O que “Nomadland” tem a nos dizer sobre as crises econômica e habitacional.
A premiação do Oscar deste ano foi, sem dúvidas, singular na história da academia. Em tempos pandêmicos, a exibição dos filmes nas telonas ficou muito restrita e o mercado, antes dominado por grandes estúdios, deu lugar para produções menores, mais intimistas e de plataformas de streaming.
Uma dessas produções foi a grande vencedora da noite. “Nomadland”, da diretora chinesa, radicada nos EUA, Chloé Zhao, levou 3 estatuetas e, entre elas, Melhor direção e Melhor filme (a terceira foi de Melhor atriz para Francis McDormand). O filme, baseado em um livro homônimo da jornalista Jessica Bruder, apresenta a história de pessoas, majoritariamente de meia idade, que, afetadas pela crise econômica de 2008, trocam suas casas por automóveis (vãs e trailers). A personagem principal, a viúva Fern (McDormand), perdeu o marido, o emprego e, depois que uma fábrica faliu durante a crise, sua cidade foi toda abandonada. Com isso, colocou-se na estrada, apostando em empregos temporários que ajudassem a sobreviver, mesmo que de forma precária.

Sobre o filme, tem um claro olhar contemplativo, cenas incríveis que trazem a sensação de liberdade e o desapego de uma vida peculiar. Ao mesmo tempo, apresenta as questões sociais como pano de fundo e, nesse ponto, traz um olhar documental muito forte. Os chamados Nomads formam uma comunidade de apoio mútuo no enfrentamento das dificuldades que a realidade econômica impunha a eles. No decorrer do filme, Fern vai aprendendo lições importantes com nômades mais antigos de estrada (cabe a observação que a diretora utilizou alguns nômades nas gravações), deixando claro a opção do roteiro de equilibrar a crítica social com a apresentação dessa forma “diferente” de se viver. Um misto de sentimentos é explorado e fica expresso em uma cena linda em que a protagonista se emociona com o mar, as ondas batendo nas pedras, a música sobe envolvendo quem assiste e o filme, sem mudar o áudio, brutalmente corta para a fachada de um galpão da Amazon. A vida é dura mas é vida.
Para citar um clássico, o cenário econômico de “Nomadland” se assemelha muito ao do drama “As vinhas da Ira” (1940), também premiado, do diretor John Ford, que retrata uma família norte americana sobrevivendo aos efeitos da grande depressão de 1929. Expulsos de sua terra, essa família cruza o país em busca de uma nova vida. a diferença entre os dois é a abordagem do roteiro. O primeiro opta por quase romantizar o desastre social da América com a bipolaridade já citada, onde o trabalho é precarizado mas existe liberdade em desbravar o país. O segundo, já expõe os graves problemas de um país em debacle, mas que mantém viva a esperança da terra prometida a oeste (spoiler: essa terra não existe). Ambos apresentam uma roupagem nova à doutrina do destino manifesto: a ilusão do trabalho que liberta.
Trazendo para tempos mais próximos, o filme “Você não estava aqui” (2019), do diretor britânico Ken Loach, enfia o dedo na ferida. Muito diferente de Nomadland, Loach não utiliza-se de técnicas cinematográficas para comover, a realidade é suficiente. O filme trata da precarização do trabalho moderno, o ultraneoliberalismo tecnológico das plataformas de delivery e transporte que transformam as relações sociais. A família retratada no filme não convive mais com o pai, um entregador da Amazon, que realiza jornadas de 14 horas diárias, iludido com o discurso de empreendedorismo: “Você não trabalha para nós. Você trabalha conosco.” Em “Nomadland”, a mesma empresa procura aproximar-se dos nomads, certa de que a realidade dessas pessoas impedem de criar associações, sindicatos e de cobrar melhores condições.
Se transportarmos o contexto econômico de “Nomadland” para o Brasil, certamente encontraremos uma realidade ainda mais cruel. A premiação de “Nomadland” no Oscar de 2021 me despertou para tal exercício. A crise econômica brasileira se aprofunda desde 2015, anos seguidos de retração do PIB ou crescimentos modestos que não superam a taxa de natalidade, a recessão foi contínua na segunda metade da década1. O neoliberalismo se apresentou como solução com sua agenda de arrocho fiscal, precarização do emprego e redução da renda. Para piorar, a crise da Covid-19 piorou os índices econômicos e sociais que já estavam sensivelmente piores.
Assim como nos EUA que Fern vive, a chamada “uberização” da economia tem transformado a estrutura capitalista no Brasil e só foi possível graças ao exército de desempregados que o país acumulava. Afinal de contas, esse fenômeno foi observado já no século XIX, quando Karl Marx escreveu sobre o exército reserva de mão-de-obra formado a partir das tecnologias da revolução industrial. Tal fenômeno se repete, citando novamente Marx, dessa vez como farsa. Recentemente, Jeff Bezos (dono da Amazon) alcançou uma fortuna de 200 bilhões de dólares2, num cenário onde situações como as narradas em “Nomadland” e “Você não estava aqui” se aprofundam mundo afora. O número de desempregados no Brasil aumenta ano após ano enquanto o de “autônomos” cresce, basta observar a quantidade de entregadores e motoristas circulando pelas cidades brasileiras.
A luta por moradia no Brasil é antiga, o êxodo rural e o crescimento acelerado das cidades criou um déficit habitacional imenso. No cenário internacional, desde a Declaração Internacional dos Direitos do Homem, de 1948, o direito à moradia já é reconhecido mas, no Brasil, esse direito só foi garantido expressamente em 2000, com a emenda constitucional n°26. De lá pra cá, algumas políticas públicas foram criadas visando solucionar o problema habitacional, mas que causaram o espraiamento das cidades e o aumento de áreas para a especulação imobiliária.
Essa especulação é, também, causadora de empecilhos à moradia digna. O aumento do aluguel tem impacto direto no aumento de domicílios precários, de coabitações (famílias morando juntas), do excessivo número de moradores em uma mesma unidade habitacional, de famílias que gastam mais de 30% de sua renda com aluguel e da população de rua. Estes são critérios levados em conta para chegar em 6 milhões de moradias de déficit habitacional em 2019, segundo a Fundação João Pinheiro3. O aluguel, no Brasil, mais do que dobrou de 2011 a 2021 (utilizando o calculo do IGP-M4), explodindo para 31% em março de 2021, mesmo durante a pandemia, onde a renda geral das famílias foi deprimida.
Certo momento do filme, Fern encontra uma ex-aluna e diz a ela que não é homeless (sem-lar), apenas não tem casa. No Brasil, vemos que a realidade é o aumento da população de rua. Estima-se que 222 mil pessoas viviam nessa situação em março de 2020, com mais de um ano de pandemia, é gritante o aumento dessa população, apesar da falta de dados oficiais. Iniciativas como da Pastoral do Povo de Rua da Arquidiocese de São Paulo, coordenada pelo Padre Júlio Lancellotti, atestam um aumento contínuo desde 2015 e com uma explosão durante a pandemia. Em entrevista à CNN Brasil, o padre faz uma declaração importante de que a crise habitacional se agrava, criando grupos como os nomads: “Tem muita gente andando, passando pelas ruas, que passam por São Paulo, mas estão indo para outros lugares em busca de alguma resposta, estão procurando sobreviver”5.
Diferente da aceitação que a protagonista de “Nomadland” parece ter de sua condição, é evidente que é um retrocesso social grave e que deve ser enfrentado. A maior contribuição desse filme ao ganhar o Oscar é suscitar o debate que, principalmente no Brasil, é deixado de lado.
1 https://g1.globo.com/economia/noticia/2021/03/03/com-recessoes-e-pandemia-pib-do-brasil-tem-pior-decada-em-120-anos.ghtml
2 https://www.suno.com.br/noticias/fortuna-jeff-bezos-ultrapassa-200-bi-forbes/
3 http://novosite.fjp.mg.gov.br/deficit-habitacional-e-inadequacao-de-moradias-no-brasil-principais-resultados-para-o-periodo-de-2016-a-2019/
4 https://blog.nubank.com.br/aluguel-dobrou-na-decada-igpm-precos/
5 https://www.cnnbrasil.com.br/nacional/2021/01/13/especialistas-veem-aumento-de-populacao-de-rua-mas-nao-ha-dados-oficiais