Você já pensou, nem que apenas uma vez, “se eu fosse presidente, as coisas não seriam assim” ou “como pode não existir um único político que faça tudo o que promete”? Se sim, saiba que não está sozinho. Na verdade, esse pensamento é tão comum que gerou uma série de estudos e até escolas de pensamento ao redor do mundo. Nessa coluna, tentarei apresentar ao leitor um pouco de tudo isso, usando como exemplo a seguinte pergunta: “Se sabemos que o aquecimento global é danoso e preocupante, por que nossos líderes não fazem nada a respeito?”.
Para começarmos, imagine Cândido, um homem de bem, incorruptível. Cândido se candidata à presidência de uma democracia fictícia – chamemo-la de Polis – com uma mensagem clara: Saúde para todos! Embora a saúde seja sua prioridade, Cândido governaria um país, e, portanto, outras agendas, ainda que não prioritárias, precisariam de seu cuidado e atenção, como segurança pública, educação, geração de empregos, etc. Eis aqui o primeiro problema.
Veja, Cândido é apenas um, e sozinho não conseguiria asfaltar ou patrulhar as ruas, educar as crianças, jovens e adultos, ou, de forma geral, gerir Polis. Para governar, Cândido precisa de outros. O poder de um líder é fazer com que outros ajam em seu nome e segundo suas ordens. Para tanto, Cândido distribuiria recursos do Estado – como salários, isenção de impostos, benefícios tributários e legais, etc. – para aqueles indivíduos responsáveis por essas atividades (caso contrário, eles não teriam motivo para desempenhá-las). Cândido deseja ser um líder bom e justo, mas seus desejos seriam apenas desejos sem o apoio desses indivíduos.
Esses indivíduos necessários para o governo do país – generais, burocratas, elites políticas, etc – seriam em maior número quanto mais democrático fosse o país. Em ditaduras, o poder é centralizado nas mãos de poucos indivíduos. Em democracias, o poder é disperso, e esses indivíduos estão em maior número. Ainda assim, seja em ditaduras ou democracias, o líder precisa do apoio desses indivíduos, ou não conseguiria governar. Cândido, como uma boa pessoa, poderia propor direcionar a maior parte dos recursos do Estado para o povo de Polis, no entanto, se outro candidato – chamemo-lo Martim – propusesse direcionar os recursos para esses indivíduos, ao invés do povo, Martim seria capaz de governar, e não Cândido.
O caso da França, por exemplo, ilustra bem essa dinâmica. Lá, conceder benefícios e subsídios para a produção agrícola tem pouco a ver com a produção de alimento, mas sim com o quão necessários são os votos e articulações políticas dos produtores agrícolas franceses para se governar o país. Mais subsídio agrícola, menos subsídio ou investimento em outras áreas. Assim como na França, a balança de poder entre os indivíduos que mantêm o líder no poder é parte integrante do governo de qualquer democracia representativa ou ditadura.
É importante notar que esses indivíduos necessários para gerir um país, os indivíduos-chave, têm interesses complexos, por vezes contrastantes e até opostos entre si. É por isso que apenas decidir investir neles, ao invés de investir na população, pode não ser suficiente para garantir a governabilidade de um país. É necessário entender a inconstante balança de poder entre esses indivíduos, seus desejos e suas necessidades.
Esses indivíduos responsáveis por ajudar a gerir o país podem até ter intenções nobres como Cândido, mas também, como ele, precisam agradar àqueles abaixo de si na hierarquia, sem os quais não conseguiriam desempenhar sua função. Um general só é útil para um presidente porque seus capitães fazem o que ele ordena. Os capitães, por sua vez, só são úteis porque os soldados fazem o que lhes é ordenado pelos capitães. Caso um desses indivíduos-chave não entregue recursos suficientes para aqueles indivíduos-chave abaixo de si na hierarquia, outro pode tomar o seu lugar. Em uma rede de alianças, ser leal ou pensar no povo pode ser custoso ao ponto de se perder poder.
Com isso em mente, é natural que se questione como a população pode melhorar de vida. Na realidade, construir hospitais, estradas, escolas e universidades é positivo para a população, mas apenas um subproduto da ação governamental, que busca, com essas medidas, aumentar os recursos do Estado ao aumentar a produtividade do cidadão médio, para então distribuir esses recursos para os indivíduos-chave. Uma economia desenvolvida é também uma economia rica e dinâmica que pode ser usada para cooptar o apoio de indivíduos-chave. É também por isso que as ditaduras mais violentas e com o menor IDH costumam ser aquelas em que os recursos do Estado são provenientes da extração de petróleo ou pedras preciosas. Nesse caso, não há razão para gastar com um aumento da produtividade civil, já que os indivíduos-chave são cooptados com recursos extraídos diretamente da terra.
Cândido se revolta com o “sistema corrupto” da democracia de Polis e pensa em fazer uma revolução. Cândido percebe que revoluções não são feitas por um único indivíduo. Assim como seria para governar um país, para revolucioná-lo, Cândido também precisaria do apoio de indivíduos-chave para levar a cabo a revolução. Ainda mais, uma vez feita a revolução, Cândido precisará novamente de indivíduos-chave para governar o “novo país”. Geralmente, acontece que aqueles responsáveis por fazer uma revolução de sucesso não são os mesmos necessários para se gerir um país. É por essa razão que líderes revolucionários costumam expurgar vários de seus colegas revolucionários uma vez que chegam ao poder, enquanto trabalham com indivíduos-chave dos governos anteriores à revolução.
Compreendendo que para conseguir governar é necessário abrir mão de alguns de seus valores, Cândido propõe direcionar os recursos do Estado para esses indivíduos, acreditando que, ao menos na área da saúde – sua prioridade original – ele será capaz de “fazer o bem”. Cândido é eleito e, uma vez no governo, se depara com a realidade da saúde em Polis.
Especificamente, Cândido percebe a complexidade do tema. Como a maioria das outras agendas, saúde é diretamente afetada pela criação ou não de novos empregos, pelos graus de poluição do país, pelas desigualdades sociais… Enfim, cada agenda é entrelaçada com as demais, e é, portanto, muito difícil produzir resultados concretos em uma agenda sem concomitantemente alterar as demais. Ao tentar resolver um problema da saúde pública, Cândido pode inadvertidamente produzir políticas que afetem negativamente os interesses dos indivíduos-chave. Dada a inter-relação de todas as agendas em um sistema tão complexo, em que causas e consequências se misturam, ao tentar resolver um problema da saúde pública, Cândido pode inadvertidamente produzir danos a outros aspectos da própria saúde pública.
Mais que isso, Cândido percebe que o povo parece concordar que a saúde deve melhorar, mas a polarização política exacerba a variedade de opiniões a respeito de como fazer isso. Por exemplo, como indicam os estudos seminais de Rothbard, aumentar a igualdade no acesso à saúde – com, por exemplo, mais hospitais, distribuídos de forma que todo bairro tenha a mesma distância de um hospital que qualquer outro bairro – diminui a igualdade na distribuição da qualidade desses tratamentos, já que hospitais mais próximos a bairros populosos terão maior experiência em tratamento da comunidade, por exemplo. Ao propor igualdade na saúde, Cândido precisará escolher qual igualdade lhe é mais importante, e em qual medida, se aliando a uma visão de mundo enquanto não representa plenamente as outras.
Finalmente, frustrado com tamanha dificuldade moral e prática em se “fazer o bem”, Cândido decide abandonar a política. O problema que Cândido deve enfrentar é o de que há política em tudo. Nas universidades, organização de condomínios, relações familiares, onde houver relações entre seres humanos haverá também política. Não há como escapar da política, apenas decidir dar a outros o direito de fazer escolhas por você ou não. E, escolhendo transferir a responsabilidade, você se torna responsável por “assinar um cheque em branco”.
O exemplo de Cândido ilustra bem como sistemas políticos limitam a possibilidade de ação de líderes bem-intencionados, e, em parte, responde ao pensamento “se eu fosse presidente, as coisas não seriam assim” ou “como pode não existir um único político que faça tudo o que promete?”. O exemplo também responde à pergunta “Se sabemos que o aquecimento global é danoso e preocupante, por que nossos líderes não fazem nada a respeito?”, mas podemos ir além.
Como argumentam Mesquita, Smith e Silverson – autores de A Lógica da Sobrevivência Política – apesar das limitações impostas pelo balanceamento de interesses e complexidade das agendas serem comuns a todos os regimes, a quantidade de indivíduos-chave varia de acordo com o tipo de regime, e essa diferença pode ser crucial na mitigação do aquecimento global. Posto de forma simples, se houverem muitos indivíduos-chave – como em democracias – é mais custoso recompensá-los com bens privados, e, portanto, mais fácil recompensá-los com bens públicos, dos quais a população acaba por também desfrutar. Se houverem poucos indivíduos-chave – como em ditaduras – os recursos do Estado serão pouco divididos entre eles, de forma que cada um receberia uma boa quantidade desses recursos, e seria assim mais fácil recompensá-los individualmente do que produzir bens públicos.
Dito de outra maneira, é mais comum que ditaduras produzam isenção fiscal para grandes companhias, maior corrupção, privilégios de informação e outras formas de bens privados, enquanto democracias produzem livre-mercado, políticas ambientais e outras formas de bens públicos. É por isso que, de forma geral, as democracias performam melhor que as ditaduras em proteção ambiental.
Democracias não só buscam aumentar a produtividade do cidadão para aumentar os recursos do Estado, mas também dividem esses recursos de forma que mais indivíduos possam usufruí-los. É, portanto, óbvio que, apesar de limitadas pelas amarras do sistema político, as democracias produzem maior bem-estar social e serão mais eficientes na resposta ao aquecimento global. Propor que ditaduras resolveriam o problema ambiental é não olhar com atenção nem para os exemplos de ditaduras ao redor do mundo, nem para a teoria.
Referências:
https://www.researchgate.net/publication/227458612_The_Logic_of_Political_Survival