A pergunta, que soava como uma especulação distante no passado, hoje marca o início de uma corrida tecnológica de escala global. No século XXI, a Inteligência Artificial (IA) consolidou-se como um novo “campo de batalha”, no qual os Estados-nação disputam a liderança no âmbito da inovação tecnológica junto à busca por poder geopolítico. Enquanto os Estados Unidos investem massivamente em iniciativas como a Stargate — que deve injetar até 500 bilhões de dólares em IA na economia do país —, a China avança com sua estratégia de domínio industrial e controle estatal do setor.
Se, durante a Guerra Fria, a disputa entre EUA e URSS se media em poder bélico, com foguetes e propagandas de mísseis nucleares, hoje a disputa é mensurada em terabytes. Agora, dados e algoritmos substituem as ogivas como moeda de poder. A nação que dominar a inteligência artificial de ponta terá maior controle sobre a economia global e poderá ampliar sua influência nas políticas a nível local. Talvez consiga até decidir conflitos sem disparar um único projétil. Da mesma forma que o Sputnik soviético ou a chegada do homem à lua eram provas de supremacia tecnológica e militar, os modelos de IA tornam-se os novos feitos a serem demonstrados. O “vencedor” já não depende de armas de fogo, mas do controle dos códigos que ditam as regras do jogo.
Os Estados Unidos, com suas Big Techs, se mostram enquanto liderança nos investimentos em inteligência artificial. O país se utiliza de estratégias que juntam a inovação privada com restrições governamentais contra tecnologias estrangeiras, como a proibição da venda de semicondutores ligados à IA para a China. Entretanto, o gigante asiático se mostra independente das tecnologias norte-americanas para manter seus próprios sistemas de inteligência artificial. Enquanto isso, os EUA firmam acordos com aliados (Japão, Holanda e Coreia do Sul) em uma tentativa de monopolizar a produção de semicondutores avançados para treinar modelos generativos.
Reagindo às sanções, a China acelerou seu plano “Made In China 2025” com um novo pacote de cerca de 47 bilhões de dólares americanos para seu fundo de semicondutores, se caracterizando como o maior investimento na área desde 2014. Empresas estatais chinesas recebem subsídios para produzir chips, enquanto gigantes privadas desenvolvem modelos em ecossistemas fechados. A meta é substituir até 70% dos semicondutores importados, criando uma cadeia de IA totalmente chinesa, desde os chips até os dados. Somado a isso, a China vem ampliando
Manda quem pode
Enquanto EUA e China competem em capacidade, a União Europeia tenta se firmar enquanto protagonista da ética digital com a proposta do AI Act – o primeiro ato regulatório global sobre inteligência artificial. A ação busca proibir usos de identificação biométrica em espaços públicos e outros usos considerados de alto risco à conduta ética. Fica evidente a tentativa da UE em ditar padrões morais da tecnologia, já que o bloco não tem capacidade para investir tanto quanto os gigantes à frente das grandes corporações de IA. Mesmo com empresas robustas, os orçamentos ainda são significativamente menores que os das big techs norte-americanas.
Contudo, o preço dessa abordagem pode ser a perda da relevância tecnológica. Ao passo que a burocracia europeia discute limites para ChatGPT e outros chatbots, chineses e estadunidenses avançam em aplicações militares e industriais para seu uso. Como forma de reduzir a dependência de chips e algoritmos estrangeiros, a UE anunciou parcerias com o Reino Unido e a Noruega para desenvolver supercomputadores dedicados à IA, mas o dilema ainda perdura: como equilibrar privacidade e progresso na área tecnológica diante do grande embate EUA-China?
Outros players adotam estratégias para emergir na disputa: a Índia está impulsionando seu ecossistema de IA com subsídios de até 40% para infraestrutura digital, segundo reportagem do O Globo. O apoio governamental visa desenvolver modelos nacionais de inteligência artificial aplicáveis a diversos setores, cobrindo parte dos custos de hardware computacional essencial para a execução dos projetos. A Rússia entra na disputa global com seu GigaChat MAX, que já figura entre os principais modelos de IA, embora ainda esteja atrás dos líderes chineses (como o DeepSeek) e norte-americanos (como o ChatGPT) nos rankings internacionais.
Colônias digitais e novas relações de poder?
Ao questionar as complexas dinâmicas que circundam a regulamentação da inteligência artificial, ficam perceptíveis as discrepâncias entre as nações que lideram a corrida e as que firmam acordos sob as condições da nação fornecedora para obter melhoria tecnológica em seus territórios. É diante desses quadros que novos âmbitos dentro das relações de dependência se pautam, principalmente no que tange ao controle de fluxos de dados, infraestruturas digitais e sistemas de algoritmo que influenciam e ditam a vida social e econômica.
Países que não possuem capacidade plena para produzir semicondutores ou operar supercomputadores necessários ao desenvolvimento de modelos avançados de IA correm o risco de se tornar dependentes digitais. Nesses contextos, governos, serviços públicos e populações acabam utilizando plataformas estrangeiras, alimentando bases de dados de grandes corporações transnacionais e seguindo padrões técnicos definidos pelas big techs. O resultado é uma nova forma de subordinação – agora, de natureza tecnológica.
Essas “colônias”, muitas vezes, tornam-se fornecedoras involuntárias de dados, que são extraídos, armazenados e monetizados no exterior. Ao mesmo tempo, o poder de moldar os algoritmos se reverbera nas decisões político-econômicas, como políticas de segurança pública, currículos escolares, concessões de crédito, entre outros. Tudo isso concentrado em poucas mãos. As novas hierarquias de soberania chegam, pouco a pouco, em forma de dados programados, ao passo que a ausência de infraestrutura própria também impede a formulação de políticas públicas autônomas e sustentáveis na área de tecnologia e IA.
Cabe aqui uma reflexão sobre as novas formas de dominação e suas implicações para os pilares que sustentam uma nação e sua posição no cenário internacional. Quando as tecnologias mais avançadas são majoritariamente importadas de países do Norte Global, o Sul permanece subordinado a ferramentas produzidas no exterior. Ainda que o Brasil mantenha parcerias estratégicas com outras nações do Sul Global – como os acordos recentes firmados com a China durante a visita do presidente Lula – o uso de peças e sistemas estrangeiros mantém o país financeiramente e tecnologicamente dependente dessas relações. Se até mesmo os Estados Unidos demonstram preocupação com a liderança de Taiwan na produção de semicondutores, o que dizer então das perspectivas dos países em desenvolvimento diante dessa nova corrida tecnológica?
Militarização uso de dados
Com o advento das múltiplas possibilidades de uso da inteligência artificial, a natureza dos conflitos e das guerras tem sido modificada com a inserção dessas novas tecnologias. O uso de IA em estratégias e tomadas de decisão nos contextos militares começa a substituir funções humanas nestes casos, subvertendo o que antes eram conflitos travados entre sujeitos políticos racionais para um cenário no qual os algoritmos calculam probabilidades e definem ações com base em eficiência operacional.
Historicamente, os Estados ponderam suas relações com base nos riscos políticos e estratégicos antes de recorrer ao uso da força (exceto em contextos excepcionais de líderes que fogem à regra). A IA, ao oferecer análises em tempo real em análises em dados volumosos pode influenciar diretamente os cálculos de uma operação, seja prevendo o sucesso ou minimizando incertezas quanto a ações militares. Mesmo que isso possa evitar ações impulsivas, a IA pode induzir a usos oportunistas da força em contextos frágeis, tornando-se uma ferramenta que pode se traduzir em uma armadilha para a própria humanidade.
Ao pensar no encerramento de conflitos, percebe-se que a paz depende de negociações e concessões que envolvem julgamentos subjetivos e lideranças morais. Esses elementos são intrinsecamente humanos e não dificilmente podem ser replicados por sistemas automatizados. A ausência do fator humano, que perde espaço para a IA, pode comprometer a reconstrução da paz, especialmente em função das soluções frágeis ou tecnocratas incapazes de lidar com as complexidades da subjetividade humana nos contextos de guerra. Vale discutir sobre o risco da militarização deste sistema e das consequências geopolíticas que pode causar no âmbito internacional.
Nova moeda de poder no tabuleiro geopolítico
A introdução da inteligência artificial enquanto instrumento de poder no sistema internacional demonstra o surgimento de uma nova arquitetura geopolítica na qual a soberania passa a ser medida, também, pela capacidade de produzir e controlar tecnologia de ponta. Os algoritmos e as redes sociais têm grandes capacidades de influenciar tomadas de decisão e gerar fake news com deep fakes em massa. No centro desse novo cenário, estão os países que dominam cadeias produtivas de semicondutores e acumulam grandes volumes de dados através do uso de modelos avançados de IA. Esse domínio se traduz em liderança econômica e poderio militar, com grande potencial de gerar dominação.
Nesse contexto, a militarização da IA adiciona camadas ainda mais críticas à disputa. Os sistemas automatizados já participam de tomadas de decisão estratégicas, ampliando a “eficiência” dos cálculos militares, mas esvaziando o componente humano necessário à diplomacia e à reconstrução da paz. A centralização do poder algorítmico em poucos polos cria riscos de abusos de poder e dificultam respostas conjuntas frente a cenários imprevisíveis.
É imprescindível estabelecer um marco regulatório internacional robusto, multilateral e ético para o desenvolvimento e uso da IA. A experiência da União Europeia com AI Act direciona uma possibilidade a ser seguida, mesmo que ainda limitada por sua reduzida capacidade de competir tecnologicamente com os Estados Unidos e a China. No entanto, a regulação deve ser pensada como uma forma de garantir soberania tecnológica e de promover uma governança global mais segura que proteja direitos fundamentais. Sem ações coordenadas, a advertência feita por Vladimir Putin em 2017 pode deixar de ser apenas uma previsão para se tornar uma realidade concreta: “A inteligência artificial é o futuro, não apenas para a Rússia, mas para toda a humanidade. Ela vem com oportunidades colossais, mas também com ameaças difíceis de se prever. Quem se tornar o líder nessa esfera será o governador do mundo”.
Referências
https://veja.abril.com.br/economia/nvidia-cai-mais-de-5-com-interferencia-do-governo-trump/
https://veja.abril.com.br/economia/trump-dobra-a-aposta-em-inteligencia-artificial-nos-eua