Na contramão da incompetência do Itamaraty, a articulação paradiplomática dos governadores – em especial, do Consórcio Nordeste – pode, finalmente, tirar o atraso do Brasil na corrida pela vacinação.
Ainda no início de 2020, diante dos posicionamentos do Governo Federal em relação à Pandemia do novo coronavírus, o DPolitik questionou: Afinal, quem governa o Brasil? Passado um ano desse questionamento, a tese da “República dos Governadores” se fortaleceu e, ao levarmos em consideração a ausência de medidas coordenadas para a gestão da crise, é possível dizer que as ações de combate ao vírus resultaram, em sua maioria, dos esforços particulares de cada governador em seu estado.
Na corrida para a compra das vacinas não foi diferente. Diante da negativa do governo federal às diversas ofertas de fabricantes de vacina e da incompetência do Itamaraty nas negociações internacionais, foi o protagonismo de governos estaduais que possibilitou o início da campanha de vacinação.
O apagão do Itamaraty
A pandemia do novo coronavírus tem mostrado um Ministério das Relações Exteriores irreconhecível. Diferentemente de outros momentos da história em que o órgão foi responsável por liderar grandes campanhas mundiais em torno de questões humanitárias – como na coalizão formada para a quebra de patentes dos medicamentos para AIDS -, o Itamaraty tem atuado por meio de uma política externa ideológica que se traduz em um isolamento diplomático e em dificuldades para garantir insumos e vacinas contra a Covid-19.
Todavia, esse comportamento é apenas a coroação de mais de dois anos de mudanças paradigmáticas na condução das relações internacionais brasileiras. Interrompendo 100 anos de tradição de uma Política Externa pragmática, voltada aos interesses da nação e imune a partidos e ideologias, o MRE de Ernesto Araújo foi diretamente responsável pelo alto preço que pagamos agora ao nos depararmos com uma vacinação insuficiente.
Dentre outras atitudes, o chanceler brasileiro – seguindo a ideologia do governo Bolsonaro para a condução da pandemia – votou em organismos internacionais contra a quebra de patentes das vacinas, colocou o país no fim da fila do consórcio mundial da OMS, o Covax Facility, além de contribuir com o mal estar chinês em relação ao Brasil ao adotar uma posição anti-China desde os seus primeiros dias no MRE.
O resultado dessas atitudes se traduziu no atraso generalizado para o envio de doses e insumos da China para o Brasil, comprovando que a Política Externa de Ernesto e Bolsonaro colocou o país longe das prioridades do governo chinês – principal produtor dos insumos das vacinas aplicadas no Brasil atualmente. Como afirmou Roberto Abdenur, ex-embaixador brasileiro em Pequim, “há fatores técnicos e burocráticos atrapalhando o envio de ingredientes para a Fiocruz, mas há também uma prioridade dada pela China aos países africanos e pela Índia a seus vizinhos na Ásia”. Prioridade essa que seria reflexo de “um incômodo em Pequim com as múltiplas desfeitas desferidas contra a China pelo próprio presidente Bolsonaro, por seus filhos, por seus assessores mais próximos e pelo chanceler Ernesto Araújo”¹.
Apesar da troca ministerial e da saída de Ernesto Araújo, a política externa de Bolsonaro pode deixar sequelas duradouras ao país. Aliás, está posto que, enquanto o governo Bolsonaro durar, será difícil para o Itamaraty retomar o pragmatismo tão precioso ao Barão do Rio Branco, pai da diplomacia brasileira.
A vacinação como uma vitória política de Dória e da Paradiplomacia
Perante a incompetência da diplomacia oficial, a atuação dos governadores estaduais e, em particular, de João Dória (PSDB) em São Paulo, tem se destacado na corrida pela vacinação. Sem esperar pelo Itamaraty, foi através da Paradiplomacia que Dória garantiu, não só para São Paulo, mas para todo o Brasil, a utilização da CoronaVac no Plano Nacional de Imunização.
A Paradiplomacia – atuação de entes subnacionais, como estados e municípios, nas relações internacionais, por meio de cooperação, parcerias e outros mecanismos – já era prática comum nas estruturas do governo de São Paulo mesmo antes da pandemia. Porém, durante a crise sanitária, a Secretaria de Relações Internacionais do Estado manteve contatos com parceiros internacionais buscando intercâmbios de experiência e trocas de teconologia para o enfrentamento ao vírus².
Foi justamente essas ações que possibilitaram a articulação entre o Instituto Butantan, órgão vinculado à Secretaria Estadual de Saúde do Governo do Estado de São Paulo, e a fabricante chinesa de medicamentos Sinovac Biotech para a produção da CoronaVac. Ademais, a proximidade do governo paulista com a China é tão expressiva que, além de manter um escritório próprio em Xangai – inaugurado por Dória em 2019 – foi o próprio governador que tratou com a Sinovac para garantir a remessa de insumos afetadas pela crise diplomática causada pelo governo federal³.
Em resumo, na campanha de vacinação Dória e a Paradiplomacia saem vitoriosos diante da incapacidade da diplomacia oficial do Itamaraty e da negligência de Bolsonaro. Isso pois, enquanto em meados de 2020 o governo federal recusava seguidas propostas para a compra de imunizantes, Dória fechava acordo com a Sinovac, fato que garantiu a CoronaVac como responsável pela maioria das doses aplicadas até agora no país.
O Consórcio Nordeste e a esperança na celeridade da imunização
Em 23 de fevereiro deste ano, o Supremo Tribunal Federal (STF) autorizou unanimamente estados e municípios a comprarem e distribuírem vacinas contra a Covid-19. Essa medida culminou na formalização da compra de 39 milhões de doses do imunizante Sputnik V que vinha sendo negociada desde agosto de 2020 entre o Consórcio Nordeste e o Fundo Soberano Russo.
No contexto da pandemia, o protagonismo dos estados nordestinos foi demonstrado tanto na coragem dos governadores em adotarem discursos e ações opostos aos defendidos pelo executivo federal, como na articulação paradiplomática, por meio do Consórcio, em busca da compra dos imunizantes por conta própria.
O Consórcio Nordeste, criado em março de 2019 pelos nove estados da região, foi fundado com o objetivo de ser uma ferramenta jurídica para a atração e implementação de políticas públicas de forma integrada pelos seus membros. Buscando adquirir investimentos e alavancar projetos em diversas áreas, o Consórcio também prevê a atuação internacional para a consecução dos seus objetivos.
Nesse sentido, a compra e importação dos imunizantes russos por parte dos estados nordestinos seria uma alternativa ao atraso da compra de outras vacinas. Depois das seguidas negativas de Bolsonaro à vacina da Pfizer, o acordo celebrado entre o governo e a fabricante prevê a entrega das doses para setembro. A Fiocruz, por outro lado, tem constantemente reduzido suas previsões de entrega, atrasando mais ainda o Plano Nacional de Imunização (PNI). Enquanto isso, se o impasse com a ANVISA for solucionado e a Sputnik V aprovada, 10 milhões de doses poderiam ser entregues imediatamente pela Rússia. A Sputnik V já está sendo aplicada em países da América Latina, como a Argentina, e no Leste Europeu, incluindo a própria Rússia. O imunizante teve eficácia comprovada por artigo publicado na revista científica The Lancet de 91,6% e ajudaria o Brasil a finalmente avançar na imunização dos grupos prioritários.
Por fim, com o passar do tempo mais se tem provado que está nos governos estaduais a última esperança na funcionalidade do Estado em meio à pandemia. Apesar de todos as falhas – passíveis de análises, apuração e investigação – ainda é nos governadores que podemos ver comportamentos de solidariedade e decoro diante da crise não só sanitária, mas humanitária, que o Brasil vive. No governo da Cloroquina, é a República dos Governadores que tem respondido com o mínimo de racionalidade ao desastre evitável.
¹BBC https://www.bbc.com/portuguese/brasil-55734428
²IDeF https://www.idef-ufpb.com/sp-e-eocnomia-frente-a-pandemia