Episódio na França gera revolta entre políticos e faz pensar no caso do Brasil
No dia 21 de abril deste ano, vinte generais (entre eles, alguns da ativa) franceses publicaram uma carta diretamente ao presidente da república, Emmanuel Macron, mas também a outros membros do governo e parlamentares. Disponibilizado pela revista “Valeurs Actuelles“¹ que tem como lema “a revista da direita que se assume”, o documento afirma em seu subtítulo contar com o apoio de mais “uma centena” de membros de alta patente e “mais de mil de outros militares”. No corpo da carta, os militares alertam que o país está em “perigo” e que não podem “permanecer indiferentes” frente a essa situação.
Eles se referem a uma “desintegração” da França, conduzida por aqueles que falam de “racismo, indigenismo e teorias decoloniais”. “Através desses termos”, denunciam, “é a guerra racial que querem esses defensores odiosos e fanáticos”. Assim, esse tipo de comportamento de membros da própria sociedade francesa estariam se associando às forças do “islamismo” – termo este que é usado na França como uma vertente política de muçulmanos que preveriam a implementação da sharia (conjunto de regras da fé muçulmana) e a criação de Estados islâmicos (que é, consequentemente, utilizado de maneira pejorativa). Esse conjunto de grupos internos e externos estariam fazendo com que a violência cresça dia após dia.
Por fim, é necessário que os dirigentes do país “encontrem a coragem necessária” para erradicar esses perigos, sob pena de que se essas medidas não forem tomadas, isso provocaria uma “explosão e a intervenção de nossos camaradas da ativa em uma missão perigosa de proteção de nossos valores civilizacionais e de salvaguarda de nossos compatriotas no território nacional”. Para aqueles agentes políticos que se dispuserem a lutar, eles se colocam à disposição. Na frase final, lê-se: “não é mais tempo de procrastinar, senão, amanhã a guerra civil terminará esse caos crescente e os mortos, dos quais vocês serão responsáveis, serão contados aos milhares”.
Dois dias após o texto, a líder do partido de extrema-direita “União Nacional” (Rassemblement National) e candidata à presidência pelo partido em 2017 e em 2022, Marine Le Pen, convidou os militares signatários a “unirem-se à nossa ação para participar na batalha que começa”. Não é tão surpreendente para aqueles que conhecem Le Pen e seu partido, mas sobretudo quando se observa que Jean-Pierre Fabre-Bernadac, ex-oficial das forças de gendarmerie já apresentou no passado laços com o partido de extrema-direita quando ainda era dirigido pelo pai de Marine Le Pen.
Não fosse suficiente o tom macabro da ameaça de guerra civil por parte dos generais e a rápida guarida encontrada na extrema-direita francesa, a história também tem um ingrediente importante a adicionar a este caso. Exatamente no dia da publicação da carta que convoca políticos e militares a uma cruzada contra aqueles que são descritos como destruidores da pátria, marcavam-se sessenta anos do golpe de Estado fracassado levado a cabo por generais na Argélia que se insurgiram contra o então presidente francês Charles de Gaulle.
Lições da história
O que ficou conhecido na história francesa como “golpe dos generais” ou “golpe da Argélia” foi a atuação política de militares insatisfeitos com o governo de Paris em garantir a independência de sua ex-colônia africana. Durante a década de 1950, nacionais argelianos organizaram-se em grupos pró-independência, entre eles o Fronte da Liberação Nacional (FLN). Precisamente em 1º de novembro de 1954, o FLN demonstrou sua existência e força por meio de uma série de atentados no território argelino – o que ficaria conhecido como “Toussaint rouge” (referente ao “dia de todos os santos”). O episódio é considerado como o início da Guerra da Argélia que duraria nove anos, terminando oficialmente em 1962.
Durante a guerra, um outro golpe, em 1958, também tentou manter o território argelino sob controle da Paris e teve dois subprodutos: o fim da quarta república francesa e começo da quinta; e a volta do general aposentado da Segunda Guerra Mundial, Charles de Gaulle, à política. De Gaulle seria eleito presidente da França um ano depois e apoiaria a manutenção da Argélia enquanto território francês. Sete meses depois de ter tomado posse, porém, o presidente francês passa a falar de “autodeterminação” para a Argélia. Em 8 de janeiro de 1961, a população da França (que compreendia tanto os habitantes na Europa, como na África e nos territórios do ultra-mar) votou pela independência sendo 74,99% a favor e apenas 25,01% contra.
É nesse contexto de um conflito sangrento que já causara dezenas de milhares de mortos de ambos os lados, que o governo de Paris decide ceder o território, com o intuito de cessar as hostilidades. Mas, para uma parte dos militares de carreira do exército francês na Argélia, e em especial quatro generais da mais alta patente, o general presidente estava gerindo uma política de “abandono” de território francês de direito.
Assim, três dos dez regimentos do exército francês no território africano participam do golpe, mantendo-se a marinha e as forças policiais, respectivamente, legalista e neutra. À noite do dia 21 de abril de 1961, os generais e suas forças golpistas tomam a capital, Argel, assegurando pontos estratégicos como a sede do governo no território, a prefeitura da cidade, a estação de rádio e o aeroporto.
Na Europa, o presidente de Gaulle faz um discurso² dois dias depois em que afirma que “os culpados da usurpação exploraram a paixão dos quadros de certas unidades especiais, a adesão inflamada de uma parte da população proveniente da Europa perdida nas crenças e mitos, a impotência de responsáveis submergidos pela conjuração militar. Esse poder tem uma aparência: um grupinho de generais aposentados³; ele tem uma realidade: um grupo de oficiais partidários, ambiciosos e fanáticos“.
Três dias após o golpe, em 24 de abril, o presidente do conselho geral de Oran, segunda maior cidade, – que equivaleria à presidência de uma câmara de vereadores – publica com outros vinte conselheiros gerais um comunicado em que apoiava os golpistas.
O golpe durou cinco dias. Em 26 de abril, as tropas começaram a se render ao governo de Paris que recobrou o controle da Argélia e procedeu às negociações que acabaram a dar ao território sua independência em 5 de julho de 1962.
O ontem e o hoje
O general de Gaulle foi uma importante figura na resistência francesa contra a dominação nazista na Segunda Guerra Mundial. Não a toa, tornou-se presidente da república francesa, governou por 10 anos e até hoje é tido como o presidente preferido pelos franceses (65% da população o afirmam4). Não se deve falar, porém, que o general tinha simpatia pelas populações argelinas porque defendeu a autodeterminação. Como afirmado, de Gaulle subiu ao poder e prometeu defender o território sob controle de Paris. As condições da França à época – fim da II GM, guerra da Indochina e guerra da Argélia – impuseram ao general a independência como um meio de para a matança de cidadãos e soldados franceses e reestruturar o país. Não obstante, o general – que tem uma legião de seguidores denominados “gaulistas” e que se encontram tanto à esquerda quanto à direita -, apesar de divergências, foi importante na luta pela república e pela democracia no país.
Trajando um uniforme militar, em seu discurso de 23 de abril de 1961, o general opunha-se aos quatro generais num confronto que pode ser também colocado como democracia vs. golpismo. Mesmo que se aceite que o presidente defendesse sobretudo os interesses franceses mais que a vontade popular argelina, manter seu compromisso com o plebiscito, que se mostrara amplamente favorável à autodeterminação, foi também uma defesa da democracia.
Voltando a 2021, alguns sinais se repetem num contexto diferente.
Emmanuel Macron não é militar e não apresenta nem de longe um apoio similar ao do general. Pelo contrário, apenas 37% dos franceses se dizem satisfeitos com o governo de Macron5. Isso não é difícil de se observar, sobretudo se for lembrado que o movimento dos coletes amarelos (gilets jaunes) de manifestação contra as políticas do governo, iniciado em novembro de 2018, cresceu e manteve-se forte até o primeiro fechamento total da pandemia em 2020.
Nesse sentido, a contestação política, dentro dos parâmetros democráticos, é não só normal como esperada. Mas a insatisfação não vem somente do contexto socioeconômico – que vem se deteriorando no país, especialmente com o aumento da desigualdade social -, mas também culturais. O terrorismo que esteve em maior evidência durante 2015-2017 voltou fortemente às manchetes com a decapitação de um professor de história na região da Ilha-de-França, onde se encontra Paris, em 16 de outubro de 2020.
A ameaça do “islamismo” (no seu sentido político) permeia a política francesa desde a chamada “Crise dos Refugiados”. Mas ela vem cada vez mais sendo explorada por grupos políticos, sobretudo os da extrema-direita. Após o brutal assassinato do professor em outubro, a presidente do União Nacional, Marine Le Pen, fez uma declaração6 em que propunha a abertura de “prisões especiais” dentro de uma “legislação de exceção” e um “regime carcerário específico” para pessoas nascidas na França que fossem consideradas “perigo ao Estado”, a fim de se garantir o Estado de direito. Para Le Pen, os apoiadores do islamismo causam uma “guerra total” contra o ocidente.
Constantemente, o União Nacional instiga seus correligionários à ação por meio das mensagens eletrônicas enviadas àqueles que se inscrevem no para receber atualizações do partido. Os termos como “laxisme” (a tendência excessiva à conciliação, tolerância), “extrême-gauche” (extrema-esquerda) e “islamisme” (islamismo – no sentido político) são constantemente denunciados pelo partido, ligando quase que sempre a defesa desses termos à atuação do governo. Recentemente, o partido cunhou o termo “islamo-gauchisme” (islamo-esquerdismo) para acusar o Partido Verde francês de enviar 2,5 milhões de euros a uma mesquita na cidade de Estrasburgo.
Sem citar a esquerda propriamente dita, os generais da carta retomam a retórica já conhecida do partido com o “laxisme” e “islamisme”, mas também adicionam ao grupo de “inimigos” aqueles que falam contra o racismo e o descolonialismo. Seria possível interpretar estes como a esquerda que não é nomeada na carta, mas que está frequentemente ligada a essas causas.
O vocabulário próximo e o apoio que se segue parece deixar os generais aspirantes ao golpismo bem próximos ao discurso do partido de extrema-direita.
Reações no país
Não sendo comum que militares se expressem politicamente, o episódio causou revolta rapidamente. A ministra francesa do exército, Florence Parly, reagiu afirmando que essa era uma atitude “inaceitável” e que a tribuna era “irresponsável”. “O exército não existe para fazer campanha [política], mas para defender a França e proteger os franceses”, tuitou a ministra reiterando, depois, que “a maioria dos militares (…) defende os valores republicanos”.

O chefe do Estado-maior do exército, Gal. François Lecointre, afirmou que as sanções contra os signatários seriam “severas”7. O general fez questão de assegurar que a carta não refletia a posição do exército que não é política e sim republicana. Classificou a publicação como “uma tentativa inaceitável de manipulação do exército”. O oficial afirmou que os generais passarão cada um por um Conselho Superior Militar e que poderiam ser eliminados do exército.
Partidos da esquerda pediram desde a “perseguição” dos militares (aqueles localizados mais à extrema-esquerda) a ações judiciárias e sanções exemplares (por parte dos mais moderados).
Por parte da direita, apenas um deputado do partido “Republicanos” condenou a atuação da chefe do União Nacional afirmando que ela não deveria assumir a presidência porque “um chefe de partido não deve chamar os militares a entrar em um embate político”.
Marine Le Pen reiterou, posteriormente, o apoio aos generais, mas afirmou que sua batalha deveria seguir as vias “democráticas”. Já o vice-presidente de seu partido acusou o governo de “parecer cada vez mais com uma ditadura”8, defendendo o “direito dos militares de se expressar”.
Paralelos ao sul do Equador
A situação francesa parece lembrar bastante a situação no Brasil. Por aqui, há alguns anos a população, infelizmente, se acostumou a encontrar militares nas páginas políticas dos jornais. Os militares brasileiros não só voltaram a influenciar a política, como atrelaram-se a ela criando uma simbiose indissociável a partir da eleição do capitão em 2018.
Aqui, como na França, a intromissão de militares na política não parece preocupar a direita, nem grandes mídias – que não se furtam em apontar as “qualidades técnicas” e o “rigor” dos que vestem uniformes. Enquanto a fala de militares na política costuma causar alertas na própria instituição, que normalmente defende seu papel de neutralidade como pede o credo republicano, no mundo desenvolvido, aqui o exército reafirma e celebra seu papel golpista exaltando o nosso golpe de Estado de 1961 que, diferente daquele na Argélia, foi bem sucedido.
Enquanto a direita moderada se cala frente ao avanço do militarismo sobre a democracia, a extrema-direita aproveita esses movimentos para associar-se às armas com o intuito de assegurar sua força frente a seus adversários. Um trunfo que costuma vir a calhar quando as ameaças sobem o tom.
O movimento, como se pode ver, é sobretudo global. Nos EUA, em 2020, quando um general apareceu ao lado do então presidente Trump, dando a entender que o exército o apoiaria, houve um rápido pedido de desculpas à sociedade americana e uma reiteração da neutralidade do exército do país9.
A figura dos militares é comumente associada a guerras e defesa de territórios e, nesse sentido, pode ser positiva. Mas, misturada à política, é constantemente associada a golpes de Estado e queda do regime democrático, que é fundamentalmente negativa (ou deveria sê-lo). É por isso que em países desenvolvidos, a sociedade, partidos e a própria instituição prezam pela neutralidade das forças armadas, pois faz parte da defesa do Estado de direito, da garantia das liberdades individuais e coletivas e, por fim, da própria democracia, que elas não se envolvam.
A sociedade brasileira ainda não aprendeu esse princípio fundamental defendido nas sociedades ocidentais. Pior, há aqueles que vão às ruas pedir “democraticamente” o fim da democracia, mesmo após três anos de um governo que tem servido explicitamente a interesses estrangeiros, ameaçado a soberania nacional e empobrecido a população.
Na era da informação, o mundo dá lições gratuitas de como agir para assegurar o governo realmente popular que garanta as liberdades tão caras e exaltadas com razão deste lado do hemisfério global. Cabe à população brasileira aprender com esses exemplos, para que não seja ainda mais penalizada pela manipulação política de demagogos que a torna refém de sua insanidade fratricida.
¹ https://www.valeursactuelles.com/politique/pour-un-retour-de-lhonneur-de-nos-gouvernants-20-generaux-appellent-macron-a-defendre-le-patriotisme/
² Discurso disponível (em francês) em: https://www.youtube.com/watch?v=JIsrqUKii_Y
³ De Gaulle fala em “generais aposentados”, mas nenhum dos generais golpistas estava, de fato, aposentado.
4 https://www.huffingtonpost.fr/2018/10/03/le-general-de-gaulle-president-prefere-des-francais-et-de-loin-sondage-exclusif_a_23549605/
5 https://www.lepoint.fr/politique/sondage-cote-de-popularite-stable-pour-emmanuel-macron-18-04-2021-2422649_20.php
6 Discurso disponível (em francês) em: emhttps://rassemblementnational.fr/videos/marine-le-pen-appelle-au-grand-sursaut-face-a-lislamisme/
7 https://www.leparisien.fr/politique/tribune-des-militaires-je-souhaite-leur-mise-a-la-retraite-doffice-annonce-le-general-lecointre-28-04-2021-AABHSZWOPVHEPIBPBTWKFTGRG4.php
8 https://www.bfmtv.com/politique/tribune-de-militaires-bardella-estime-que-la-france-de-macron-ressemble-de-plus-en-plus-a-une-dictature_AN-202104280387.html
9 https://www.theguardian.com/us-news/2020/jun/11/top-us-military-general-mark-milley-issues-public-apology-trump-church-photo-op