MITIGANDO A MIOPIA DEMOCRÁTICA: O EXEMPLO FINLANDÊS

No dia 30 de abril deste ano, o jornalista Johnny Harris cobriu em seu canal do Youtube o treinamento militar conjunto das forças finlandesas e parceiros da OTAN no Ártico. Com ampla experiência de guerra ártica, os finlandeses instruíam as forças das demais nações aliadas, que muito admiradas, rasgavam elogios à preparação finlandesa. Harris então viaja até Helsinque, a capital do país, para conhecer os quilômetros de bunkers e túneis subterrâneos, com toda a estrutura necessária para enfrentar os mais variados cenários de segurança. Enquanto apresentava a preparação militar finlandesa, Harris comentava também sua extensão civil e, admirado, questionava se esse seria o segredo da “felicidade” finlandesa (o país liderou o Ranking Mundial da Felicidade pelo oitavo ano consecutivo).

A Finlândia é um país com um histórico muito particular. Desde as invasões vikings até 1917, o território da Finlândia nunca foi completamente independente. Por séculos, foi uma colônia sueca, até ser conquistado pelo império russo ao fim da Guerra da Finlândia (1808-1809). Durante a formação da URSS, a Finlândia exerceu seu direito de autodeterminação – concedido por Lênin – e se tornou um país independente em 1917, apenas para ter esse direito revogado pouco tempo depois – durante o governo Stalin -, o que resultou nas Guerra de Inverno (1939-1940) e Guerra de Continuação (1941-1944). Com a perda da região da Carélia e um trauma multigeracional fundador de uma identidade finlandesa na contraposição da russa (“sou finlandês porque não sou russo”), o país passou as próximas décadas sob a doutrina Paasikivi–Kekkonen, também conhecida como finlandização.

Se percebendo como um Estado tampão – um Estado nacional entre duas potências (UE e Rússia) – A finlândia precisou calcular bem seus passos para que não se alinhasse completamente nem ao Ocidente – provocando fúria russa – nem à Rússia – perdendo as oportunidades econômicas, sociais e políticas que o Ocidente oferecia naquele momento. Sem poder contar com a proteção de um alinhamento completo com o Ocidente, a Finlândia passou a se preparar para defender a si mesma. É desse período a conscrição obrigatória e as medidas de preparação tão elogiadas por Harris.

Quando cheguei na Finlândia – onde moro há quatro anos – me surpreendi com as raízes profundas da militarização na sociedade. Os macacões estudantis com os chapéus a la marinha, as tradições estudantis semelhantes às militares, a socialização de vocabulário e maneirismos militares, etc. No dia da independência, eu e meus colegas, todos ex-conscritos, tomávamos parte na tradição de assistir a adaptação cinematográfica do mais famoso clássico literário finlandês, O Soldado Desconhecido, de Väinö Linna, basicamente um tratado literário realista sobre as consequências psicológicas da guerra contra os russos. Um de meus restaurantes favoritos na cidade de Tampere se chama Plevna, nome dado a uma cidade búlgara em que soldados de Tampere morreram por ordens russas.

Assisti nas ruas do país um desespero calado quando a Rússia invadiu a Ucrânia em 2022. Os traumas multigeracionais fundadores eram novamente justificados, alimentados, e não é surpresa que ali a doutrina Paasikivi–Kekkonen tenha acabado. Em seu lugar, o país tomava parte na OTAN, além de maiores, substanciais investimentos em um arcabouço de preparação civil-militar já avançado. Mas essa não é uma coluna sobre a agenda de segurança. Ao invés disso, exploremos um outro componente, explicitado por Harris, dos esforços de preparação – a felicidade. 

O Ranking Mundial da Felicidade é um desenvolvimento da proposta do reino do Butão de medir felicidade ao invés de PIB. O relatório produzido anualmente tem 2 rankings: o ranking da felicidade como o número de experiências de êxtase momentâneo (momentos de felicidade na vida) e o ranking de felicidade como satisfação (felicidade com o estado da vida e seu propósito). Como o objetivo do Ranking Mundial da Felicidade é guiar políticas públicas, acabam por dar maior ênfase no ranking mais afetado por elas, o segundo. E é justamente neste que a Finlândia se sobressai.

Quem convive com finlandeses não deve se surpreender com o resultado. Finlandeses são, em geral, um povo calado, sisudo e resiliente, mas com uma confiança grande uns nos outros e no governo. O país tem pouca hierarquia, e em geral as pessoas se tratam pelo primeiro nome, mesmo em contato com o primeiro ministro ou presidente. O Estado-de-bem-estar-social é grande, com diversas políticas sociais que promovem uma larga igualdade entre os finlandeses. A segurança se estende não só a segurança física, mas também mental, econômica, emocional, educacional, energética, etc.

Mas o que a preparação tem a ver com a felicidade? Essa resposta tem vários níveis. Em um nível mais básico, a conscrição obrigatória e os traumas históricos multigeracionais compartilhados geram uma homogeneidade de valores, prioridades, vocabulário e entendimentos de mundo que dificultam a polarização política e sua consequente infelicidade. Os finlandeses se alienam pouco de seus pares por razões políticas. À essa homogeneidade contribuem também a igualdade econômica e a pouca hierarquia (“se você tem o que eu tenho, e as mesmas oportunidades que eu, não há razão para o uso da violência”). 

Em outro nível, a preparação gera segurança a respeito do futuro, um grau de certeza em um mundo incerto que poucos países são capazes de fornecer aos seus cidadãos. Aliás, em matéria de futuro, os finlandeses são ímpares. Como Koskimaa e Raunio argumentam em seus vários estudos seminais (nas referências desta coluna deixo o meu favorito), a preparação para o futuro que fundamenta a sociedade finlandesa é também a razão pela qual o país consegue mitigar os problemas gerados pela miopia democrática, um desafio que parece assolar a maioria dos demais países.

Miopia democrática é a tendência que tomadores de decisão em democracias têm de priorizar investimentos no presente em detrimento do futuro. As razões são várias – o partido que tira o dinheiro do presente para investir no futuro provavelmente não será aquele que colherá os frutos eleitorais do resultado deste investimento; o presente possui diversas mazelas e necessidades que precisam ser endereçadas com urgência; o população que “perde” dinheiro no presente para investir no futuro não será a mesma que colherá seus resultados; etc. Esse tipo de investimento não é necessariamente em dinheiro, mas na forma de diminuição do bem-estar no presente para expandi-lo no futuro, e o que torna esse investimento ainda mais complexo é o fato de que a maioria das políticas intertemporais também são transversais, ou seja, lidam também com escolhas de investimento em relação ao bem-estar de diferentes classes sociais no presente e no futuro.

Aqui algumas ressalvas são válidas: 1) a homogeneidade finlandesa que mantém em certa medida a coesão social e a ordem também produz diversos problemas, como estagnação de inovação, por exemplo. Em países maiores e mais heterogêneos como o Brasil, não é algo necessariamente aplicável. 2) Isso não quer dizer que não devamos buscar maior equidade econômica ou menor hierarquização. Essas sim são possíveis no contexto brasileiro. 3) Miopia democrática, apesar de ser um problema, é um cenário melhor do que o pouco ou nenhum investimento na população do presente nem do futuro que se vê na vasta maioria das ditaduras.

Dito isto, a Finlândia lida com a miopia democrática como lida com a preparação militar no Ártico, utilizando-se de instrumentos sociais e instituições políticas focadas na preparação para o futuro. Poder-se-ia dar uma miríade de exemplos, mas foquemos em um: o Tulevaisuusvaliokunta, ou Comitê para o Futuro. Criado em 1993, o Comitê para o Futuro é um comitê permanente e apartidário do parlamento finlandês (Eduskunta) que oferece relatórios técnicos, ouvidorias e perspectivas políticas focadas exclusivamente nas necessidades dos finlandeses do futuro. De certa maneira, é a democracia representando aqueles que ainda não nasceram. Ainda que o comitê não tenha voto, sua capacidade de influenciar a agenda política – temas que serão legislados – faz do comitê uma instituição influente no processo de tomada de decisão no país.

Como o comitê precisa produzir relatórios técnicos, a Finlândia acaba por investir em inovações na área de pesquisas de futuros (no plural mesmo, já que são vários futuros possíveis), e por isso o país é referência mundial nesse tipo de metodologia acadêmica. Eu mesmo a utilizei durante minhas pesquisas no mestrado da Universidade de Tampere.  

Ao olhar para a experiência finlandesa, percebe-se que a preparação para o futuro não é apenas uma questão de segurança territorial ou energética, mas também existencial e emocional. O Comitê para o Futuro, assim como outras instituições focadas no futuro, mostra que é possível se pensar para além do presente imediato, criando condições para maior coesão, resiliência e, sim, felicidade. Talvez o verdadeiro segredo finlandês não esteja apenas nos bunkers ou nos macacões de estudante, mas na coragem de investir hoje para garantir o amanhã.  

Referências

Boston, J. (2021). Assessing the options for combatting democratic myopia and safeguarding long-term interests. Futures, 125, 102664.

CNBC Make It. (2020, janeiro 9). Why Finland and Denmark are happier than the U.S. [Vídeo]. YouTube. https://www.youtube.com/watch?v=6Pm0Mn0-jYU

Harris, J. (2025, abril 30). Por dentro do INSANO treinamento de combate no Ártico da Finlândia [Vídeo]. YouTube. https://www.youtube.com/watch?v=Msfrit12u0M

Jacobs, A. M. (2016). Policy making for the long term in advanced democracies. Annual Review of Political Science, 19, 433–454.

Koskimaa, V., & Raunio, T. (2020). Encouraging a longer time horizon: The Committee for the Future in the Finnish Eduskunta. The Journal of Legislative Studies, 26(1), 159–179.

Vrousalis, N. (2017). Intergenerational justice. In I. González-Ricoy & A. Gosseries (Eds.), Institutions for future generations. Oxford Scholarship Online.