QUEM TEM MEDO DO GREEN DEAL?

É bastante comum que, ao se pensar em lobby, inevitavelmente a mente conjure fantasias de um vilão de monóculo e smoking, fumando um charuto e fazendo acordos escusos em salas escuras com figuras políticas corruptas. Em países neopatrimonialistas como o Brasil – um conceito que denota uma organização política e econômica que confunde bens e esferas públicos e privados – o lobby tem um histórico bastante manchado por escândalos suficientes para que a imagem se justifique. Ainda assim, o lobby é bem mais que seus escândalos, e se usado corretamente, pode ser uma ferramenta democrática de extrema importância.

Em essência, grupos de interesse – aqueles profissionais responsáveis por fazer o lobby, também conhecido como advocacy – são grupos organizados que buscam influenciar as decisões dos governos. Por definição, não há corrupção ou sequer um objetivo maléfico por trás destes grupos. Pense, por exemplo, que se o objetivo for influenciar o governo a produzir mais política social, ou talvez melhorar a educação, quem sabe alavancar a proteção ambiental ou o número de empregos no país, os grupos responsáveis estariam fazendo lobby ainda, um lobby com objetivos aparentemente nobres.

Não é só por definição que os grupos de interesse agem contra esse estereótipo maléfico. Usemos, como exemplo, grupos como FERN, Transparency International France, sindicatos, observatórios de política corporativa, grupos que advogam por direitos humanos e vários outros com missões nobres que atuam no Brasil e fora dele. Mas claro, nem tudo são flores. Assim como existem grupos de interesse com objetivos nobres, existem também aqueles não tão bem intencionados. Como exemplo, pode-se citar o Heritage Foundation, Heartland Institute e MCC.

Heritage Foundation é o grupo de interesse estadunidense responsável pelo Project 2025, um projeto de 922 páginas detalhando uma visão de futuro ultra-conservadora de extrema-direita para os EUA, com um executivo com poderes quase absolutistas, substituição de servidores de carreira por funcionários leais ao presidente, implementação de medidas contra direitos reprodutivos, direitos LGBTQ+, imigração e políticas ambientais. Heartland Institute opera nos EUA e no Reino Unido, e é um think tank com o objetivo de produzir e amplificar o alcance de conteúdos negacionistas do aquecimento global antrópico – feito por seres humanos – e das posições globais sobre saúde pública. Tais conteúdos são produzidos e amplificados mesmo quando são claramente fake news. Finalmente, MCC é um think tank húngaro recebedor de mais de 1,3 bilhão de dólares em fundos do Estado húngaro, liderado pelo diretor político de Viktor Orbán, Balázs Orbán. Além de advogar por visões de mundo e políticas filiadas à extrema-direita na Europa, o think tank ainda foca suas atividades na negação da crise climática como um todo.

Grupos de interesse operam de diversas maneiras, a depender dos arranjos institucionais do país – por exemplo, na Finlândia os grupos de interesse são parte oficial da produção de legislação do país, com consultas oficiais por parte do governo, enquanto no Reino Unido possuem status menos formal, sem espaços oficiais na produção de legislação – de suas agendas ou mesmo tópicos de interesse – a agenda climática e a agenda de telecomunicação operam de formas distintas por terem pressões e objetivos distintos, por exemplo – de seus recursos – grupos com muitos trabalhadores e recursos financeiros podem buscar agir em mais de um ângulo ao mesmo tempo, por exemplo – e de mais uma infinidade de fatores.

Alguns grupos são tão influentes que suas preferências são levadas em consideração mesmo antes que façam qualquer lobby – por exemplo, grandes companhias responsáveis por um número substancial de empregos no país, ou mesmo ONGs de carreira, respeitadas por seu histórico de lutas sociais. Outros grupos influenciam quais assuntos serão ou não debatidos pelos legisladores – por exemplo, através da seleção de quais informações serão oferecidas à eles, quais informações serão oferecidas ao público, aos jornalistas, quais análises e estudos receberão fundos e investimentos, etc. Alguns exercem influência durante a implementação das legislações, ajudando na formulação de métricas para se mensurar o sucesso da implementação, influenciando a forma prática tomada pelas diretrizes da legislação, etc.  

Grupos de interesse não operam somente em contextos democráticos, mas também em ditaduras – apesar de em bem menor número e com capacidades limitadas. Não operam somente em contextos nacionais, mas também em contextos subnacionais – estados, províncias, cidades, municípios, etc. Também operam em contextos supranacionais – aqui o melhor exemplo é o da União Europeia.

A União Europeia não é um país, mas um conjunto de instituições, órgãos internacionais, diretrizes acordadas entre países membros e vários acordos. Por exemplo, na UE alguns países fazem parte da zona do Euro, em que a moeda oficial é o Euro, enquanto outros não fazem – por exemplo a Suécia, Polônia, República Tcheca, Bulgária, Romênia e Hungria. Alguns fazem parte da zona Schengen, esse espaço de livre circulação de bens, serviços e pessoas, enquanto outros não – como Chipre e Irlanda. O bloco econômico é portanto uma série de interligações que se aplicam total ou parcialmente aos seus Estados-membros, produzindo assim diferentes graus de integração. 

Eis que o lobby na UE oferece oportunidades únicas, como por exemplo lobby em vários níveis. As várias redundâncias em diferentes acordos produzem oportunidades de se fazer lobby sobre um mesmo tema em diferentes instâncias – tanto nos vários espaços supranacionais como depois nos espaços nacionais em que as decisões supranacionais serão discutidas e implementadas. Claro, as estratégias precisam ser adaptadas. Como os estudos de Dür sugerem, advogar em várias instâncias pode ser contraprodutivo se o tópico não for formulado de maneira tal que seu caráter europeu tenha destaque, podendo ferir os grupos de interesse em sua busca por influência, ao invés de ajudá-los.

Em um contexto tão prolífico para os esforços em lobby, é no mínimo curioso que, nos últimos 20 anos, 2 legislações relacionadas ao meio ambiente estejam entre as 10 mais alvo de lobby. Politico, um jornal focado na política da UE, revisou mais de 5 mil legislações, produzidas nos últimos 20 anos, e concluiu que a regulamentação de due diligence e a regulamentação sobre embalagens e resíduos de embalagens foram alvo intenso de lobby.

Due diligence é a legislação que obriga empresas a identificar, prevenir e corrigir violações de direitos humanos e danos ambientais em toda a sua cadeia produtiva, desde a matéria-prima até o produto final, incluindo fornecedores, transportadoras e demais parceiros. De acordo com Politico, a legislação foi a segunda em número de proposições, com algo próximo de 13 mil emendas propostas. E os esforços para enfraquecer a regulamentação são criativos. Alguns grupos conseguiram advogar com sucesso pelo atraso de sua implementação, enquanto outros foram efetivos em excluir da deliberação por completo ou parcialmente grupos que seriam diretamente afetados. Obrigações foram reduzidas, o escopo das empresas afetadas pela regulamentação também reduzido, mecanismos de verificação foram enfraquecidos, e finalmente a legislação vive seu pior momento, com as medidas conhecidas como Simplificação Omnibus.

A  Simplificação Omnibus é uma espécie de “megapacote de desregulamentação”, promovido por alguns grupos de interesse relacionados a setores industriais sob o argumento de reduzir burocracias e melhorar a competitividade europeia, especialmente em um período de maior insegurança energética e geopolítica, como o atual. Com o perdão do latim – Omnibus significa “para todos” – há poucas atitudes mais elitistas que justificar ganhos individuais como uma necessidade existencial coletiva. 

Como argumenta Martin Sandbu do Financial Times, os esforços de Trump e Vance em convencer a UE de que suas regulamentações atrasam seu desenvolvimento foi quase em vão, dado o tamanho empenho dos grupos de interesse internos ao bloco em destruir as legislações ambientais. O curioso é que a própria OCDE descreve as regulamentações europeias como mais simplificadas do que as dos Estados Unidos – reiterando que ter menos regulamentação não significa ser um mercado mais aberto, visto as atuais medidas protecionistas estadunidenses.   

Sandbu também questiona a nova regra do “um entra, dois saem” – em que nenhuma nova norma deve ser introduzida a menos que duas antigas sejam eliminadas ao mesmo tempo – explicando que simplesmente contar o número de regulações não reflete se elas são benéficas ou prejudiciais. Ele explica que mais regulamentações em nível UE e menos diretivas que precisam ser adaptadas separadamente por cada Estado-membro poderiam ajudar a reduzir o peso regulatório para as empresas, que teriam maior liberdade de ação nos contextos nacionais. Revogar regras já adotadas – como por exemplo adiar o prazo para o fim das vendas de carros movidos a gasolina – daria uma vantagem inesperada a empresas que não se adaptaram e prejudicaria a competitividade daquelas que já investiram recursos reais para se adaptar. Mudar as regras no meio do jogo torna o mercado inseguro.

A outra regulamentação, a regulamentação sobre embalagens e resíduos de embalagens, foi aprovada apenas no fim do ano passado – e já sofre com tanta ação contra. Com o objetivo de reduzir a poluição causada pelo uso de embalagens descartáveis, a regulamentação causou disputas tão intensas que o Parlamento Europeu chegou a abrir uma investigação interna para endereçar as acusações de comportamento abusivo e violações de segurança referentes ao processo de discussão do texto.

Apesar de essas 2 legislações estarem entre as 10 mais focais para o lobby, é claro que não são apenas essas a sofrer ação para enfraquecê-las. Outro artigo do Politico discute os constantes ataques à proibição da venda de veículos a combustão até 2035, por exemplo, mostrando o quanto a UE está disposta a ceder aos ataques ao Green Deal. Essencialmente, o Green Deal é um agrupamento de políticas da Comissão Europeia com o intuito de tornar a UE neutra em emissão de carbono até 2050 – como por exemplo as duas regulamentações discutidas. Na prática, o Green Deal revisa cada lei existente baseando-se em critérios climáticos e introduz legislação adicional que versa sobre economia circular, re- ou de-florestamento, agricultura, renovação verde de edifícios, biodiversidade e inovação.   

Quando grupos de interesse operam de forma tão intensa contra um conjunto de regulamentações, é válido pensar o porquê. Quem se interessa pela desregulamentação da Europa? Quem tem medo do Green Deal? E talvez o mais importante a se pensar: e você, tem medo do Green Deal? 

Referências:

https://www.aclu.org/project-2025-explained?

https://www.theguardian.com/us-news/2025/mar/17/trump-administration-project-2025?

https://www.dailyclimate.org/heartland-institute-teams-up-with-far-right-european-politicians-to-fight-climate-policies-2670987485.html?

https://researchportal.helsinki.fi/en/publications/the-varying-mechanisms-of-media-access-explaining-interest-groups-2

https://onlinelibrary.wiley.com/doi/10.1111/psj.70010?af=R

https://www.tandfonline.com/doi/abs/10.1080/01402380802372662

https://journals.sagepub.com/doi/10.1177/1070496514536396

https://www.politico.eu/article/european-parliament-law-legislation-lobbying-technology-sustainability-amendments

https://www.ft.com/content/1d059c5a-56ab-4dc2-a022-03c63708322e

https://www.politico.eu/article/why-eu-combustion-car-ban-is-in-trouble-greenhouse-gas-climate-change