Ana Carol Vaquera analisa o cenário político boliviano após o golpe de Estado de 2019 e as eleições de 2020 em meio à pandemia
O sistema político boliviano – de formação colônia, estruturada por uma oligarquia branca e segregacionista que durante a vida republicana do país fortaleceu a condição dependente e periférica do país. Ele é importante para compreender o momento de crise do velho sistema e a instauração de uma democracia populista liderada por Evo Morales.
Desde o ano 2000, a Bolívia passou por um processo de reivindicação do sistema político que levou à visualização dos movimentos sociais e sua incorporação às decisões políticas, junto ao protagonismo de novos atores políticos no cenário nacional. Neste cenário sobressai um líder outsider da política boliviana, Evo Morales, que depois de uma vida política no senado e como dirigente dos movimentos cocaleros, seria presidente do país durante 14 anos, de 2005 até o golpe de Estado em 2019. Não obstante, Evo Morales seria o mandatário mais longevo da história do país, mas sem terminar seu mandato constitucional, pois teve seu mandato abruptamente terminado pela queda do regime democrático, em consequência, a Bolívia reviveria um ano de instabilidade político com um governo fascista, ao mesmo tempo que representaria um ano eleitoral polarizado e cheio de instabilidade política até as eleições de outubro de 2020.
A assembleia constituinte e referendo de 2016
A crise política se iniciou em 20081, propondo a continuidade do projeto do MAS, “processo de mudança”, liderado por Evo Morales. No primeiro momento e visando a boicotar a Assembleia Constituinte por parte da oposição, construiu-se uma narrativa de ódio e ressentimento até o projeto do MAS contra as classes médias e altas dos setores periféricos, conjuntamente as organizações indígenas começaram a frustrar suas reivindicações. Por outro lado, um dos debates que precedeu as eleições de 2009 foi a elaboração de uma Lei do Regime Eleitoral e a possibilidade de mudar os tempos dos mandatos. A primeira possibilidade se estendeu durante a Assembleia Constituinte, com a modificação e aprovação de uma reeleição. Em uma segunda tentativa, e com a confiança do respaldo que recebeu no referendo anterior e sua última reeleição, Morales tenta modificar a constituição para aumentar seu mandato. Sem embargo, depois de 10 anos, perde a consulta pública.
Posteriormente, com o sistema judicial a favor de seu partido, Evo Morales entra com um recurso no Tribunal de Justiça e, através do legislativo, reforma a lei do regime eleitoral sobre as formas de eleição. Implanta-se a eleição de candidatos com base em primeiras para posteriormente seguir ao pleito nacional e assim poder concorrer às eleições em 2019, ignorando os resultados do Referendo de 2016.
Eleições e Golpe de Estado: ascensão fascista
Os episódios de racismo e violência contra indígenas, alguns orquestrados por sedes ou organizações que apoiavam ou patrocinavam esses atos violentos, foram recorrentes desde 2018. Os fatos de o governo ter se distanciado das bases sociais e ignorado os resultados do referendo, onde quase três milhões de cidadãos entre 15 e 29 anos e dos quais mais de dois milhões vivem na área urbana2 votaram “não” no referendo de 2016, tornaram-se pontos fundamentais dos distúrbios pós-eleitorais de outubro de 2019 que levaram à queda do governo e ao golpe cívico-militar.
Houve uma convulsão social em 2019, mas a cúpula fascista absorveu as demandas sociais com base no questionamento racial e no apoio à elite oligárquica do país. O que começou em 2019 com o Golpe de Estado na Bolívia, continuou com uma presidência ilegítima, fascista e cheia de controvérsias.
Depois da paralização da contagem rápida dos votos por parte do sistema de Transmissão de Resultados Preliminares (TREP) – que deixou de funcionar por 24 horas – pôs-se em marcha o golpe de Estado. Antes da paralização da contagem, os resultados indicavam um segundo turno entre Evo Morales (MAS) e Carlos Mesa (CC), mas com o retorno da contagem, o resultado dava Evo Morales como ganhador, evitando um segundo turno. À instabilidade do TREP somaram-se a ilegitimidade da candidatura de Evo Morales, a campanha de desprestígio do Tribunal Eleitoral, por parte da oposição, a qual foi um dos elementos que encorajaram a desconfiança no padrão eleitoral, impulsionando a população a desconfiar dos resultados e sair para protestar por três semanas com fortes enfrentamentos civis que apoiavam a candidatura e o resultado das eleições contra aqueles que negavam a candidatura e o resultado e reiteravam que houve fraude3.
Todo o descontentamento e os escândalos durante o governo de Evo Morales levaram ao desgaste de sua gestão que, inclusive, levou as bases populares a apoiar os movimentos de desestabilização de outubro de 2019. Sem dúvidas, entre as formas de protesto mais radicais, destaca-se o movimento do Comitê Cívico Pro Santa Cruz, com Luis Fernando Camacho à sua frente, movimento este que levou o fascismo a seu momento mais forte e, com ele, derrubaram o governo de Evo Morales.
Logo depois, Jeanine Añez, que toma o poder com apoio das Forças Armadas, baixa o Decreto 4078 que exime de responsabilidade penal as Forças Armadas para acalmar os protestos sociais que surgiam em resistência ao Golpe de Estado. Os protestos foram similares aos da guerra da água em 2000 e a guerra do gás em 2003; eles foram criminalizados e, face a uma sociedade polarizada, houve vários enfrentamentos armados entre a sociedade civil e os militares. Contudo, Evo Morales sai da Bolívia em condição de refugiado para o México, esta crise política causada pela pressão das Forças Armadas que lhe privaram dos três meses de governo que lhe restavam para finalizar um mandato legítimo, o que aprofundou a polarização e os enfrentamentos pós-eleitorais. A clivagem étnico-cultural e religiosa teve um papel fundamental para sustentar o golpe e o desestabilizado governo de Jeanine Añez.
A única missão da “presidência interina” de Jeanine Añez era a de convocar eleições e, com o Tribunal Constitucional endossando a extensão de seu mandato e suas funções – até que novas autoridades fossem eleitas –, apresentou sua candidatura, a qual renunciaria um mês antes das eleições.
Ter queimado a Whipala4, depois que Luis Fernando Camacho invadiu o palácio em chamas com a ajuda da política e com uma bíblia nas mãos, é outro elemento que demonstra a conotação de um golpe fascista, racista e fundamentalista. Este movimento fascista que foi impulsionado por vários anos e que, em 2019, chega a desencadear os massacres por parte das Forças Armadas e um Executivo impulsionando grupos irregulares armados terminou deixando o governo com responsabilidade pelos vários massacres e um péssimo controle sobre a situação da pandemia.
Eleições gerais: Retomando o rumo da democracia popular?
As organizações sociais campesinas e indígenas foram o pilar de transição para o regime democrático entre os anos de 2000 e 2005, além de representar a maioria populacional da Bolívia, são e serão atores fundamentais para a contestação da ordem política vigente que excluiria sua participação.
As eleições de outubro de 2020 deram a vitória a Luis Arce5 (MAS) com 55% dos votos. Por um lado, a contundente vitória do MAS representou a resposta do povo não somente face a um mal governo, mas às injustiças, à perseguição e à morte do governo fascista de Añez. Uma direita extrema que governou o país por um ano, mas que nunca manteve a simpatia popular e com muita instabilidade não pôde enfrentar um bloco unido e o representante da centro-direita, Carlos Mesa, que também participou do golpe de 2019, não puderam fazer frente às reivindicações da população boliviana. Sem embargo, as reivindicações populares e a aproximação a uma democracia popular ainda estão pendentes por parte do Estado boliviano, continua pendente a dívida aos povos originários campesinos que lutaram por melhores condições e dias melhores.
Conclusões
Mesmo que o primeiro ciclo da crise do governo MAS termine com a aceitação do governo por parte da oposição, ela foi resultado da atuação de setores subalternos que se mantiveram mobilizados ao longo da segunda fase do ciclo. O processo de polarização voltaria a fortalecer-se com o conflito do TIPNIS, pelo qual o governo recorreu a estratégias de deslegitimação das organizações indígenas6. Por outro lado, a oligarquia com a qual Morales compactuaria seria a mesma oligarquia racista e fascista que provocaria o golpe de Estado. O Comitê Cívico e personagens da antiga meia lua, que retornaram ao país durante o governo de Jeanine Añez foram os promovedores da desestabilização e patrocinadores da desobediência militar. O governo de Evo Morales foi se desgastando paulatinamente com os anos. O desgaste partidário do Movimento para o Socialismo (MAS) junto com a cooptação das formas de organizações sociais levou o governo a isolar-se e distanciar-se das demandas do povo que havia elegido o governo Morales em 2005.
Os movimentos sociais, a classe operária e trabalhadora em grande parte rechaçaram o projeto fascista que governou o país por quase um ano. Sem embargo, o espectro fascista que sempre esteve presente na conformação político-social boliviana apresentou-se quebrando todas as estruturas sobre as quais o Estado Plurinacional estava sendo estruturado. Sobra a reflexão sobre a importância de erradicar o fascismo que se mantém arraigado no seio de uma sociedade racista e rechaçar o fascismo, o machismo e a segregação social em todas as suas formas para reconstruir um país mais estável socialmente. Resta ao MAS aproveitar a segunda oportunidade que lhe foi conferida para cumprir seu mandato com base na legalidade e legitimidade, reestruturar suas bases e cumprir com o mandato popular.
Rodapés
1 como resposta, em dezembro de 2007, Morales enviou ao Congresso uma lei de convocação para um referendo revocatório, uma solução encontrada para o impasse nas negociações políticas da Constituinte. A população deveria decidir a respeito da continuidade do mandato de Evo Morales e García Linera e das autoridades executivas dos nove departamentos. 67% dos eleitores votaram a favor da continuidade das autoridades do executivo e algumas prefeituras derrotadas, em sua maioria representando a Meia Lua, o que indicava a derrota da oposição. Sem embargo, depois, no dia 10 de setembro, o governo denunciou um golpe de Estado “atípico” planejado por grupos paramilitares fascistas por parte dos comitês cívicos da Meia Lua. Em seguida, no dia 11 de setembro, o “massacre de Pando” foi central para a desarticulação da estratégia de desestabilização e o prefeito de Pando, Leopoldo Fernandez, foi preso e culpabilizado por ter incentivado esses atos em 2008.
2 CF. Canelas (2016, p. 28)
3 Mais informações sobre a desmistificação da fraude eleitoral no artigo do New York Times: https://www.thenation.com/article/archive/bolivia-times-morales-coup/
4 A Whipala é uma bandeira de origem andina. A palavra tem origem nas palavras da língua aimará eiphay, que é uma expressão de alegria, e phalax, que é o sonho produzido por conduzir uma bandeira.
5 Arce foi ministro do governo de Morales por 12 anos consecutivos, teve que renunciar a seu cargo por problemas de saúde, saiu exilado para o México com um salvo conduto durante o golpe de Estado e depois retornou para seguir com a candidatura de seu partido à presidência.
6 CF. Pannain, Rafael (2018, p. 310)
Referências
BOLIVIA. JOSÉ LUIS EXENI RODRIGUEZ. (ed.). Revista Andiamos: revista del órgano electoral plurinacional de bolivia para la deliberación pública. 2. ed. La Paz: Organo Electoral Plurinacional, 2016. Cap. 1. p. 23-28.
PANNAIN, Rafaela N. A RECONFIGURAÇÃO DA POLÍTICA BOLIVIANA: reconstituição de um ciclo de crises. Lua Nova: Revista de Cultura e Política, [S.L.], n. 105, p. 287-313, set. 2018. FapUNIFESP (SciELO).
Sobre a autora
Ana Carol Aldapi VAQUERA
Bacharel em Ciências Políticas pela Universidad Católica Boliviana San Pablo. Mestranda no Programa de Pós-graduação em Ciências Políticas e Relações Internacionais (PPGCPRI) na Universidade Federal da Paraíba (UFPB).