Na União Europeia, a vacinação empaca e prolonga as sucessivas ondas de covid no bloco
Diferentemente dos EUA e de seu antigo membro, o Reino Unido, a União Europeia tem ficado para trás na corrida pela vacinação. Enquanto Israel retira a obrigatoriedade de máscaras e Washington anuncia um quatro de julho de “independência do vírus”, a pergunta que se faz é: por que a Europa está demorando para vacinar?
Em fevereiro deste ano, o professor Robin Cohen¹ atentou para um excedente de vacinas no bloco que poderia imunizar 525 milhões de pessoas a mais do que a quantidade de adultos – um número que é consideravelmente maior do a população inteira de 447,7 milhões de habitantes da UE. Um montante final de 1,6 bilhão de doses seria direcionado para a população dos países-membros.

Ainda assim, a média total de imunização do continente no fim de abril é de apenas 19,19%, para ao menos uma dose, e 7,10% de imunização total da população que pode se vacinar. Os EUA, a esta altura, já têm um quarto da população (25,78%) imunizada de maneira completa (com duas doses ou dose única) e o Reino Unido pouco mais de 15 por cento. À frente de todos, encontra-se Israel que já está chegando aos 60% de vacinados e começa a voltar à normalidade pré-pandemia.
A situação atual da pandemia não é também das melhores. As segunda e terceira onda atingiram o bloco fazendo com que os governos tivessem de prolongar medidas restritivas por mais tempo, mantendo inclusive o fechamento total (lockdown).
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Negociando rápido, mas nem tanto
Por trás da demora encontra-se um problema conhecido da população brasileira: negociação e compra tardia de doses com as grandes fabricantes. O processo de negociação é levado a cabo pela Comissão Europeia, o órgão executivo do bloco. Ela negocia individualmente com cada fabricante de vacina em nome dos Estados-membros e pode fechar um “acordo prévio de aquisição” (APA). Esses APAs são firmados quando no mínimo quatro membros estão dispostos a comprar vacinas de uma determinada empresa. Nesse processo, a Comissão assina o APA arcando com os custos iniciais para a disponibilização da vacina. Quando as vacinas ficam disponíveis, os Estados-membros então fecham o contrato final com a empresa, pagando o valor que foi acordado entre a Comissão e o fornecedor. Desta maneira, a Comissão pode barganhar vacinas em nome de até 27 países, aumentando sua relevância e barateando custos.
Em junho de 2020, a Comissão lançou a “Estratégia da UE em matéria de vacinas”². O plano europeu apresentou os objetivos de: 1) garantir a qualidade, segurança e eficácia das vacinas; 2) assegurar aos Estados-membros o acesso rápido às vacinas; e 3) garantir o acesso equitativo a preços acessíveis o mais rápido possível. Ainda, os dois pilares do plano se baseavam em assegurar da vacina para os Estados-membros e na flexibilização dos mecanismos da UE para o rápido desenvolvimento de imunizantes e sua liberação. Depois da turbulenta chegada do vírus ao bloco, com países agindo individualmente e desrespeitando regras comunitárias como o fechamento das fronteiras internas, a presidente Ursula von der Leyen, na apresentação do plano, frisou que o bloco se uniu em torno da estratégia. Os investimentos financeiros iniciais vieram do montante de 2,7 milhões de euros disponibilizados pelo Instrumento de Apoio de Emergência da União Europeia e de empréstimos do Banco Europeu de Investimento.
As negociações realmente começaram já no início do segundo semestre³, tendo o primeiro APA sido firmado em 27 de agosto de 2020 com a AstraZeneca (assegurando 300 milhões de doses com a opção de mais 100 milhões). Subsequentemente, foram firmados acordos com a Sanofi-GSK em 18 de setembro (para 300 mi. de doses), com a Johnson & Johson em 21 de outubro (mais 200 mi., podendo duplicar o montante), com a BioNTech Pfizer em 20 de novembro (para 200 mi., podendo aumentar mais 100 mi.) e com a CureVac em 30 de novembro (225 mi. a 180 mi. a mais) e com a Moderna em 4 de dezembro (80 mi. de doses, podendo ser duplicado o montante).
Os números surpreendem. Mas a realidade não saiu tão bem como o esperado. Em janeiro, a Pfizer-BioNTech, por problemas com a produção, não pôde suprir a demanda incialmente acordada. A empresa diminuiu as entregas a países europeus e justificou afirmando que estaria tentando aumentar a capacidade da fábrica na Bélgica. A situação fez com que os governos da Itália e Polônia ameaçassem a Pfizer com ações judiciais. A Moderna também teve problemas de entrega, impossibilitando a reposição de estoques na França e Itália. A AstraZeneca, com quem a UE firmou o primeiro APA, também teve problemas de produção em suas fábricas na Bélgica e Países Baixos. Ainda, a empresa afirmou que devido ao fato de que o acordo ter sido fechado depois do contrato com o governo do Reino Unido, não houve tempo hábil para resolver os problemas de abastecimento para a União Europeia.
Por mais que von der Leyen tenha admitido em fevereiro que a UE teve sua parcela de culpa por “ter autorizado as vacinas tardiamente”, a situação com a empresa britânica teve mais desenvolvimentos adversos nos primeiros meses de 2021.
Ferida aberta entre Bruxelas e Londres
Não demorou muito para que a União Europeia e o Reino Unido voltassem a ter choques políticos. Os atrasos de entrega de vacinas por parte da AstraZeneca (que é sediada na cidade britânica de Cambridge) puseram em questão o acordo firmado com a Comissão. Ao passo que a empresa tenha afirmado que houve problemas com a produção na Bélgica, a fabricação de seu imunizante caiu no escrutínio da mídia dos países-membros, sobretudo porque as entregas para o Reino Unido não sofreram nenhum atraso.
Em uma matéria de fevereiro, lançada pelo jornal europeu “Politico”¹¹, fica claro que, por mais que o acordo firmado entre a Comissão e a AstraZeneca não abra brechas para processos judiciais por imprevistos (e, assim, atrasos no geral), há uma exceção que permite à contraparte europeia a judicialização caso a empresa britânica não consiga atender às “práticas de boa produção” ou se houver uma denúncia de “má conduta intencional” ou mesmo “inobservância dos requerimentos regulatórios da União”. Nesse contexto, levantaram-se algumas questões.
Primeiramente, o contrato demonstra que a empresa superestimou a quantidade de vacinas que poderia prover à União. Em segundo lugar, por mais que as fábricas na Inglaterra também sejam consideradas no contrato como parte da cadeia de fornecimento para a UE, não houve claros indícios de que elas tenham sido usadas para suprir as demandas do bloco. Além disso, o portal atenta ao fato que as fábricas localizadas nos Países Baixos e na Alemanha estariam totalmente comprometidas com a produção apenas britânica e não europeia.
Numa aparente resposta, as regulações de exportação de vacinas produzidas no bloco foram enrijecidas. Ainda no fim de janeiro, a Comissão Europeia chegou a afirmar que passaria a exigir licenças para que as empresas exportassem imunizantes produzidos na UE – um plano apoiado logo em seguida pelo ministro da saúde alemão, Jens Spahn²². Pouco depois, em março, países como Austrália já começaram a ser atingidos por restrições. O governo italiano, com apoio da Comissão, proibiu a AstraZeneca de exportar cerca de 200 mil doses para o país. O Reino Unido também seria duramente afetado. Até março, o país recebeu 21 milhões de doses produzidas na União. O primeiro ministro britânico, Boris Johnson, chegou a ligar para chefes de Estado europeus para assegurar que não haja entraves com a exportação de vacinas para o país.
Enquanto o bloqueio da exportação de imunizantes, segundo representantes em Bruxelas, só seria aplicado a vacinas da AstraZeneca, a Comissão Europeia chegou a cogitar o bloqueio de qualquer vacina produzida na União³³ – por mais que não tenha havido tanta aprovação para essa proposta entre os líderes dos Estados-membros.
Desconfiança e movimentos anti-vacina
Na era da (des)informação, a mentira tem tido papel relevante. Ao lado de grupos conspiracionistas da “terra-plana”, estão os grupos “anti-vacina”. Na Europa é onde se encontra a maior parcela da população que se diz “cética” quanto a vacinas. Numa pesquisa desenvolvida pelo Wellcome Global Monitor, apenas pouco mais de 70% da população europeia confia em vacinas – contra mais de 80% nas Américas, África e Ásia¹¹¹. A França é sem dúvida o país que se destaca. O estudo mostra que menos da metade dos franceses acredita que vacinas sejam seguras – e parece haver uma relação com a desconfiança com o governo, como aponta uma análise ao estudo²²².
Em meio a esse cenário propício, a associação de formação de coágulos sanguíneos – podendo levar à morte – com a vacina da AstraZeneca fez com que a confiança no imunizante da empresa, por parte de cidadãos europeus, afundasse. De fato, mesmo governos como Alemanha, França, Dinamarca, Itália, Espanha e Portugal – atrasando ainda mais a imunização da população.
Mesmo com o anúncio da Agência Europeia de Medicamentos (EMA) afirmando que a vacina é segura, a população segue desconfiada e a alteração do público-alvo do imunizante da empresa parece potencializar a descrença dos cidadãos.
Luz no fim do túnel
Mesmo depois de meses de correria, pressão e apreensão por parte de cidadãos e líderes europeus, a vacinação parece ter começado a engatar nos países do bloco, sobretudo a partir do meio de março. A Alemanha, França e Itália começaram a alcançar o passo de vacinação do Reino Unido no começo de abril, chegando a aplicar quase 3 milhões de doses por semana.

O Comissário Europeu Thierry Breton afirmou estar seguro de que ao menos 12 dos 27 Estados-membros conseguirão atingir o alvo de 70% da população vacinada até meados de julho – sem confirmar quais países poderiam chegar a essa marca³³³. Breton ainda afirmou que o bloco poderia contar com uma “temporada de férias” neste ano, já que teria conseguido controlar a pandemia.
Atrasos e problemas com vacinação estão sendo, infelizmente, a realidade da população brasileira, frente a um descontrole das infecções no país. Algumas partes do mundo começam a poder falar com segurança da pandemia no passado. Outros vão se somando a esse seleto grupo que tem por si só um grande privilégio, não raramente acompanhados de um forte poder econômico de seus Estados. O longo ano de 2020 continua e parece se prolongar cada vez mais quando problemas com entregas de vacina são noticiados.
A experiência europeia mostra que contratos firmados tardiamente, por mais que assegurem doses suficientes (ou mais que isso), não são segurança de que a imunização ocorra de fato dentro dos prazos.
Fontes:
¹ https://theconversation.com/covid-vaccines-rich-countries-have-bought-more-than-they-need-heres-how-they-could-be-redistributed-153732
² https://ec.europa.eu/commission/presscorner/detail/pt/ip_20_1103
³ https://ec.europa.eu/info/live-work-travel-eu/coronavirus-response/safe-covid-19-vaccines-europeans/questions-and-answers-covid-19-vaccination-eu_en
¹¹ https://www.politico.eu/article/coronavirus-vaccine-europe-commission-contract-astrazeneca-ties-hands-lawsuits/
²² https://www.dw.com/en/eu-covid-vaccine-exports-should-be-licensed-says-german-health-minister/a-56339378
³³ https://www.bbc.com/news/world-europe-56486733
¹¹¹ https://wellcome.org/reports/wellcome-global-monitor/2018
²²² https://www.theguardian.com/world/2019/jun/19/french-scepticism-over-vaccines-reflects-distrust-of-government
³³³ https://www.reuters.com/business/healthcare-pharmaceuticals/least-12-eu-countries-confident-july-vaccine-target-eus-breton-2021-04-20/