Neste domingo (28), turcas e turcos foram às urnas para um segundo turno polarizado, tal como se conheceu no Brasil nas últimas eleições. De um lado, o já conhecido Recep Tayyip Erdoğan, que está à frente do país desde 2003. Do outro, um candidato da oposição que se pôs como a opção democrática neste pleito que, de novo, assim como no Brasil, parecia ter gosto mais de referendo do que eleição. Desde as 19h em Ancara, capital da Turquia, Erdoğan declarava que havia ganhado, mais uma vez, as eleições. Nesta manhã (29), os resultados das apurações a 99,85% dos votos contabilizados era o seguinte:
![]() |
Kılıçdaroğlu (CHP) ![]() |
52,16% 27.725.131 votos |
47,84% 25.432.951 votos |
Mas, o que isso quer dizer para a Turquia? E para o mundo? Abaixo, fazemos um resumo para você sobre o que Erdoğan representou e representa para seu país e o mundo.
Erdoğan (pronunciado “érdôuan“) tem uma vida política longa. Desde 1976, ele tem se envolvido em política, entrando para um grupo anti-comunista e outro islamista, crescendo ali dentro. Com quarenta anos, em 1994, foi eleito pela primeira vez para prefeito de Istambul, a maior cidade da Turquia, após tentativas falhas para o parlamento e prefeituras menores. Com cerca de 25% dos votos à época, Erdoğan passou a comandar Istambul sem ser levado a sério pela mídia e seus oponentes. No entanto, ele usou seu cargo de prefeito de maneira pragmática. Com políticas voltadas à resolução de problemas de falta d’água, poluição e tráfego, ele passou a se tornar popular. Para ganhar ainda mais o povo, Erdoğan disponibilizou seu próprio endereço de e-mail e abriu novas linhas telefônicas municipais para que as pessoas entrassem em contato mais facilmente. Em um artigo de 2003, o New York Times publicou um artigo falando bem sobre “o experimento Erdoğan” (abrir), onde se frisa que, por mais que fosse um muçulmano devoto e com um “passado islamista”, ele tinha se transformado em um “democrata moderno e pró-ocidente”.
Seu mandato foi interrompido antes do fim, no fim de 1998, pois ele foi sentenciado a prisão por recitar um poema, adicionando versos que diziam “as mesquitas são nossas barracas, os domos nossos capacetes, nossos minaretes (torres das mesquitas) nossas baionetas e os fiéis nossos soldados“–partes que não estavam na versão original do poema. Isso foi visto como uma incitação à violência e ódio religioso e racial pela justiça turca à época. Erdoğan foi então sentenciado a 10 meses de prisão, diminuídos depois para apenas quatro. Um impedimento de participar em eleições parlamentares também lhe foi imposto.
O ex-prefeito de Istambul teve dificuldades em fixar-se em um partido durante sua carreira política antes de 2003. Constantemente, os partidos em que era filiado eram ora banidos pelo exército, ora pela justiça.
Vale salientar aqui que a história recente da Turquia observou uma virada forte a la Ocidente na primeira metade do século passado. Com o presidente Mustafa Kemal Atatürk, primeiro presidente da República da Turquia, fundada em 1923 com o fim do Império Otomano após a 1ª Guerra Mundial, foi introduzida uma política que ficou conhecida como “kemalismo“. Dos seis princípios que esta ideologia pregava, a “laicidade” é uma das que é importante frisar aqui, porque, diferente de outros países, a Turquia passou de ser um país muçulmano para um em que a religião deveria ser separada totalmente de todas as esferas públicas, incluindo política, justiça, educação e sociedade. Este ponto é especialmente importante para a história de Erdoğan.
O interesse do ex-prefeito de Istambul e seus aliados era justamente um partido que tivesse um cunho islâmico, o que era barrado constantemente pelas autoridades do país. Logo, escolheu-se pelo pragmatismo em formar um partido que fosse mais “classicamente” conservador, sem tanto o cunho religioso. Assim, foi criado em agosto de 2001 o “Partido Justiça e Desenvolvimento” (abreviado em turco como “AK PARTİ” ou só “AKP”), sob a batuta de Abdullah Gül – também um islamista – e Erdoğan. Esta se tornou a sigla-lar do ex-prefeito de Istambul daquele momento em diante.
Nas eleições de 2002, Erdoğan concorreu à frente de seu partido AKP e conseguiu pouco mais de 34% dos votos nacionalmente. No entanto, seu banimento da política devido à sentença de 1998 ainda estava mantido. Assim, Gül teve de assumir o cargo de primeiro-ministro do país em seu lugar.

• AKP (34,28%) | • CHP (19,39%) | • DEHAP (6,22%)
Fonte: Wikipedia
Não demorou muito para que o partido, com ajuda do segundo partido mais votado–o “Partido Republicano do Povo” (CHP) que teve cerca de 19%–o governo conseguiu retirar a proibição política de Erdoğan, o que lhe possibilitou participar de uma eleição que teve de ser repetida em 2003 na província de Siirt (onde Erdoğan declarou o poema que lhe rendeu quatro meses de prisão) devido a irregularidades. Assim, o ex-prefeito de Istambul conquistou um assento no parlamento e pôde assumir o cargo de primeiro-ministro–com Gül indo para um ministério do governo.
Nas próximas eleições de 2007, o voto que deveria ocorrer no fim daquele ano aconteceu em julho, após o parlamento turco não conseguir eleger um novo presidente para o país–na Turquia, à época, o presidente era apenas o chefe de Estado e não de governo, como em Portugal ou Alemanha, por exemplo, e era eleito pelo parlamento, não diretamente como no Brasil ou nos EUA. Em abril daquele ano, 300 mil pessoas protestaram na capital Ancara contra a possibilidade de Erdoğan se candidatar à presidência, temendo que ele pudesse ter mais influência para reverter a laicidade do país. A eleição, no entanto, foi um sucesso para o AKP, que passou de 34% dos votos para 46%. Erdoğan, que havia anunciado que seu partido indicaria o aliado Abdullah Gül à presidência, manteve-se no cargo de primeiro-ministro.

• AKP (46,58%) | • CHP (20,88%) | • MHP (14,27%)
Fonte: Wikipedia
O impasse pela eleição de um novo presidente, porém, continuou. Isso levou o AKP a propor um referendo que pretendia mudar a constituição, implementando o voto direto para presidente, diminuindo o mandato de sete para cinco anos e permitindo que o ocupante pudesse concorrer à reeleição. O “sim” ganhou por 68,95% em outubro de 2007.
Estas vitórias, porém, não significaram menos atritos. Em março de 2008, o procurador-geral da Turquia requereu à Corte Constitucional do país que banisse o AKP, justificando que o partido passou a atuar ativamente contra a laicidade da Turquia. “O risco tem crescido todo dia (…) O perigo é claro e concreto”, argumentava o procurador em sua petição à Corte¹. Na sociedade, havia o medo que o AKP pretendesse impor a Sharia–o “direito islâmico”, pelo qual todas as leis são fundamentadas no Corão, o livro sagrado muçulmano. Este temor não era sem fundamento, já que o partido havia tentado eliminar a proibição do uso de véu pelas mulheres muçulmanas em universidades, o que era visto como anti-constitucional no país. A Corte, no entanto, rejeitou o pedido do procurador² e o AKP pôde continuar existindo.
Um novo referendo em 2010 propôs mudanças na constituição que tinham a intenção de alinhá-la mais aos requisitos impostos na candidatura da Turquia à União Europeia (UE). As mudanças não tiveram a maioria necessária para passar no parlamento, mas os números de parlamentares possibilitaram a realização de um voto pelo povo. O AKP, no governo, apoiou o “sim”, enquanto a oposição, por mais que concordasse com partes das reformas, apoiou o “não”, afirmando que a justiça e o exército teriam menos poder e isso poderia colocar a laicidade do país em risco. Com o sim passando com quase 58% dos votos, Erdoğan contabilizou esta como mais uma vitória sua. Empoderado com este resultado, o AKP prometeu criar “uma nova constituição” após as eleições de 2011. Em 12 de junho, o partido de Erdoğan cresceu mais três pontos percentuais, conquistando 49,8% do eleitorado nacional. A constituição, porém, manteve-se inalterada.

• AKP (49,83%) | • CHP (25,98%) | • MHP (13,01%)
Fonte: Türkiye Büyük Millet Meclisi
Antes das próximas eleições parlamentares que aconteceriam em 2015, Erdoğan foi nomeado por seu partido ao cargo de presidente. Em agosto de 2014, e após as alterações para que o cargo de presidente fosse decidido pelo voto direto do povo e não mais do parlamento, ele foi eleito com 51% dos votos em primeiro turno.

• AKP (51,79%) | • Coalizão CHP-MHP-outros (38,44%)
• HDP (9,76%)
Fonte: YSK
Por mais que o cargo de presidente fosse representativo, Erdoğan afirmou após ter ganhado que não respeitaria a neutralidade que era esperada dos presidentes como chefe de Estado. Com seu partido continuando à frente do parlamento–com quase 50% dos votos na segunda eleição parlamentar que ocorreu em 2015–, via-se o cenário em que Erdoğan governaria o país através do primeiro-ministro indicado por seu partido no parlamento, enquanto ele representaria o país no mundo em seu novo cargo de presidente. Os próximos dois anos foram mais tumultuados para o país.
Em 15 de julho de 2016 uma parte das Forças Armadas turcas tentou um golpe de Estado para destituir Erdoğan. Justificando suas ações na erosão da laicidade, da democracia e dos direitos humanos, os militares tentaram tomar Istambul, Ancara e especialmente a ponte que liga a parte europeia à asiática da Turquia, a Ponte do Bósforo.

O golpe falhou, já que a maior parte das forças militares do país mantiveram-se leais ao governo e derrotaram os golpistas. O saldo foi de 300 mortes e mais de 2.000 feridos. Prédios do governo foram bombardeados durante a tentativa. A reação do governo a esta tentativa de golpe foi severa. 10.000 soldados e quase 3.000 juízes foram presos. 15 mil trabalhadores da educação e 21 mil professores tiveram suas licenças suspensas pelo governo com a acusação de serem cúmplices. Mais de 77 mil outras pessoas foram presas e 160 mil perderam seus empregos como retaliação. No ano seguinte, chegou o tempo de um novo referendo.
Desta vez, o AKP propunha a alteração de regime do país, fazendo com que a Turquia passasse a ser uma república presidencialista e não mais parlamentarista. O cargo de primeiro-ministro seria extinto, o parlamento cresceria de 550 para 600 assentos e o presidente teria mais poderes na indicação de juízes e procuradores. Após o voto no dia 16 de abril de 2017, a autoridade eleitoral do país, o Conselho Eleitoral Supremo (YSK), determinou que as cédulas de voto que não tivessem o carimbo oficial seriam também contabilizadas como “votos válidos”, o que foi criticado por muitos como uma ação ilegal, já que cerca de 1,5 milhões de cédulas não teriam o carimbo. Protestos se seguiram. Neste cenário, o “sim” à proposta angariou 51,4% contra 48,5% dos votos “não”.
Após o referendo, em 2018, eleitores turcos foram às urnas eleger novamente seu presidente. Erdoğan aumentou seu percentual e foi reeleito em primeiro turno com 52,59% dos votos. Este é o resumo eleitoral de Recep Tayyip Erdoğan até as eleições de 2023.

• AKP (52,59%) | • CHP (30,64%) | • HDP (8,40%)
Fonte: YSK.
A Turquia pode não aparecer todos os dias nos noticiários do Brasil, mas é um país bastante relevante em várias questões da comunidade internacional. Sua posição geográfica, entre a Europa e a Ásia, resume bem suas relações com o mundo, especialmente sob a batuta de Erdoğan.
Primeiramente, a Turquia é um país membro da Organização do Tratado do Atlântico Norte–a OTAN. Com isso, é oficialmente aliada do Ocidente. Isso faz com que, por mais que não tenha bombas nucleares próprias, por exemplo, tenha o direito em compartilhar estes armamentos de outros países da Aliança. Estima-se que 20 bombas nucleares americanas estejam em solo turco–sob tutela do exército americano. Este talvez seja o maior trunfo nas mãos da Turquia, em termos de respeitabilidade militar. Por outro lado, a Turquia está ainda oficialmente como membro aspirante à União Europeia–por mais que hoje em dia esta candidatura não possa mais ser levada, de fato, a sério e as chances de que uma ascensão à UE diminuam cada vez mais com o passar do tempo. Esses arranjos foram realizados bem antes de Erdoğan chegar ao poder.
A Turquia de hoje é multifacetada e não vê seu norte no Ocidente. O atual mandatário turco tem uma relação próxima, por exemplo, com o presidente russo Vladimir Putin. Este fato associado ao status de membro da OTAN faz com que as ações de Erdoğan estejam sempre no radar dos países ocidentais, em especial após a anexação da Crimeia em 2014 e o início da Guerra na Ucrânia em 2022. Além disso, como já salientado em artigo da Foreign Affairs (abrir), a Turquia vem se aproximando cada vez mais de outros países do Oriente Médio, visando aumentar sua influência na região. Em linha com sua ideologia islamista e anti-laica, Erdoğan já mostrou seu apoio à Irmandade Muçulmana e islamistas associados em vários levantes árabes em países da região.

A Turquia também tem sua própria agenda na Síria, especialmente por causa da presença curda no nordeste do país. Desde os anos 1980, a Turquia tem uma política de “assimilação forçada” do povo curdo à sociedade turca, o que envolve na prática uma proibição da língua e dos costumes curdos. Com a guerra civil no país vizinho, a Turquia tem usado a falta de controle das fronteiras para avançar sua agenda contra curda na Síria. Em 2019, após o então presidente americano Trump ordenar a retirada de soldados americanos da Síria, que estavam apoiando os aliados curdos, o governo de Erdoğan iniciou uma invasão aérea nas cidades fronteiriças. Ancara considera a organização curda “Partido dos Trabalhadores do Curdistão” (PKK) uma organização terrorista e visou “expulsá-los” da região.
Também por sua posição de fronteira com a Síria e com a União Europeia, Erdoğan esteve na posição privilegiada de forçar a UE a negociar, em seus termos, acordos para “estancar” o fluxo de refugiados fugidos da Guerra Civil Síria para os países da União–seguindo a chamada “Crise de Refugiados” em 2015. Mesmo após um acordo entre Ancara e Bruxelas que fixou auxílios de bilhões de euros para a Turquia manter refugiados em seu solo, o governo de Erdoğan resolveu abrir suas fronteiras com a Grécia e até mesmo enviar vários migrantes de ônibus para o país vizinho, criando tensões na fronteira³. O presidente turco sabe usar geografia de seu país como um trunfo em sua mão.
Mais recentemente, após a invasão da Rússia a mais regiões da Ucrânia em 2022, Erdoğan viu uma nova chance de exercer poder sobre alguns outros países europeus. Com as negociações para a entrada da Suécia e da Finlândia na OTAN, a Turquia mostrou que não daria seu aval para que os países se tornassem membros da Aliança–não sem ceder em vários pontos de interesse de Ancara. Especialmente a Suécia, que continua vetada da OTAN graças à Turquia, está sendo “punida” por ter condenado o governo Erdoğan por abusos aos direitos humanos e sua política de degradação da democracia em seu país. Protestos em Estocolmo em que o Corão foi queimado e uma imagem de Erdoğan foi pendurada de cabeça para baixo diminuíram ainda mais a vontade de Ancara em permitir que o país escandinavo entre para a Aliança.
Apenas por esses motivos, nas eleições deste ano, os países ocidentais viam com bons olhos uma vitória da oposição, ou melhor, um freio no rumo que a Ancara tem tomado sob Erdoğan.
É válido olhar para alguns indicadores para entender como Erdoğan mudou a Turquia. Vamos começar com a economia do país. O PIB turco teve um salto considerável desde que o ex-prefeito de Istambul chegou ao governo em 2003. O país saiu da casa dos 240 bi. de dólares em 2002 para um pico de 957 bi. de dólares em 2013, um aumento de quase 300%–sendo a única exceção de crescimento a crise de 2009. O aumento do PIB per capita, o valor do produto interno dividido pela população, também cresceu até seu pico em 2013, apresentando um crescimento menor de cerca de 166%. Em termos de posição mundial, no entanto, a economia turca só passou da 18ª posição para a 17ª entre as economias do mundo.
Fonte: Banco Mundial
Fonte: Banco Mundial
No entanto, como o gráfico bem mostra, houve quedas consecutivas após 2013. A queda do PIB turco chegou a um máximo em 2020, acumulando uma perda de quase 25% de valor de seu produto interno. Mas o que houve para parar o que parecia uma política de sucesso do governo AKP?
Em maio de 2013, protestos estouraram em Istambul, inicialmente com a intenção de contestar planos de transformar um pequeno parque na cidade em um shopping. Os protestos, porém, cresceram e se espalharam pelo país. Logo, a pauta também mudou. Questões como a liberdade de imprensa, democracia e a erosão da laicidade, causada pelo governo de Erdoğan, tornaram-se centrais para os manifestantes. O descaso que a mídia teve com os protestos e a violência policial contra manifestantes fez com que os movimentos crescessem ainda mais. Erdoğan culpa especialmente esses protestos pelas perdas econômicas que o país teve a partir de 2013¹¹. Fato é que os indicadores econômicos passaram a desabar depois dessa época.
Fonte: Banco Mundial
Fonte: Trading Economics
Erdoğan havia pegado a Turquia em uma situação de alta inflação em 2003. Dados do Banco Mundial mostram que, em 2000, a inflação anual no país passava dos 50%. No ano em que o AKP entrou no poder, a inflação já havia baixado para 45%. A média de inflação na Turquia durante os sucessivos governos Erdoğan foi de 9,2% até 2016, o que continua sendo alto em comparação global, mas bastante abaixo dos 50% de antes. A partir daí, porém, a inflação saiu do controle, alcançando 16,3% anualmente em 2018. Próximo à casa dos 20% novamente, como na época em que Erdoğan assumiu o país pela primeira vez, o controle do governo parece ter desaparecido.
Os efeitos do descontrole da economia também transparecem no câmbio da lira turca, a moeda nacional. Tendo se mantido sempre abaixo da taxa de conversão de duas liras por dólar americano, antes de 2013, a moeda turca começou a desvalorizar-se devagar chegando a quase 4 liras por dólar em 2018. A partir daí, porém, a moeda começou a perder ainda mais valor ultrapassando a casa das 7 liras por dólar em 2021, 13 em 2022 e, em maio deste ano, chegando ao câmbio máximo de 20 liras por dólar, uma desvalorização de mais de 1.000% desde que Erdoğan assumiu o cargo em 2003.
Por fim, os efeitos sociais do governo AKP podem ser visualizados com alguns índices também. Começando pelo Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), publicado pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), que dá notas considerando a expectativa de vida, educação e renda per capita, por exemplo. Nesta escala, “1,000” é a maior nota e significa que a região analisada tem um alto desenvolvimento humano. Do outro lado, “0,000” significaria o exato oposto. Nesta métrica, o governo Erdoğan elevou o nível de vida na Turquia. No início de seu governo, em 2003, o país pontuava 0,690 em IDH, o que é considerado como um nível “médio”. Este índice se elevou constantemente até 2019, chegando a um pico de 0,842, considerado “muito alto”. Em 2021, último dado disponível, o nível havia caído um pouco, mas continuava na mesma categoria.
Fonte: ONU
Por outro lado, o Índice GINI, que mede a desigualdade em um país, sofreu algumas alterações interessantes. Aqui, “100” representa o máximo de desigualdade, enquanto “0” representa o ideal de nenhuma desigualdade. O governo AKP assumiu a Turquia com um nível de desigualdade na casa dos 40 pontos, o que é considerado moderadamente alto. Em seus primeiros anos à frente do governo, Erdoğan conseguiu fazer com que os números caíssem para a casa dos 30 pontos, indicando uma queda de desigualdade no país. Esta mudança positiva, porém, foi temporária. Os dados mostram que, a partir de 2010, a desigualdade subiu novamente, alcançando níveis maiores ou similares àqueles antes do AKP chegar ao poder.
Fonte: Banco Mundial
Por fim, para analisar o estado da democracia no país, trazemos dados da base V-Dem (Varieties of Democracy), especialmente a análise do “Índice de Democracia Liberal”. O índice baseia-se na definição do princípio da democracia liberal que “enfatiza a importância de proteger os direitos individuais e das minorias contra a tirania do estado e a tirania da maioria”. Um maior nível nesta escala é alcançado por “liberdades civis constitucionalmente protegidas, estado de direito forte, um judiciário independente e verificações e contrapesos efetivos que, juntos, limitam o exercício do poder executivo”, como é explicado na página da base de dados (abrir). Aqui temos uma escala que varia entre “1”, maior nível possível, e “0”, o menor nível possível. Para níveis de comparação, um país com alta pontuação como a Suécia teve uma média de 0,88 nos últimos 20 anos, enquanto outro com baixa pontuação, como a Coreia do Norte, pontuou 0,01. Aqui, a Turquia liderada pelo AKP caiu constantemente nesta métrica, saindo de uma posição mediana de 0,52 pontos em 2003, para um ponto mais baixo de 0,10. Este índice demonstra que a Turquia de Erdoğan tornou-se um país mais autoritário, com um regime democrático que vem piorando a cada ano.
Fonte: V-Dem
Com a vitória confirmada, Recep Tayyip Erdoğan confirmou que estará à frente da presidência turca pelos próximos cinco anos, até 2028. Os resultados desta eleição, por si só, têm uma mensagem sobre o interesse dos turcos em relação a seu presidente. Por mais que tenha ganhado novamente o pleito e siga invicto no cargo, é a primeira vez em que a oposição chegou tão perto de retirá-lo do cargo. Desta vez, o pleito precisou ir ao segundo turno, diferente das vitórias de primeira que conseguiu anteriormente. Deter a máquina pública, porém, lhe garantiu a vitória mais uma vez.
A campanha viu vários casos que beneficiaram o candidato do AKP em detrimento da oposição. No primeiro e no segundo turno, por exemplo, o presidente turco distribuiu dinheiro para as pessoas em sua sessão eleitoral e na rua. A oposição também denunciou irregularidades em votos no primeiro turno, por mais que tenha reconhecido que elas poderiam não alterar o resultado final do pleito²². O candidato da oposição, Kılıçdaroğlu, reconheceu a perda, mas afirmou que esta foi “a eleição mais desleal em anos”³³.

Fonte: Twitter (@AmichaiStein1).
O que se pode esperar agora é que Erdoğan, munido de sua quinta vitória eleitoral, se sinta empoderado para continuar sua busca em aumentar a influência islâmica no país, diminuindo cada vez mais o sistema laico turco. A forma como o pleito foi levado a cabo também não dá motivos para crer que o estado democrático na Turquia tenda a melhorar, uma vez que a máquina estatal foi usada fortemente a favor do mandatário. O chefe da missão observadora da Organização para Segurança e Cooperação na Europa (OSCE) relatou que “emissoras públicas claramente favoreceram os partidos e candidatos no poder” e que “a maioria dos canais de TV privados (…) estavam também claramente enviesados para os partidos no governo em sua cobertura”¹¹¹. Um exemplo disso pode ser visto na imagem abaixo de um canal pertencente ao segundo maior conglomerado de mídia da Turquia:

Para o Ocidente, a vitória de Erdoğan significa a continuação de uma relação cada vez menos confiável e a expectativa de que, sempre que houver a oportunidade de uma chantagem diplomática, seja pelo uso político de fluxo de imigrantes, seja pelo veto a ações na OTAN, ou mesmo pela atuação dúbia ao lado da Rússia, Ancara não pensará duas vezes antes de colocar outros países contra a parede.
¹ http://news.bbc.co.uk/2/hi/europe/7482793.stm
² http://news.bbc.co.uk/1/hi/world/europe/7533414.stm
³ https://www.bbc.com/news/world-europe-51735715
¹¹ https://www.al-monitor.com/originals/2022/06/turkeys-erdogan-pins-economic-crisis-2013-gezi-protests
²² https://www.reuters.com/world/middle-east/turkey-opposition-says-irregularities-thousands-ballot-boxes-2023-05-17/
³³ https://www.reuters.com/world/middle-east/erdogan-positioned-extend-rule-turkey-runoff-election-2023-05-27/
¹¹¹ https://www.ft.com/content/7051e46f-5744-40aa-85af-d54b0d0878f1