Porque falar em fraude agora é apenas propaganda política

A fraude nas eleições americanas só existe em três lugares: na cabeça de Trump, de seus aliados mais próximos e bolsonaristas

Por mais que o assunto das eleições americanas já seja tema há algum tempo (nossa terceira edição foi dedicada ao pleito americano), nesta semana os brasileiros realmente viraram os olhos para seu vizinho do norte.

Não por menos, nem mesmo por vira-latismo reconhecido, é de grande interesse dos cidadãos do Brasil saber quem ocupará a Casa Branca nos próximos quatro anos ou, melhor, se Trump manterá seu lugar em Washington. Isso porque, como pôde ser observado nestes quase dois anos de governo Bolsonaro, há um alinhamento não só automático como incondicional com o atual presidente americano – e não com os EUA como muitos falam.

Quando, nos EUA, se falou em intervir militarmente na Venezuela, o mandatário brasileiro começou a cogitar uma participação brasileira criando tensões no subcontinente – à época, noticiou-se que os militares haveriam parado a cruzada quixotesca do presidente brasileiro. Na época da pandemia, a cloroquina foi assunto nos EUA e isso se traduziu em uma outra cruzada anticientífica no Brasil – tendo nosso país sido usado como zona de despejo de toneladas do produto que os EUA perceberam que não serviria para nada (nem mesmo Trump usou o remédio quando contraiu a doença).

Assim, não é de se surpreender que os brasileiros queiram saber quem vencerá o pleito americano, já que isso terá consequências diretas na nossa política interna e externa. Domesticamente, Biden já sinalizou que será severo com o Brasil em relação ao seu mal-trato ambiental (com a Amazônia sobretudo). A política de “passar a boiada” não poderá continuar se Brasília não quiser receber ameaças reais de sanções. No plano internacional, o Brasil que já se orgulha, nas palavras de seu chanceler, em ser um pária internacional, deixará de ter a força dos EUA e terá de colaborar somente com os outros países governados por mandatários que seguem a cartilha da direita brasileira, nomeadamente, Polônia e Hungria.

Se Trump conseguir se reeleger, a situação se mantém mais ou menos a mesma, com uma tendência a se fortalecer, já que vencer o pleito significa a chancela da população americana de uma política internacional de enfrentamento, bilateralismo ameaçador e conspirações. O Brasil teria mais força para continuar sua luta contra o moinho de vento internacional.

Portanto, os resultados das eleições americanas tornaram-se o assunto na mídia e redes sociais brasileiras. Mas, como não podia ser diferente, quando se fala de um assunto que não se conhece, as pessoas também tendem a expor opiniões errôneas. A alegação de fraude é uma delas.

A fraude denunciada pelas redes sociais

Dedicamos uma boa parte de nossa terceira edição para explicar uma parte do sistema eleitoral americano – que é bastante complexo. Mas algo que se deve trazer aqui é o fato de que, nos EUA, a eleição presidencial (e também para o Congresso e outras questões concernentes somente ao estado em questão) fica a cargo do próprio estado. Isso significa que no dia 3 de novembro, 50 eleições independentes estavam acontecendo nos EUA.

E por que independentes? Porque cada estado tem suas regras para a eleição (pode ser por correio, cédula para marcar, cédula para escrever, cédula para marcar e escrever, urna eletrônica, etc.) e para a apuração (só votos até o dia da eleição valem, votos que cheguem pelo correio até seis dias depois da eleição podem ser válidos e assim por diante). No caso da apuração, que está sendo colocado em questão pelo presidente e pelas redes sociais, há um efeito direto dessa autonomia de cada um dos 50 entes federativos dos EUA.

De início é importante frisar que todos os resultados que estão sendo divulgados na mídia (TV, jornal, redes sociais) não são oficiais. Diferentemente do que estamos habituados no Brasil, de receber os dados eleitorais diretos do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) – de maneira oficial -, nos EUA os dados oficiais das eleições só são divulgados no começo de dezembro (mais ou menos um mês depois da eleição presencial. Até lá, o que se vê são os dados divulgados pela imprensa que coleta esses dados in loco nos condados americanos (algo como os municípios brasileiros). Qual a consequência disso na prática? Que os dados, primeiramente, não são reais, mas uma previsão. E, segundo, que as mídias que não obtiverem os dados da mesma base de dados, apresentarão resultados divergentes.

O consórcio mais famoso por fazer essa coleta é o Associated Press (AP) que apresenta em seu portal online o processo de divulgação dos dados eleitorais (“fiscais” da imprensa coletam os dados nos condados, repassam-nos para os escritórios da AP por telefone, eles checam esses dados com outros fiscais e inserem-nos no sistema – que também impede que eles adicionem dados que sejam muito discrepantes, criando “paradas” na apuração volta e meia). Empresas como Google têm seus dados provenientes da AP. Isso significa, por exemplo, que no dia 05 de novembro, às 10h, é reconhecido pela AP que Biden assegurou o estado do Arizona. Já o New York Times e a CNN, por exemplo, não contabilizam os delegados do Arizona para o democrata, indicando que a eleição no estado ainda não foi definida.

Mais ainda, os números totais são diferentes. Enquanto o The Gardian às 10h do dia 05 de novembro apontava que Donald Trump havia conseguido 68.650.312 de votos, o New York Times divulgava que o republicano mantinha 68.362.959 (287 mil votos “a menos”). E não é uma questão de “alinhamento ideológico”, mesmo porque, no caso do Arizona, enquanto a CNN (que muitos apontam como pró-Biden) não aceita ainda que o democrata tenha assegurado o estado, a Fox News (que se mostra pró-Trump) já dá o estado como ganho para Biden.

Uma imagem que está sendo divulgada no Twitter – e republicada por muitos apoiadores de Bolsonaro – é a de que, no estado de Michigan, a apuração teria sido “parada” e, depois, Biden teria ganhado pouco mais de 138 mil votos enquanto Trump não havia ganhado nenhum:

Primeiro é importantíssimo lembrar que esses resultados não são oficiais. Dito isso, várias podem ser as respostas por esse aumento “estranho” dos números de Biden (e somente dele). As possibilidades vão desde um erro na transmissão da informação do “fiscal” da imprensa no local, digitação errada dos dados no sistema ou mesmo porque realmente votos apenas para o democrata foram computados naquele momento – é necessário lembrar que a apuração é feita com métodos próprios por cada estado e cada condado, não necessariamente eles observaram 138 mil votos e todos foram para o democrata, mas talvez eles tenham divulgado esses dados de uma única vez (há de se lembrar que em muitos estados o voto é apenas em papel.

Outra imagem que se divulga é a de que, nos gráficos de evolução da porcentagem dos votos, os números de Biden sobem verticalmente e não na diagonal (mostrando como ele estaria recebendo milhares de votos de uma única vez, enquanto Trump não apresenta esse aumento.

New York Times, como mostra a imagem acima, apresenta a evolução da porcentagem de votos no estado de Michigan e vários momentos de subida e queda abruptas (ou “verticais”) aparecem tanto para Biden como para Trump. Nesses momentos, há um aumento muito maior de um candidato que de outro. Sobretudo porque esses dados não são oficiais, não se pode falar em fraude usando esses gráficos que são de responsabilidade única da imprensa – e dos organismos que os publicam.

Alguns foram mesmo nas redes sociais falar que, nos estados onde Trump ganhou a votação, essa subida abrupta na vertical também aconteceu:

A fraude de Trump

Sobra para os apoiadores do atual presidente americano acreditar unicamente na palavra de Trump quando afirma constantemente que haveria, há (e, num futuro próximo, houve) fraude nas eleições de 2020. Na madrugada do dia 04 de novembro, Trump reafirmou que estava havendo fraude nas eleições, declarou uma vitória não embasada nas votações e ainda ameaçou entrar na Suprema Corte para garantir que ele se mantivesse no cargo e que a apuração dos votos parasse.

Entrar na justiça para suspender a contagem dos votos, no Brasil e em quase todos os cantos do mundo seria a própria fraude, mas nos EUA isso seria impedir a fraude – ao menos no discurso ideológico do atual presidente americano e de seus apoiadores. Trump afirma ser fraude, mas não dá provas de que seria. Enquanto ele requeria que os estados de Wisconsin, Michigan e Pensilvânia parassem a contagem – quando ele ainda mantinha a liderança -, o mesmo não é verdade para o Arizona – onde ele haveria chances matemáticas de vencer. Ou seja, a fraude ocorre somente onde Trump poderia perder, mas não onde ele poderia ganhar.

Muitos falam que é evidência da fraude o fato que a campanha de Trump pedirá a recontagem dos votos em Wisconsin. Neste estado, Biden venceu por uma diferença de cerca de 20 mil votos (menos de um por cento do total). Em 2016, Trump venceu em Wisconsin, contra Hillary Clinton, também com menos de um por cento do total dos votos – à época, também se falou em recontagem e Trump respondeu afirmando que aquilo seria um “golpe” de democrata e do partido verde (concorrendo também naquele ano). Este ano, aparentemente, não há golpe algum em pedir uma recontagem.

Mais ainda, ele só pedirá a recontagem porque a margem lhe permite fazê-lo – de acordo com a constituição do estado. E como assim? Nos estados onde a margem de Biden passou o 1%, Trump não consegue manter seu discurso de fraude – já que não há provas -, então onde o democrata pode passar do republicano, mas ainda não passou, o atual presidente requer da justiça que pare a contagem e que o resultado atual se mantenha – ou seja, ainda faltando votos que podem fazê-lo perder o estado, Trump quer para o jogo no meio enquanto ele está ganhando.

No momento da escrita deste artigo, a Pensilvânia e a Geórgia parecem apontar para uma virada de Biden também por menos de 1%. A campanha de Trump tenta, sem sucesso, suspender imediatamente a apuração dos votos para manter sua liderança. A verdade é que quanto mais as chances de o atual ocupante da Casa Branca ter de se preocupar com o caminhão de mudança, mais ele afirma que está havendo fraude e mais processos judiciais são redigidos para parar a democracia americana.

Até o momento, a única coisa que se pode afirmar com certeza é que a chamada democracia americana (que é indireta, é necessário lembrar) igualou-se a países latinoamericanos onde não só se questionam os resultados como se põe em dúvida o próprio processo eleitoral – algo que não há precedentes na história americana. Essa fratura com certeza deixará marcas independente de quem realmente ganhe a eleição.

O sujo falando do mal lavado

As acusações de Trump sobre fraude nas eleições americanas ficam mais interessantes quando o próprio presidente (ou seu partido) atuaram para burlar o sistema – ou, com um termo melhor, fraudá-lo.

Sobre o voto por correio, que existe desde a época da Guerra Civil Americana (1861-1865), o presidente falou constantemente que este método centenário seria um meio fraudulento. O voto nos EUA não é obrigatório, o que faz com que os candidatos tenham que convencer os eleitores não só a votarem neles, mas, de fato, a votarem! Em um ano de pandemia, a opção de voto por correio – com o menor contato social possível – se torna uma opção muito mais viável para milhões de cidadãos – o que, por sua vez, também aumenta a participação dos eleitores, já que eles não precisam sair no dia da eleição, mas votar antecipadamente.

O candidato democrata, que se colocou contra a posição negacionista do atual presidente em relação ao vírus, encorajou seus eleitores a votarem pelo correio, para evitar aglomerações. Assim, espera-se que os votos pelo correio sejam majoritariamente para Biden. A resposta de Trump mostra a faceta fraudulenta que ele tanto afirma que o outro lado produz.

Neste ano, o US Postal Service (USPS), o sistema americano de correios, sofreu mudanças que dificultariam esta modalidade de voto antecipado. O novo administrador do sistema (chamado em inglês de “Postmaster General“), Louis DeJoy, é um grande financiador de campanhas do partido republicano – e de Trump. Ele foi apontado por um órgão do governo americano, o que foi mais um motivo para entender que a administração atual agiu para interferir no sistema postal.

O pedido de um governador de apresentar os documentos que apontaram DeJoy para o cargo, o órgão federal recusou-se a apresentá-los afirmando que eram “confidenciais”. O novo diretor do correio fez mudanças no sistema. Uma dessas foi a de que os caminhões dos correios deixariam as agências no horário definido, mesmo que as postagens do dia não tivessem sido ainda carregadas – fazendo com que encomendas, cartas e votos pudessem ser deixados para trás. Posteriormente, a organização do USPS afirmaria que esses memorandos que efetivavam essas mudanças “não eram oficiais” – mas afirmou que o correio estava “comprometido em entregar o correio eleitoral a tempo”. Depois disso, uma outra nota afirmaria que o tempo de entrega dos estados (para receber os votos), não seria compatível com os prazos do sistema postal – significando que, provavelmente, os votos não chegariam a tempo de serem contabilizados.

Além disso, o partido republicano da Califórnia instalou caixas de postagem de votos não-autorizadas no estado em Los Angeles, Ventura, Orange e Fresno. A legislação de alguns estados permite que uma outra pessoa entregue o voto de alguém e, assim, essas caixas poderiam ser apenas o partido republicano entregando os votos de outras pessoas. Mesmo quando o governo do estado ordenou que o partido retirasse essas caixas não-autorizadas, o partido se negou e afirmou que continuaria com elas. Não há como saber o que aconteceria com os votos que foram depositados nessas urnas, já que o partido republicano é que os controlaria.

Além disso, o próprio presidente Trump afirmou que, já que haveria fraude no voto pelo correio, seu correligionários deveriam votar duas vezes. “Se vocês tiverem uma cédula de correio [absentee ballot], ou como eu chamo uma cédula solicitada, enviem-na. Mas eu checaria de toda forma. Eu iria acompanhá-la e ir votar [presencialmente]. Todos aqui querem votar”, afirmou o presidente em Wilmington, na Carolina do Norte. Na ideia de Trump, se o voto por correio realmente funcionasse, os apuradores veriam que a pessoa já teria votado e não contariam o voto pelo correio. Segundo a diretora-executiva da Junta Eleitoral da Carolina do Norte, Karen Brinson Bell, tanto tentar votar duas vezes e quanto solicitar que alguém faça isso é um crime de acordo com a lei do estado.

Tentar parar a apuração dos votos com medo de que o opositor vire é apenas mais uma tentativa do presidente de fraudar as eleições – quando ele afirma que outros farão.

O resultado das eleições americanas só será referendado de fato em dezembro, quando os delegados de cada estado se reunirão para votar no presidente e vice-presidente – gerando um “Certificado de Voto” que só será checado pelo Congresso no começo de janeiro. Neste processo, também podem ocorrer mais discussões com o risco dos chamados “delegados desleais”. Mas, até lá, é certo que Trump tentará de tudo para manter-se no poder – como ele mesmo já ameaçou. Assim, à pergunta “por que falar de fraude?” pode-se responder: “porque falar em fraude agora é apenas propaganda política”.

Se você quiser saber mais sobre o sistema eleitoral americano e das últimas eleições, leia a terceira edição do DPolitik dedicada ao pleito americano clicando aqui!