As motivações do governo federal para agir contra a principal ferramenta de recolhimento de informações do país
O Censo realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) é uma das principais ferramentas para o recolhimento de informações e dados sobre a população brasileira. Para além, é fundamental para o desenvolvimento de políticas públicas, definição dos repasses de verbas aos municípios, e confiabilidade de dados sensíveis para o país.
Historicamente, o Censo vem sendo realizado desde 1872, ainda sob a vigência do Império. A partir da proclamação da República, passou a ser realizado de forma decenal. Desde então, houve interrupção da sequência apenas em 1930 (pelo levante de Getúlio Vargas ao poder), assim como, com o atraso de um ano na gestão do Presidente Fernando Collor quando foi transferido de 1990 para 1991.1
A partir da Lei n.º 8.184/1991, o Censo legalmente passou a ocorrer a cada dez anos, considerada a sua relevância para o país. Com a ocorrência da pandemia adveio seu cancelamento em 2020, diante de um cenário cercado de dúvidas e questionamentos.
As expectativas do corpo técnico do IBGE eram que o Censo pudesse ser realizado em 2021. Porém, o Congresso, em parceria com o governo federal, declinaram em resguardar previsão orçamentária para tanto, de forma a inviabilizar o Censo em 2021. Para ambos, a farsa do orçamento proposto apenas serviu para salvaguardar as legítimas, mas neste caso abusivas, emendas parlamentares e os acordos disformes de suas tenebrosas transações.
A dotação orçamentária pode ser a motivação fática e legal do cancelamento, mas esconde interesses que podem ser divididos do plano nacional ao internacional, sobre as intenções do governo Bolsonaro em assim atuar. Devemos rememorar que este é o governo que vem agindo de forma a destruir e cooptar as mais diversas instituições do Estado Brasileiro.
No âmbito nacional, ao iniciar o governo em 2019, em apenas mais um dos seus diversos arroubos verbais, o Ministro Paulo Guedes já demonstrava a tônica que seria dada ao tema. Sobre o questionário utilizado pelo IBGE, afirmou: “Se perguntar demais, você vai acabar descobrindo coisas que nem queria saber”2. Como é notório e bem representado pela atuação da Secretária Especial de Comunicação Social (SECOM) da presidência, os fatos não são importantes para o governo no ambiente do debate público.
O apagão de dados se torna interessante para o governo, visto que o Censo atual provavelmente retrataria um país pior do que o encontrado em 2010. Desde então, ocorreram o fim do ciclo das commodities, o grande volume de endividamento das famílias e as políticas de austeridade adotadas desde 20153, que atingiram seu ápice na gestão Bolsonaro. Importante também é considerar como política oficial de governo o negacionismo científico. Essa situação é aferível nas mais diversas searas, seja na saúde, meio ambiente, economia, o IBGE não fugiria desta regra.
Neste sentido, caso o Censo fosse realizado em 2021, sua divulgação se daria em 2022, ano eleitoral e de sucessão presidencial. A apresentação desses dados jogaria luz ao caos social em que nos encontramos, não sendo interesse do atual governo ver os seus pífios resultados divulgados em “praça pública”.
Como dito anteriormente, há também motivações internacionais para a postura do governo federal. No âmbito internacional, o professor David Nemer aponta: “A manipulação do Censo, em sua raiz, foi algo que Bannon aconselhou Salvini, na Itália, Orbán, na Hungria, e Trump”4. É inegável a influência de Steve Bannon para o modo de fazer política dos representantes da extrema direita ao redor do mundo, seria ingenuidade ignorar esse fato na postura do círculo presidencial.
Ainda sobre possíveis manipulações do Censo, ao analisar a situação ocorrida nos EUA, o professor Justin Levitt concluiu que distorções nos questionários podem significar consequências profundas para o poder político5. Portanto, a manipulação pode se dar em duas vertentes: ataque ao questionário ou ainda a não realização do mesmo. Em terras brasileiras, as duas formas foram tentadas e realizadas.
Entretanto, a polêmica não se encerra por aqui. Sem previsão nem para realização do Censo em 20226 , o governo do Maranhão requereu manifestação do Supremo Tribunal Federal (STF). O Ministro Marco Aurélio, de forma monocrática – quando um Ministro decide isoladamente – aceitou os pedidos liminarmente (de forma não definitiva) para determinar a realização do Censo. Sobre esta decisão do STF, manifestou-se a diretora-executiva do Sindicato Nacional dos Trabalhadores do IBGE (ASSIBGE), Dione de Oliveira: “Esperamos inclusive que a ação favoreça o resgate completo do Orçamento. Mas a situação da pandemia e o atraso do Orçamento não permitem a realização em 2021”7.
É de fundamental importância que o Censo Demográfico seja realizado na primeira oportunidade possível. A troca de presidentes do IBGE e a contínua restrição orçamentária não podem culminar em um apagamento estatístico como deseja o governo.
O Censo será uma ferramenta determinante para o estabelecimento de políticas públicas que visem a recuperação dos efeitos da pandemia no país. Sua não consumação seria mais uma perda para o povo brasileiro, em um governo que não possui nenhum senso de direção, a não ser o do abismo.
Notas:
1https://ces.ibge.gov.br/apresentacao/portarias/200-comite-de-estatisticas-sociais/base-de-dados/1146-censo-demografico.html
2https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2019/02/guedes-pede-reducao-de-questionario-do-censo-para-execucao-de-pesquisa.shtml
3https://www1.folha.uol.com.br/colunas/paulkrugman/2018/11/que-diabos-aconteceu-com-o-brasil.shtml
4https://poliarquia.com.br/2021/04/29/guerra-de-bolsonaro-contra-o-censo-e-cartilha-de-steve-bannon-diz-pesquisador-dos-eua/
5https://columbialawreview.org/content/citizenship-and-the-census/
6https://economia.estadao.com.br/noticias/geral,censo-demografico-pode-ficar-para-2023-apos-novo-corte-no-orcamento,70003691006
7https://valor.globo.com/brasil/noticia/2021/04/28/sindicato-do-ibge-comemora-liminar-mas-diz-que-nao-e-mais-possivel-fazer-censo-em-2021.ghtml