A institucionalização da LGBTfobia na Hungria: um alerta global à democracia

A Hungria de Viktor Orbán acaba de dar mais um passo em direção à LGBTfobia em forma de lei. Com a nova emenda constitucional, o país proíbe a expressão pública de diversidade e institucionaliza a perseguição estatal, utilizando-se de artefatos de reconhecimento facial para reprimir manifestações. Esse avanço autoritário é um sintoma de uma democracia em colapso, que se reverbera em outras localidades enquanto a comunidade internacional assiste, passiva. Até onde o ódio pode ser normalizado como política de Estado?

O avanço autoritário na Hungria
Em abril de 2025, o parlamento húngaro, dominado pelo partido nacional-conservador Fidesz, deu um passo sombrio rumo à institucionalização da LGBTfobia. A nova emenda constitucional aprovada proíbe reuniões públicas relacionadas à comunidade LGBTQIAP+ e estabelece o reconhecimento de “apenas dois sexos”, medida esta que espelha políticas recentes do governo Trump nos Estados Unidos. Viktor Orbán, primeiro-ministro da Hungria e arquiteto dessa cruzada anti-direitos, já havia dado sinais desse tipo de conduta autoritária em 2021, quando liderou a aprovação de uma lei que bania qualquer menção à homossexualidade em escolas e meios de comunicação.

O que torna essa nova legislação particularmente distópica é seu mecanismo de aplicação. O governo pretende utilizar softwares de reconhecimento facial para identificar e multar participantes de paradas LBGT ou de qualquer evento público atrelado à comunidade. Essa medida vai para além da repressão e transforma a existência em infração, criando um sistema de vigilância em massa que cerceia a liberdade de expressão, alimenta o medo e compromete princípios fundamentais do Estado democrático de direito.

Um modelo replicado?
Tanto na Hungria quanto nos Estados Unidos, essas políticas engendram violências multifacetadas, especialmente contra pessoas transgênero, cujas identidades são sistematicamente apagadas em documentos oficiais e instâncias governamentais. Essa onda de conservadorismo deus sinais também no Reino Unido, manifestando-se na decisão unânime da Suprema Corte em definir legalmente “mulher” a partir apenas do sexo biológico. E mais uma vez a marginalização de pessoas LGBTQIAP+ parte de uma trilha de ideias que vêm minando as instituições democráticas. 

O paradoxo é evidente: enquanto pessoas transgênero não ocupam posições de poder significativas nem detêm influência econômica massiva, tornam-se o principal alvo de governos com tendências autoritárias. São apontadas como ameaças a uma suposta ordem natural e binarista, servindo como bodes expiatórios para problemas sociais complexos que, na verdade, derivam da má gestão, das desigualdades e da erosão das políticas públicas.

A criminalização escancarada da existência LGBTQIAP+ revela um projeto ideológico que se fundamenta na tentativa de apagar a diversidade e reconfigurar a sociedade a partir de uma noção restritiva de identidade. O que está em cheque não é somente um ataque isolado, mas uma tentativa orquestrada de reverter avanços conquistados em décadas de lutas e reivindicações sociais.

Fonte: AP Photo/Evan Vucci

O desmonte democrático sob o pretexto da “soberania cultural”

A aprovação dessa emenda na Hungria representa, para além de um ataque à comunidade LGBTQIAP+. um golpe na democracia. Apesar dos protestos massivos, o partido ignorou a vontade popular e seguiu com sua agenda de ódio, utilizando a “proteção à soberania cultural” como justificativa para violações flagrantes dos Direitos Humanos. Essa estratégia é conhecida: criar um inimigo imaginário para unir grupos em torno de uma causa comum, enquanto se desvia a atenção do verdadeiro desmonte das políticas sociais.

Em 2023, Viktor Orbán criticou a União Europeia, acusando-a de conduzir uma “ofensiva LGBTQ”, que estaria supostamente ameaçando as raízes cristãs do território húngaro. Ele afirmou que o seu governo, baseado no nacionalismo, atuaria na proteção dessas raízes contra o que ele considera como uma imposição de valores externos, como a suposta ameaça moral das orientações sexuais e identidades de gênero não conformistas. Esse tipo de narrativa fornece espaço para a implementação de medidas que restringem direitos civis sob o pretexto de proteger a soberania.

Não é a primeira vez que Orbán desafia a União Europeia. Em 2022, diante da Guerra da Ucrânia, os demais países que compõem a União Europeia adotaram políticas para reduzir a dependência energética da Rússia, em meio também a diversas sanções. Entretanto, o primeiro-ministro húngaro endossou seus laços com Vladimir Putin ao dar continuidade à construção de dois reatores nucleares em parceria com um conglomerado russo e ao reafirmar cooperação relacionada ao gás da Rússia, recebendo um aumento significativo no abastecimento. Mesmo nesse contexto, a União Europeia ainda hesita em suspender os direitos de voto da Hungria, levando a questionamentos sobre a atuação efetiva do bloco perante grandes desavenças.

Historicamente, regimes autoritários recorreram à manipulação cultural das massas como ferramenta de dominação, seguindo caminhos que vão desde a construção de inimigos imaginários até a reescrita de narrativas nacionais. Desde a Alemanha nazista, que queimava livros classificados como “degenerados” ao mesmo tempo em que exaltava uma suposta pureza racial, às ditaduras militares na América latina que perseguiram e censuraram artistas e pensadores com o objetivo de enfrentar a “subversão”. O padrão se repete na promoção de um nacionalismo conservador, que se apoia em distratores, tendo como pilar a perseguição a grupos, para cobrir crises políticas e econômicas.

Na Hungria contemporânea, essa estratégia se materializa na sistemática do “não-padrão”, sejam estes as identidades LGBT, imigrantes ou opositores políticos, enquanto se reduz progressivamente o espaço cívico. Leis como esta, que restringem o direito a protestos e manifestações seguem a mesma lógica autoritária de silenciar vozes dissidentes por meio do esvaziamento institucional da democracia.

O silêncio europeu e a inércia das instituições internacionais

Outro aspecto alarmante reside na postura inerte adotada pela União Europeia diante desse caso. Enquanto a Hungria, signatária da Carta dos Direitos Fundamentais da UE, viola abertamente o Artigo 11, que garante a liberdade de expressão, as sanções, novamente, se limitam a medidas insuficientes diante da gravidade da situação. O silêncio da comunidade internacional diante desses ataques, que não se restringem ao território húngaro, reforça um certo grau de cumplicidade com as práticas.

A Hungria já vinha sendo alvo de processos por descumprimento do Estado de direito, mas a inação demonstra os limites da União Europeia em lidar com governos que desgastam a democracia. O problema é político e estrutural. As ferramentas de pressão institucional, mais uma vez, têm se mostrado fragmentadas e ineficazes diante de líderes populistas que sabem se utilizar do sistema. Urge a necessidade de uma resposta firme e coordenada para que não vejamos a normalização de um modelo autoritário que pode contaminar a Europa no que tange aos direitos da comunidade LGBTQIAP+. A omissão diante da Hungria é um precedente perigoso para outros Estados cujos governos flertam com o retrocesso de direitos sociais.

Essa emenda constitucional aqui discutida não se trata de proteger valores tradicionais ou soberania nacional. Trata-se de poder, controle e da criação deliberada de uma subclasse de cidadãos baseada em preceitos individuais. Enquanto isso, o mundo assiste, quase que de camarote, ao desmonte da democracia e das liberdades que a sustentam, a começar pelos grupos minoritários.

Referências
https://www.theguardian.com/world/2025/apr/14/hungary-poised-to-adopt-constitutional-amendment-to-ban-lgbtq-gatherings

https://brasil.elpais.com/internacional/2021-06-16/ultradireitista-orban-desafia-ue-com-lei-que-proibe-falar-sobre-homossexualidade-nas-escolas-da-hungria.html

https://www.cnnbrasil.com.br/internacional/apesar-de-protestos-presidente-da-hungria-assina-lei-proibindo-parada-lgbt/https://www.reuters.com/world/europe/hungarys-orban-condemns-eu-federalism-lgbtq-offensive-2023-07-22/

https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/afp/2022/08/26/hungria-autoriza-a-construcao-de-dois-reatores-nucleares-com-grupo-russo-rosatom.htm