Veja como o Coronavírus trouxe à tona os dois maiores inimigos do governo Bolsonaro: o fardo da verdade e a necessidade do conhecimento
Em 1971, o professor de filosofia política John Rawls apresentava ao mundo aquela que para muitos é a mais importante obra de filosofia moral e política do século XX, Uma Teoria da Justiça. Ao defender uma reconciliação das questões da liberdade e igualdade, que ao longo dos séculos têm polarizado as principais disputas políticas e ideológicas pelo mundo, Rawls utiliza-se de um artifício lógico bastante original chamado “posição original” (original position), que implica dizer que os membros de uma sociedade devem decidir quais princípios de justiça ordenarão as instituições básicas desta sociedade enquanto os mesmos se encontram por detrás de um “véu de ignorância” (veil of ignorance).
O véu da ignorância, em Rawls, significa dizer que nenhum daqueles que está decidindo quais serão os princípios de justiça que ordenarão a sociedade conhece seu lugar na sociedade ou sua classe social, os indivíduos não sabem sequer quais são as suas habilidades naturais, capacidades cognitivas ou forças. Segundo Rawls, o véu da ignorância garante que os sujeitos, além de agirem racionalmente, ajam de modo razoável e com senso de justiça, por isso escolherão, nesta posição original, princípios justos para ordenar suas instituições.
Diferentemente do véu da ignorância de Rawls, que “fabrica” um sujeito moral, paira em nossa sociedade outro tipo de véu da ignorância. Este último é extremamente danoso à vida em coletividade e, ao invés de fabricar um indivíduo com senso de justiça, fabrica o indivíduo ignorante. Segundo a definição encontrada nos dicionários, ignorante é aquele que: desconhece ou ignora algo; não tem conhecimento, instrução ou cultura; é rude ou mal-educado.
Em resumo, não é difícil perceber que, no Brasil de 2020, a definição de ignorante é cada dia mais sinônimo da palavra “presidente”. A cada vez que o presidente Jair Bolsonaro fala ou faz alguma coisa, é possível imaginar a existência de um grosso véu da ignorância posto sob sua face que o impede de agir, por um momento sequer, com discernimento e razoabilidade.
A crise sanitária iniciada pelo Coronavírus serviu para mostrar, mais uma vez, que o presidente está sob este véu da ignorância, que lentamente vai sendo revelado pelos dois maiores inimigos que qualquer indivíduo ignorante pode ter: o fardo da verdade e a necessidade do conhecimento.
Não é de hoje que o presidente Jair Bolsonaro trava uma luta contra os fatos e o conhecimento de modo geral. Ainda em julho de 2019, diante da divulgação dos dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) a respeito do aumento do desmatamento na Amazônia na primeira metade do mês, o presidente afirmou existir uma “psicose ambiental” no Brasil e classificou os dados do INPE como “mentirosos”. Aproximadamente um mês depois, Ricardo Galvão, presidente do INPE à época da divulgação dos dados, foi exonerado por Bolsonaro.
No mês seguinte a demissão de Ricardo Galvão, e em meio ao desprestígio internacional de sua política para o meio ambiente, o presidente discursou na Assembleia das Nações Unidas e afirmou que a Amazônia não estava sendo devastada nem consumida em fogo, “como diz mentirosamente a mídia”. Mesmo em meio aos dados mensalmente divulgados pelo INPE e diante das evidências amplamente divulgadas mundo afora, o presidente recusava-se a admitir a situação grave da Amazônia. Como o presidente deixaria transparecer em novembro de 2019, ele mesmo não acreditava na possibilidade de mitigar o desmatamento na Amazônia por esta ser uma questão “cultural”.
O tema do meio ambiente ainda ajuda a entender mais um motivo pelo qual Bolsonaro pode ser considerado um ignorante. Uma das formas de emprego da palavra ignorância se refere à falta de delicadeza ou gentiliza, estupidez, grosseiria ou incivibilidade. Precisamente todas essas características podem ser encontradas na resposta esdrúxula do presidente a um repórter quando questionado sobre a possibilidade de equilibrar o crescimento da economia com a sustentabilidade: “Você fala para mim em poluição ambiental. É só você fazer cocô dia sim, dia não, que melhora bastante a nossa vida”.
Alguns poderiam argumentar que a ignorância é uma característica confinada ao presidente, mas ela aparentemente se tornou um pré-requisito essencial para assumir uma pasta no governo federal. Um caso emblemático é o Ministro da Educação Abraham Weintraub. Weintraub, popularmente conhecido por não saber diferenciar Kafka (famoso escritor tcheco) e kafta (prato de origem árabe) e por pousar nas redes sociais dançando com um guarda chuva, utilizou-se de um critério bastante científico e assentado nas boas métricas de avaliação das políticas públicas para justificar o corte de verba de universidades públicas em 2019: a promoção de balbúrdia nos campi. Gradualmente, após ser constantemente questionado pelo critério, o ministro encorpou sua lista de critérios.
Como se não bastasse viver com o paradoxo de ser ministro da educação e ser inimigo declarado das universidades públicas do país, que produzem a esmagadora parte da pesquisa e ciência do Brasil, o ministro Weintraub ainda consegue tempo para demonstrar sua ignorância no Twitter. No dia 15 de Novembro, após publicações enaltecendo figuras monárquicas da história brasileira, o ministro respondeu a um dos comentários da seguinte forma: “uma pena, prefiro cuidar dos estábulos, ficaria mais perto da égua sarnenta e desdentada da sua mãe”. A postagem do ministro ainda continua disponível para que os futuros historiadores possam apreciá-la quando estiverem estudando esse período da história brasileira: Confira aqui!
Entretanto, a ignorância de Bolsonaro e de Weintraub diante de áreas importantes como meio ambiente e educação parecia apenas estar preparando a população brasileira para o episódio seguinte da saga “os ignorantes no poder”. Com a chegada da pandemia do Coronavírus ao Brasil, Bolsonaro mais uma vez mostrou ser alguém que desconhece ou ignora os fatos e a ciência e que não tem conhecimento, instrução ou cultura.
Porém, dessa vez há dois fatores importantes que fazem com que qualquer véu da ignorância seja revelado de forma vergonhosa: (1) o fato evidente da existência de um vírus altamente contagioso, mesmo que o presidente faça pouco caso quanto a esta questão; e (2) o papel que a ciência e o conhecimento exercerão na divulgação de informações e na contenção e tratamento do Coronavírus. Portanto, o Coranavírus é o vírus mais letal que o governo Bolsonaro poderia enfrentar, precisamente por representar aquilo que lhe causa mais medo (e que, no fundo, é o seu calcanhar de Aquiles): a verdade.
Apenas para ilustrar a cronologia dos fatos, e constatar como o Coronavírus expôs o véu da ignorância que cobre o presidente da república, no dia 10 de março de 2020, o presidente classificou o momento de crise sanitária mundial como uma “Pequena crise” e que, ao seu entender, era “muito mais fantasia, a questão do Coronavírus, que não é isso tudo que a grande mídia propala ou propaga pelo mundo”. Ironicamente, apenas dois dias depois, em 12 de março, em uma de suas famigeradas lives nas redes sociais, o presidente apareceu utilizando uma máscara. Naquele dia, o Palácio do Planalto confirmara que o secretário de Comunicação da Presidência da República havia contraído o vírus. O secretário havia integrado a comitiva presidencial que viajou para os Estados Unidos na semana anterior.
Como se não bastasse o golpe dado pelo destino, o presidente ainda se encarregou de participar, no dia 15 de março, de uma manifestação na qual cumprimentou dezenas de pessoas, contrariando assim uma recomendação dada por Luiz Henrique Mandetta, Ministro da Saúde do próprio Bolsonaro, para que a população evitasse aglomerações. Um dia após a manifestação, o Brasil registrou o primeiro óbito por Coronavírus no país. A “fantasia” tornara-se pesadelo.
Em meio ao crescimento exponencial de casos de contaminados no Brasil e, consequentemente, do pânico entre a população brasileira, o presidente insiste em tratar com descaso a questão. No dia 17 de março, um dia após o registro do primeiro óbito por Coronavírus no país, o presidente voltou a falar que faria uma “festinha tradicional” para comemorar os seus 65 anos.
Portanto, pouco mais de um ano após assumir o cargo de presidente da república, o Coronavírus trouxe consigo os mais terríveis inimigos que um ignorante como Bolsonaro pode encontrar em seu caminho: o fardo da verdade e a luz do conhecimento. O fardo da verdade se manifesta no fato evidente de que há uma crise sanitária, a qual o presidente faz pouco caso, enquanto que a luz do conhecimento, a ciência e a pesquisa são as únicas coisas que nos farão suportar esta crise.
O melhor exemplo para mostrar como a crise tem revelado o véu de ignorância que cobre os ignorantes no poder – fazendo-os abdicar de suas posições de ignorantes, mesmo que momentaneamente, para aceitar o peso dos fatos e o papel do conhecimento – é o próprio ministro Abraham Weintraub, que antes afirmava que as universidades eram locais de “balbúrdia”, e agora tem chamado os alunos de medicina, enfermagem, farmácia e fisioterapia de volta às aulas, bem como convocado os departamentos de saúde das universidades a reverem a suspensão das atividades destes. Confira aqui!
O presidente, por sua vez, não foi tão sagaz como o seu ministro, que oportunisticamente reconheceu, mesmo que indiretamente, a importância do conhecimento no combate a uma pandemia. Bolsonaro permanece andando por aí com o seu véu da ignorância a cobrir a face, não há um minuto sequer que o presidente abdique de usá-lo. Assim, diferentemente daquele véu hipotético apresentado por Rawls, o véu da ignorância de Bolsonaro é real e, para a nossa infelicidade, parte integrante da sua natureza.
Entretanto, como nos provou Weintraub, ignorante nenhum é capaz de resistir ao peso dos fatos e à necessidade do conhecimento, pois, como o próprio Bolsonaro cita, “e conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará” (João 8:32). Após anos vivendo em completa ignorância – e após contaminar a Esplanada dos Ministérios com pessoas igualmente ignorantes -, pode ser que finalmente a verdade liberte o presidente, ou o condene de vez.
Fontes consultadas
Bolsonaro aparece com máscara em live, diz que aguarda resultado de teste para coronavírus. Disponível em: https://oglobo.globo.com/brasil/bolsonaro-aparece-com-mascara-em-live-diz-que-aguarda-resultado-de-teste-para-coronavirus-1-24301798
Bolsonaro discursa na abertura da Assembleia Geral da ONU em Nova York. Disponível em: https://g1.globo.com/mundo/noticia/2019/09/24/bolsonaro-discursa-na-abertura-da-assembleia-geral-da-onu-em-nova-york.ghtml
Bolsonaro diz que desmatamento na Amazônia é questão “cultura”. Disponível em: https://www.dw.com/pt-br/bolsonaro-diz-que-desmatamento-na-amaz%C3%B4nia-%C3%A9-quest%C3%A3o-cultural/a-51334649
Bolsonaro diz que questão do coronavírus é muito mais “fantasia”. Disponível em: https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/03/10/bolsonaro-diz-que-questao-do-coronavirus-e-muito-mais-fantasia.ghtml
Bolsonaro fala em histeria e diz que fará “festinha de aniversário”. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2020/03/bolsonaro-fala-em-certa-histeria-e-diz-que-fara-festinha-de-aniversario.shtml
Bolsonaro sugere “fazer cocô diz sim, dia não” para ajudar meio ambiente. Disponível em: https://www.huffpostbrasil.com/entry/bolsonaro-meio-ambiente_br_5d4da5b6e4b0820e0af51275
Bolsonaro vê “psicose ambiental” e diz que Inpe divulga dados “mentirosos” sobe desmatamento. Disponível em: https://www.huffpostbrasil.com/entry/bolsonaro-psicose-ambiental_br_5d32200de4b0419fd32ce0c3?ncid=other_huffpostre_pqylmel2bk8&utm_campaign=related_articles
Ex-presidente do Inpe crítica visão de governo Bolsonaro sobre Amazônia. Disponível em: https://exame.abril.com.br/brasil/ex-presidente-do-inpe-critica-visao-de-governo-bolsonaro-sobre-amazonia/
MEC cortará verba de universidade por balbúrdia e já mira UNB, UFF e UFBA. Disponível em: https://educacao.estadao.com.br/noticias/geral,mec-cortara-verba-de-universidade-por-balburdia-e-ja-mira-unb-uff-e-ufba,70002809579