A defesa irrestrita feita pelo presidente Lula ao regime de Maduro mancha sua história como líder democrático.
Nesta quinta-feira (29), o presidente brasileiro Lula saiu, novamente, em defesa do regime venezuelano, ao ser perguntado por um jornalista sobre a relutância da esquerda em condenar o governo de Nicolás Maduro. Lula, como tem sido a praxe de suas alocuções improvisadas, defendeu Maduro afirmando que “democracia é relativa”. Mesmo ressaltando que ele tem apreço pela democracia, pois lhe possibilitou tornar-se presidente, essa sua fala faz consonância com uma argumentação que vem sendo criada pelo presidente de que há uma “narrativa” (um termo que se popularizou sob Bolsonaro) contra Maduro, para fazê-lo “parecer” um ditador, quando, na verdade, ele seria um democrata.
Rapidamente, comentários na mídia tradicional e social dividiram-se em dois campos: aqueles que condenaram a fala do presidente (seja porque ela é, de fato, repreensível, ou porque sempre buscam motivos para falar mal do presidente em seus editoriais pré-fabricados) e aqueles que lhe defenderam (também, porque creem veementemente que a Venezuela bolivariana seja um exemplo de democracia ou porque defendem qualquer coisa que Lula fala). Assim como quase tudo que envolve política, o caso não se permite ser julgado de maneira tão simplista.
Por um lado, é possível, de maneira parcial, entender o motivo pelo qual Lula sai em defesa da Venezuela. Em parte, há um viés ideológico que pode ser mais criticado. Dentro da própria esquerda latino-americana, há exemplos de membros da esquerda que criticam o regime bolivariano sem abandonar seus ideais, como é o caso do presidente chileno, Gabriel Boric. A crítica, quando construtiva, não enfraquece o campo. Pelo contrário, visa a fortalecê-lo. Por outro lado, é compreensível que Lula, enquanto presidente do Brasil, queira normalizar a relação de Brasília com Caracas. O Brasil é a maior economia da América do Sul e um país que já teve a liderança do continente – e pode voltar a tê-la, caso se relacione bem com seus vizinhos. Tratar com ditadores é comum no campo das relações internacionais e, quer se goste ou não, faz parte do pragmatismo político que todo bom líder tem de demonstrar vez ou outra. Nenhum país quer deixar de negociar com a Arábia Saudita, que manda assassinar jornalistas em embaixadas além de suas fronteiras, ou a China, onde críticos do governo somem “misteriosamente”, ou mesmo os EUA, que vira e mexe planejam invadir algum país ou modificar o regime dele, só porque quem está no governo vai contra seus interesses.
No entanto, pragmatismo é uma coisa. Outra coisa bem diferente é a defesa cega de situações que ferem princípios básicos, sejam pessoais ou nacionais. “Narrativa”, em sua acepção mais atual, tornou-se uma palavra que dá a entender que tudo é relativo e dependente de um ponto de vista. Parece fazer parte desse mundo “pós-verdade”, em que, por um lado, a verdade se torna mais difícil de encontrar devido ao avanço tecnológico de Inteligências Artificiais, mas que também vê um crescente número de pessoas sair em defesa de claras inverdades, como a dúvida sobre o formato do planeta, o uso de remédios de malária para curar vírus ou a influência de planetas no mau-humor diário de alguém.
Se se reconhece a “pós-verdade” como um mal que aflige as sociedades e se tenta lutar contra ela, é preciso dizer claramente, em alto e bom som, que a Terra é redonda, que cloroquina não funciona para covid e que o mau-humor de alguém pode ser por quase qualquer outro motivo que não Júpiter estar no horizonte ou não. Mais ainda, passa por não disfarçar ditaduras de democracias apenas para pintar seu campo político como bonzinho e impassível de erros. Nesse empenho, vejamos alguns parâmetros sobre democracia e depois avaliemos alguns dados mais recentes sobre a Venezuela.
Mesmo sem ter uma lista completa dos livros lidos por Lula durante seu cárcere injusto, pode ser que ele tenha se deparado com alguns livros sobre política onde ele tenha encontrado diferentes descrições de “democracia”. Nesse ponto específico, ele não está errado. “Democracia” é, de fato, relativa. Usa-se o termo na política, na academia e no dia a dia de maneiras diferenciadas, muitas vezes querendo dizer coisas bem diferentes e até mesmo opostas. Há um caminho bastante longo percorrido desde a Grécia antiga, onde se cunhou o termo “demokratía” (demos = povo / kratía = poder). Democracia varia de acordo com lugar e tempo, isso é claro. No entanto, tanto naquela época como na atualidade, existem parâmetros mínimos para saber o que não é uma democracia.
Atualmente, no Ocidente pelo menos (ou “semi-Ocidente“, para países como o Brasil que não são vistos como ocidente, por mais que sejam bem próximos cultural e politicamente), impera o princípio da chamada “democracia liberal“, onde a vontade da maioria é seguida, mas acompanhada pela defesa de amplas liberdades e direitos políticos, sociais e econômicos, sobretudo das minorias. O objetivo é evitar a “tirania da maioria“, que não é identificada como democracia e sim uma forma deturpada desse regime. Nenhum país do mundo, nem mesmo os que costumeiramente se encontram no topo de índices sobre democracia, preenche todos os requisitos para ser uma democracia perfeita. Isso não quer dizer, porém, que eles estejam em pé de igualdade com aqueles que não respeitam nenhum desses requisitos.
Partindo da literatura acadêmica moderna, é possível usar duas interpretações bem popularizadas e amplamente aceitas para analisar regimes e tentar descobrir se eles são democracias. Por um lado, tem-se o modelo minimalista proposto pelo economista austríaco Joseph Schumpeter. Em sua descrição, democracia é nada mais que um procedimento, ou seja, uma forma pela qual as pessoas de um país elegem um governo ou um corpo de representantes que elegerá um governo. Outros requisitos são que a competição eleitoral seja de fato competitiva e livre, pois se não o for, não poderá ser considerada uma democracia.
Um modelo mais complexo que o schumpeteriano é aquele proposto pelo cientista político Robert Dahl. Em seu livro “Poliarquia” – um termo usado por Dahl por crer que nenhum regime grande no mundo real seria de fato uma democracia -, o autor foca na responsividade do governo para com seus cidadãos. Dentre os diversos critérios estabelecidos por Dahl para considerar um regime uma “poliarquia”, vale-se mencionar: 1) liberdade de expressão; 2) direto ao voto; 4) fontes alternativas de informação (livre imprensa); 5) eleições livres e idôneas; 6) direitos de líderes políticos disputarem apoio; 7) instituições para fazer com que as políticas governamentais dependam de eleições ou outras manifestações de preferência. Dahl, então, vê a democracia não como um procedimento, mas como um modo de vida, pelo qual as pessoas se expressam, se informam e elegem seus governos, que lhes devem ser responsivos, de maneira livre.
Há diversas outras definições de democracia que ou se adaptam a partir dessas duas ou se constituem de maneira bastante diferenciada. No entanto, percebe-se que essas duas abarcam características mínimas que podem ser usadas para avaliar se um regime é minimamente democrático. Vamos passar então para a análise do regime venezuelano.
Chávez chegou ao poder na Venezuela, por meio de eleições consideradas livres e justas, em 1999. Seu primeiro mandato contou com uma reforma constitucional que foi aprovada por 88% dos votos válidos – à época, apenas 37,65% dos eleitores votaram. A nova constituição foi aprovada ainda em 1999 por um referendo que, novamente, teve uma alta abstenção, acima dos 50%. O novo texto constitucional exigia que houvesse uma nova eleição e, assim, em 2000, Chávez concorreu contra um ex-companheiro – que lhe acompanhou na tentativa falha de golpe de Estado que ele planejou em 1992. Desta vez, com quase 60% de participação, Chávez foi re-eleito com 59% dos votos válidos.
Com partes da população acusando Chávez de “cubanizar” o país, após estreitar seus laços com Fidel Castro, sua aprovação caiu para a casa dos 30%, o que lhe rendeu uma tentativa de golpe de Estado em 2002 por parte dos militares. Após 47 horas fora da presidência, Chávez volta graças à mobilização popular e militares que se mantiveram leais ao governo. No entanto, protestos e uma greve geral começaram no país no mesmo ano. A exigência da realização de um “referendo revocatório” (previsto na constituição) que, se aprovado, faria com que Chávez saísse do poder e não pudesse mais se candidatar no futuro, foi aceita em 2003, tendo sido votado em 2004.
Dos quase 70% dos eleitores, 59% votaram pela manutenção de Chávez no cargo. Na verdade, o presidente continuaria no cargo até 2013, quando saiu devido à sua morte. Seu então vice-presidente, Nicolás Maduro, assumiu o cargo em 2013 interinamente e, um mês depois, assumiu efetivamente após vencer as eleições por uma margem de 1,5% sobre o opositor de centro-direta.
Os problemas democráticos da Venezuela, porém, já eram sentidos durante os anos de Chávez, para além da mera alegação de “cubanização” do país. Em 2008, a Human Rights Watch (HRW) publicou um relatório sobre a primeira década de Hugo Chávez à frente da presidência1. Ali, reconheceu-se que a nova constituição previu aumento das garantias aos direitos humanos e precedência de acordos internacionais sobre a lei doméstica venezuelana. Além disso, a nova Suprema Corte serviria com um tribunal independente para garantir os direitos fundamentais dos cidadãos. Essas promessas, porém, permaneceram no papel.
Principalmente depois da tentativa de golpe de 2002, expõe o relatório, a discriminação baseada em opiniões políticas tornou-se regra, tendo sido endorsada até mesmo pelo próprio Chávez. Após 2004, o governo passou a controlar politicamente a Suprema Corte, o que tornou a defesa de direitos fundamentais letra-morta da constituição. A mídia também passou a ser mais controlada e o governo passou a ser cada vez menos transparente, impedindo que o público tivesse acesso a dados.
A HRW publicaria ainda dois outros relatórios em 2014 e 2017, já sob Maduro, em que amplas violações aos direitos políticos e humanos são descritos. Evidências apontam que forças de segurança venezuelanas cometeram violações ao direito à vida, realizaram tortura e tratamento degradante e desumano e impediram a defesa de direitos de segurança, liberdade e processo legal justo2. O relato de 2014 reporta que os “piores abusos documentados foram cometidos contra pessoas que não estavam nem participando de protestos ou já estavam presas e sob total controle de forças de segurança”. O relatório de 2017 informa que forças de segurança e grupos armados pró-governo atacaram manifestantes usando força letal, causando diversas mortes e feridos. Para além dos protestos, agentes do governo prenderam pessoas em suas próprias casas que não tinham nada a ver com o protesto na rua3.
Outra organização renomada, a Repórteres sem Fronteiras (RSF), descreve que Maduro mantém uma política continuada de “Hegemonia Comunicacional” o que faz com que a Venezuela viva em um “ambiente restritivo prolongado em termos de informação”4. A RSF informa que o governo mantém um monopólio na importação de jornais e materiais impressos, impedindo que diversos periódicos sejam disponibilizados à população. As políticas de concessão pública não-transparentes tiveram como resultado o fechamento de vários portais online, jornais, canais de TV e rádio.
A Anistia Internacional (AI), em seu relatório mais recente de 20225, detalha que as forças de inteligência e segurança do país continuam reprimindo severamente cidadãos que são vistos como opositores ao governo, realizando prisões arbitrárias, tortura e outros tipos de maus-tratos. Dentre 240 e 310 pessoas são consideradas presos políticos no país. “Sumiços forçosos” também são relatados. Além disso, execuções extrajudiciais pelas forças de segurança continuam não sendo investigadas. A violência não vem, porém, apenas do governo, mas de grupos que se aproveitam da impunidade da justiça no país para ameaçar povos indígenas, mulheres e membros da comunidade LGBTQIA.
Por fim, as Nações Unidas (ONU) lançaram três missões de Estabelecimento de Fatos para investigar as alegações de violações de direitos humanos na Venezuela em 2020, 2021 e 20226. Por mais que a primeira missão tenha reconhecido as limitações impostas à equipe, sobretudo devido à pandemia, os relatórios emitidos nos anos seguintes mostram que há evidências suficientes para se acreditar que a justiça do país atuou em conjunto para a perpetração de violações e crimes contra opositores do governo por parte do Estado venezuelano, o que inclui o uso de tortura de opositores para obter informações. No último relatório, a missão concluiu que há evidências suficientes para afirmar que o governo venezuelano seja o responsável por violações de direitos humanos.
É claro que, assim como para aqueles que acreditam no formato plano da Terra ou na eficácia de vermífugo para curar vírus, provas não são mais que “narrativas” para comprovar um “ponto de vista”. No entanto, aqueles que se baseiam em fatos não deveriam ignorar as evidências apontadas há anos por diversas organizações e instituições respeitáveis mundialmente.
Olhando para os fatos relatados sob Chávez e Maduro, percebe-se rapidamente que não o regime bolivariano nem de longe preenche os pré-requisitos básicos para ser considerada uma “poliarquia” no modelo de Dahl. Tampouco tem sucesso em passar pelo requisito minimalista de eleições competitivas e livres estabelecido por Schumpeter. Pode-se relativizar à vontade esses termos, mas não é possível conceber que um governo que toma a Suprema Corte, impedindo que haja julgamentos justos, e atua diretamente junto a milícias armadas para atacar cidadãos insatisfeitos com a política de seu país seja considerado como um regime que defende amplamente direitos e garantias políticas e sociais. Mais ainda, prendendo, torturando e fazendo sumir opositores, não é possível crer que qualquer pleito eleitoral que se realize em um regime assim seja livre, muito menos justo. A Venezuela falha, e de maneira grave, no teste democrático, mesmo abaixando bastante a barra.
O Brasil vivenciou algo parecido por 21 anos no fim do último século. Na verdade, o ditador Ernesto Geisel, que governou o Brasil entre 1974-79, chegou a usar um argumento parecido ao da “narrativa” para categorizar seu governo como democrático. Em entrevistas a jornalistas franceses, afirmou que “todas as coisas no mundo, exceto Deus, são relativas. Então, a democracia que se pratica no Brasil não pode ser a mesma que se pratica nos EUA, na França ou na Grã-Bretanha”. E que “o Brasil vive um sistema democrático dentro de sua relatividade“7. Relativização é interessante em diversos casos, necessária em muitos, mas extremamente perigosa quando levada a cabo por líderes quando tratando de direitos e garantias fundamentais para a vida humana. Não há quem de bom-senso no Brasil veja o período da ditadura militar como um momento próspero de democracia no país. Não se pode ter quem de bom-senso no Brasil veja um regime semelhante como uma democracia.
É claro que diversos outros fatores influenciam a política venezuelana. É fato que os EUA têm embargado a Venezuela, com o intuito de “limitar as fontes de renda” do governo Maduro8, e membros do seu governo tiveram ligações com a tentativa de golpe na Venezuela em 20209. Adotar um fantoche político e fingir que ele preside outro país, como fizeram vários países ocidentais com Juan Guaidó, tampouco é algo próximo à realidade ou democrático. Golpe ou falta de reconhecimento formal nunca são resposta e críticas nunca são demais contra esse tipo de ação estrangeira – sem mencionar que tendem a constantemente falhar, senão piorar a situação.
Lula, porém, ao sair em defesa do indefensável faz muito mais do que o que é esperado dele, que é o de manter boas relações com vizinhos e respeitar a soberania alheia, que está no interesse do Brasil. No momento em que ele relativiza a democracia, ele se aproxima de um flerte autoritário que o Brasil após quatro anos de fascismo no Planalto não pode mais se dar ao luxo, com o perigo de afundar nesse buraco obscuro como tantos outros países mundo afora tem começado a se enterrar.
Não nos deixemos enganar, Lula é um democrata e provou ser um em diversas ocasiões, principalmente em comparação com os “companheiros” sul-americanos que não hesitaram em abandonar a democracia quando tiveram a chance – como o fez Evo Morales. Lula serviu seus dois mandatos constitucionais, foi responsável por diversos avanços econômicos, sociais e políticos no Brasil, tornando-o mais transparente e democrático – a despeito dos casos de corrupção que ocorreram em seus governos com provas de participação de membros dele, mesmo que não haja provas de que ele tenha pessoalmente participado. Seu terceiro mandato vem como promessa da revitalização da democracia brasileira, abalada desde 2014, quando o golpismo passou a ser pensamento político válido por partes da direita política do país e setores da sociedade. Lula não cedeu a pressão de tornar-se autoritário frente a reveses eleitorais ou perseguições judiciais e não há motivos, no momento, para acreditar que ele cederá.
No entanto, a relativização do que é democracia faz mal a democracia, sobretudo no contexto interno e externo em que nos encontramos em 2023. Forças anti-democráticas têm se popularizado ao redor do mundo e, por mais que elas tenham perdido em parte no Brasil, nos EUA e na França, por exemplo, sua luta pelo poder está longe de ter terminado. É preciso, então, ter prudência e parcimônia.
1 https://www.hrw.org/report/2008/09/18/decade-under-chavez/political-intolerance-and-lost-opportunities-advancing-human
2 https://www.hrw.org/report/2014/05/05/punished-protesting/rights-violations-venezuelas-streets-detention-centers-and
3 https://www.hrw.org/report/2017/11/29/crackdown-dissent/brutality-torture-and-political-persecution-venezuela
4 https://rsf.org/en/country/venezuela
5 https://www.amnesty.org/en/location/americas/south-america/venezuela/report-venezuela/
6 https://www.ohchr.org/en/hr-bodies/hrc/ffmv/index
7 https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2023/06/lula-evoca-frase-de-general-da-ditadura-ao-falar-de-democracia-relativa.shtml
8 https://www.state.gov/venezuela-related-sanctions/
9 https://www.vice.com/en/article/pkpex7/maga-the-cia-and-silvercorp-the-bizarre-backstory-of-the-worlds-most-disastrous-coup