos no Bundestag (Parlamento Alemão) nas últimas três eleições federais. Union = CDU/CSU (centro-direita), SPD (centro-esquerda)

A força do AfD, no entanto, não parou de crescer internamente. Sobretudo nos estados da antiga Alemanha oriental, o partido teve forte avanço. Já em 2017, os únicos distritos eleitorais onde o partido conseguiu acima de 30% dos votos foi nos “Novos Estados”, especialmente na Saxônia e na Turíngia. Neste último estado, em 2019, o partido alcançou 23% dos votos, sendo o segundo mais votado para o parlamento estadual, apenas atrás do partido “A Esquerda”, de extrema-esquerda.

No início de 2020, uma crise nacional se instaurou na política alemã. Um político do partido Liberal (FDP) foi eleito como presidente do estado com votos da centro-direita (CDU), dos liberais e da extrema-direita (AfD). Foi a primeira vez desde a Segunda Guerra Mundial que um partido de extrema-direita alemão conseguiria ter força política suficiente para eleger um governador.

Aqui deve ser dito que, até então, havia um “consenso” de formar um cordão sanitário contra os extremistas de direita. A cooperação de partidos estabelecidos, ou, como vieram a ficar conhecidos, “de partidos democráticos”, com o partido anti-democrático era algo impensável. A cooperação entre liberais e centristas de direita, no entanto, mostrava que esse cordão já não era lá mais tão forte.

Em 2023, o AfD conseguiu mais uma vitória política. Pela primeira vez após o fim do nazismo, um cargo executivo seria ocupado por um candidato da extrema-direita na Alemanha. Em uma cidade de oito mil habitantes, desta vez no novo estado da Saxônia-Anhalt, um candidato do AfD foi eleito prefeito com pouco mais de 51% dos votos.

Sobretudo com o início da Guerra na Ucrânia, o novo governo alemão, liderado pelos sociais-democratas em coalizão com os verdes e os liberais, tem tido dificuldades em governar. Com três partidos de vieses diferentes, e uma boa ajuda da mídia em pintar a coalizão como “incapaz”, a população da Alemanha tem vivenciado alta na inflação, perda do poder aquisitivo e um comprometimento de seu estado de bem-estar social. Nesse contexto, o AfD encontrou uma nova onda para surfar. Pesquisas de opinião apontaram que o partido se tornaria a segunda maior força política, apenas atrás do partido de centro-direita, CDU. No início de 2024, o partido chegou à sua maior projeção, quando cerca de 22% dos eleitores alemães votariam pelo partido se houvesse eleições para o parlamento.

Média das intenções de votos para o Bundestag por mês. Fonte: dawum.de3

Nas eleições para o Parlamento Europeu, que normalmente se dão mais por questões nacionais que europeias, em junho de 2024, o partido conseguiu se fixar como a segunda maior força política da Alemanha, à frente do tradicional partido social-democrata. Olhando onde o partido teve mais força na Alemanha, percebe-se logo a antiga divisão entre leste e oeste. Em todos os “Novos estados”, o partido teve a maior quantidade de votos no pleito.

Partido vencedor nas eleições para o Parlamento Europeu em 2024 por estado alemão. Preto = CDU/CSU (centro-direita); azul = AfD (extrema-direita); vermelho = SPD (centro-esquerda); verde = Verdes (esquerda).

Ao olhar os dados das pesquisas eleitorais e dos resultados para o Parlamento Europeu, pode-se pensar que a derrocada dos partidos da coalização (social-democratas, verdes e liberais) é apenas um resultado de sua própria falha política. Afinal, a centro-direita, representada pelos partidos de centro-direita União Democrata-Cristã (CDU) e União Social-Cristã (CSU), na Baviera, não está sofrendo esta derrocada. Bem, a centro-direita tem comprado uma sobrevida política por meio da aproximação de sua retórica, a nível nacional, à do partido de extrema-direita.

Desde 2021, a CDU de Merkel tem um novo presidente. Após ter se aposentado da política, o democrata-cristão Friedrich Merz conseguiu, após sua terceira tentativa, tornar-se presidente da “União” (como é chamada a CDU comumente). Merz contrasta fortemente com o estilo de política que consolidou Merkel no poder por 18 anos.

Usando-se de populismo contra migrantes e demonização de outros partidos políticos, o então presidente da CDU tem alinhado à retórica de seu partido à do AfD. Entre as afirmações de Merz estão a de que refugiados ucranianos só faziam “turismo” na Alemanha para tomar benefícios sociais4, que requerentes de asilo, que tiveram seus pedidos negados, mas continuavam na Alemanha, estavam tomando a vaga no dentista de alemães5 e que os “Verdes” seriam o “maior rival” político de seu partido6. Enquanto mantém uma retórica fortíssima contra os Verdes, um partido da esquerda democrática, ele chegou a relativizar a cooperação com o AfD, falando que se candidatos extremistas fossem eleitos, isso era democrático e “seria necessário encontrar caminhos para fazer política” nas cidades ou nos estados7. O comentário, em entrevista à imprensa, gerou diversas críticas internas no partido. No entanto, Merz foi reeleito em maio deste ano à presidência do partido, com quase 90% dos votos8. As críticas à sua forma de fazer política, aparentemente, só ficam na retórica.

Cartaz da CDU com um agricultor apontando uma ferramenta de maneira agressiva. No cartaz, lê-se “o governo semáforo [nome dado à coalizão do governo] quer colocar os fazendeiros no tanque. Tire as mãos do diesel agrário“.

Em meio às movimentações de fazendeiros no início de 2024, quando houve violência por parte de fazendeiros e o vice-chanceler (dos Verdes) foi atacado em uma balsa9, um cartaz da CDU da Saxônia começou a circular nas redes. O anúncio gerou críticas ao partido, sobretudo porque muitos políticos da CDU afirmaram querer taxar protestantes climáticos, que protestavam por se colar nas estradas, como “terroristas” e “colocá-los na cadeia”, mas atiçavam os fazendeiros assim10.

Por outro lado, acusações do que na Alemanha se condena como “incitação do povo ao ódio” (Volksverhetzung) foram feitas contra um político da CDU na Saxônia-Anhalt que, em meio a um ataque feito por um imigrante em uma cidade, comemorou o alvejamento do homem pela polícia, generalizou seu comportamento para todos os afegãos, taxando-os de “povão”, e pedindo pela expulsão de todos da Alemanha11.

Em janeiro deste ano, a organização jornalística alemã “Correctiv” divulgou o conteúdo de uma reunião secreta em Potsdam que ocorreu em novembro de 2023, organizada pelo AfD12. Neste encontro furtivo, discutiram-se vários “planos para a Alemanha”, dentre eles a chamada “remigração”, um vocábulo criado pelos extremistas de direita. Esse projeto, que, segundo os participantes, não é algo a ser apressado, mas “um projeto de décadas”, não se trata de nada menos que a deportação em massa de “estrangeiros” – não só refugiados. Parte deste grupo seriam, além dos requerentes de asilo, estrangeiros com direito à residência e “cidadãos não-assimilados”. Ou seja, os extremistas de direita pretendem retirar da Alemanha mesmo cidadãos que eles não consideram “alemães”.

Em meio a esses conspiracionistas estavam membros da CDU. Ao menos um fazia parte, ao mesmo tempo, da agremiação “União de Valores” (Werteunion), que é um pequeno partido conservador que, por mais que não estivesse associado à CDU, afirmava defender o “cerne” dos seus princípios e foi fundado por membros da CDU. O caso gerou comoção no partido, até com expulsão de um dos participantes13. Mas, nos últimos tempos, parece haver cada vez mais comoções negativas por membros dos democratas-cristãos. Muitas ações paliativas são observadas, mas, o essencial, seria observar o que tem causado essas ações em primeiro lugar. Por que o partido começa a ter tantos “maus exemplos” em seu meio – e em sua presidência?

Como se pode ver, o extremismo de direita se propaga livremente pela parte oriental da Alemanha. Neste fim de semana, houve eleições estaduais em dois desses estados: Turíngia e Saxônia. Os temores que há tempos se anunciavam se confirmaram. O AfD conseguiu se consolidar como uma força política. Na Saxônia, ficou pouco mais de 1% de diferença abaixo da CDU e, na Turíngia, tornou-se o maior partido do estado. Esta é a primeira vez, desde o nazismo, que um partido de extrema-direita é a maior força política em um estado alemão.

Resultado das eleições estaduais de 1º de setembro de 2024 na Turíngia e Saxônia. BSW = Bündnis Sarah Wagenknecht (novo partido da ex-líder da extrema-esquerda). Apenas partidos com mais de 5% dos votos elegem deputados para o parlamento estadual.

Na Turíngia, o AfD é agora uma força incontornável para a política estadual. O partido atingiu a chamada “minoria de bloqueio”, ou seja, o AfD pode bloquear qualquer política que não seja de seu interesse, pois conseguiu mais de um terço dos assentos no parlamento estadual14. Isso faz com que, entre outras coisas, novas eleições só possam ser chamadas antes do tempo com o aval do partido. Modificações da constituição estadual ou nomeação de juízes para a corte estadual também só podem ocorrer se o AfD permitir.

Em meio ao temor de controle do governo estadual por extremistas de direita, a Repartição Federal para Defesa da Constituição (Bundesamt für Verfassungsschutz), um órgão do Estado alemão responsável por investigar ameaças à ordem democrática do país, estabeleceu um plano de contingência para o caso de um governo em que o AfD faça parte. Seções estaduais e membros do partido são investigados pelo órgão por serem considerados como “extremistas de direita confirmados”15, ou seja, é confirmado que a agremiação ou vários de seus membros têm como objetivo a quebra do estado democrático. No caso de o partido controlar ou fazer parte de um governo estadual, ele poderia ter acesso a informações de investigações sigilosas e lesar os processos contra ameaças à democracia. Por isso, em caso de o partido compor governo em estados alemães, a seção estadual da Defesa da Constituição será cortada do fluxo de informação federal, para impedir vazamento de dados16.

De fato, o presidente da seção do AfD da Turíngia, o fascista convicto Björn Höcke, prometeu um “longo caminho da organização e da reconstrução” caso o AfD governasse o estado17. Entre seu plano de cinco pontos, está a “reforma da Defesa da Constituição estadual”, a fim de “democratizá-la”. Na prática, como ele mesmo afirmou, isso significaria retirar a luta contra o extremismo de direita da pauta. O partido de Höcke, que coleciona acusações nos tribunais por falas antissemitas e discursos pró-nazistas, pode até ter ganhado na Turíngia, mas ele não conseguiu ser eleito em seu distrito eleitoral18.

A Alemanha tem mais um ano antes das eleições federais em 2025 (caso o parlamento não seja dissolvido antes disso). Nesse meio tempo, o AfD se concretiza como uma força comum entre o espectro político alemão. Tornando-se a maior força em um dos estados e a segunda maior força em outro, significa que o partido está próximo a conseguir, enfim, compor governo a nível estadual. No momento, muitos analistas não veem isso acontecendo após as eleições na Turíngia ou Saxônia, já que todos os partidos democráticos se negam (publicamente) a entrar em coalizões com o AfD. No entanto, a possibilidade de um governo de extrema-direita parece mais próxima que longe.

O cordão sanitário da política alemã, que parecia ser algo factível, passou a ser relativizado e já deve ser considerado algo mais fictício a esta altura do campeonato. Com a (ainda) maior força política do parlamento, a centro-direita, cavalgando cada vez mais em direção ao extremo, por meio de uma retórica desumanizante e bélica cada vez mais forte e que não parece dar trégua, é de se perguntar o que será da Alemanha daqui a um ano.

Os social-democratas, liderados pelo chanceler Scholz, parecem ter ficado inertes nesses últimos dois anos de governo federal e, quando estão acordando para a dura realidade de derrocada política, parecem estar dispostos a adotar um tom que os aproxima mais à CDU, que, por sua vez, se aproxima mais do AfD. No geral, então, o que se vê é uma caminhada a passos largos para a direita, com o resultado ameaçador de normalizar a extrema-direita.

Muito se falava que um voto para o AfD era um “voto de protesto”. Essa tese se mostra ultrapassada, se é que alguma vez de fato tenha sido verdade19. O que se vê na Alemanha é a erupção de um pensamento antiquado, racista e xenófobo que não desapareceu depois da Segunda Guerra Mundial, mas manteve-se latente e esperando um momento para eclodir. Quem concorda e vota na extrema-direita por motivos de dificuldade econômica ou perda de bem-estar social, muitas vezes, não é apenas um cidadão “preocupado” ou “assustado”. Muito pelo contrário, é um cidadão que sempre acreditou nesses ideais, mas que não os podia expressar, pois a sociedade parecia ter avançado ao ponto de calar essas vozes. Esse tempo, porém, ficou no passado. “A dignidade do ser humano é intocável”. Até quando?

Muitas águas ainda hão de rolar na Alemanha, na Europa e no mundo nos próximos meses. O que resta é esperar que certas tendências retrocedam, por mais que essas pareçam ser apenas as primeiras ondas de um grande tsunami político mundial.

1 https://zdfheute-stories-scroll.zdf.de/ost-bilanz-einheit/index.html

2 https://time.com/4703586/nazis-america-race-law/

3 https://dawum.de/Bundestag

4 https://www.tagesschau.de/faktenfinder/merz-sozialtourismus-101.html

5 https://www.tagesschau.de/faktenfinder/merz-asylbewerber-zahnarzt-100.html

6 https://www.tagesschau.de/inland/innenpolitik/merz-gruene-100.html

7 https://www.tagesschau.de/inland/innenpolitik/merz-kritik-104.html

8 https://www.tagesschau.de/eilmeldung/merz-vorsitzender-wahl-100.html

9 https://www.ndr.de/nachrichten/schleswig-holstein/Nach-Blockade-der-Faehre-mit-Habeck-Fuenf-Strafanzeigen,schluettsiel106.html

10 https://www.spiegel.de/politik/deutschland/sachsen-cdu-wegen-inszenierten-fotos-zu-bauernprotest-in-der-kritik-a-1af2fccc-7325-4d92-a1d3-a50093189d6f

11 https://www.spiegel.de/politik/deutschland/ermittlungen-gegen-cdu-landtagsabgeordneten-wegen-volksverhetzung-a-be915dfd-c879-4317-851e-3be3519b90eb

12 https://correctiv.org/aktuelles/neue-rechte/2024/01/10/geheimplan-remigration-vertreibung-afd-rechtsextreme-november-treffen/

13 https://www.tagesspiegel.de/potsdam/landeshauptstadt/nach-teilnahme-an-rechtsextremem-geheimtreffen-potsdamer-cdu-leitet-ausschlussverfahren-gegen-vorstandsmitglied-wilderink-ein-11167855.html

14 https://www.zdf.de/nachrichten/politik/deutschland/sperrminoritaet-afd-wahl-thueringen-sachsen-100.html

15 https://www.swr.de/swraktuell/baden-wuerttemberg/nach-afd-aussagen-parteipolitische-einflussnahme-verfassungsschutz-100.html

16 https://www.t-online.de/nachrichten/deutschland/innenpolitik/id_100460234/verfassungsschutz-soll-notfallplan-im-falle-von-afd-regierungsbeteiligung-haben.html

17 https://www.mdr.de/nachrichten/thueringen/hoecke-fuenf-punkte-plan-afd-106.html

18 https://www.thueringer-allgemeine.de/politik/article407160574/bitterer-wahlsieg-der-afd-bjoern-hoecke-abgetaucht.html

19 https://www.br.de/nachrichten/deutschland-welt/protestwaehler-these-war-nie-richtig-wer-waehlt-die-afd,TlteeVQ