Entre os terremotos e a necropolítica, o estado de emergência que perdura em Mianmar

Desde o dia 28 de março, Mianmar tem sido o epicentro de terremotos de alta magnitude, que chegaram a atingir 7,7 na Escala Richter. Pela forte intensidade, os tremores também ecoaram em regiões vizinhas, como na Tailândia e na China. Em meio a catástrofes naturais e perdas irreparáveis, o país luta para sobreviver ao estado de emergência, agravado pela necropolítica que perdura em sua história recente.

O maior desastre natural em 100 anos

No dia 28 de março, um terremoto de magnitude 7,7 atingiu Mianmar, a antiga Birmânia, provocando imensa destruição e muitas vítimas. O tremor foi o mais forte já registrado no país, sendo o epicentro localizado nas proximidades da cidade de Mandalay, em uma região central do território nacional. Além da alta magnitude, o abalo sísmico ocorreu a apenas 10 km do solo. Tal profundidade é considerada rasa, o que aumentou os danos causados pelos tremores. Por sua intensidade, o terremoto também afetou regiões da Tailândia, da China e do Vietnã, deixando um rastro de ruínas no Sudeste Asiático. Após o tremor principal, também foram registrados tremores secundários, que chegaram a atingir a magnitude 5,5.

A mídia estatal do país divulgou que o terremoto provocou 3.417 mortes, além de 4.671 pessoas feridas e 214 desaparecidas. A recuperação do desastre e o trabalho das equipes de resgate foram dificultados, ainda, por fortes chuvas fora de época e pelo calor extremo. Agências internacionais, como o Escritório das Nações Unidas para a Coordenação de Assuntos Humanitários (OCHA), relatam a preocupação com a proliferação de epidemias, a exemplo da cólera, entre os sobreviventes desabrigados.

Fonte: G1

Mandalay, antiga capital real de Mianmar, costumava ser repleta de construções monumentais revestidas em ouro. A cidade é considerada um importante centro religioso, lar de mosteiros, templos, pagodes e monumentos budistas. O terremoto devastou a infraestrutura local, além de provocar a morte de muitas vítimas na segunda cidade mais populosa do país. Os escombros agora ocupam as ruas da cidade do ouro, repleta de ruínas após o desabamento de prédios, pontes e estradas. 

Entre os desabrigados, a sensação é de medo de voltar para casa. Para além das perdas materiais, o G1 relata que linhas telefônicas foram interrompidas e algumas regiões ficaram sem eletricidade, aumentando o pânico entre os moradores. Em meio ao cenário já catastrófico, os terremotos permanecem assolando a região, tornando difícil a reconstrução das vidas que foram assoladas.

A conjuntura política

A recuperação pós-terremoto tem sido árdua, devido à precariedade do sistema de saúde e aos conflitos civis desencadeados pelo regime militar. A junta militar controla a TV, o rádio e os jornais locais, além de restringir o acesso à internet. Sendo assim, a dificuldade de acesso à informações sobre o desastre também tem sido um empecilho no envio de ajuda humanitária. 

O atual governo ocupa o poder desde o golpe de Estado ocorrido em 2021, após os militares do país rejeitarem a vitória da Liga Nacional pela Democracia (NDL) nas eleições de novembro de 2020, alegando fraude eleitoral e irregularidades.

O NDL governava o país desde 2015, período em que teve início uma transição democrática após 50 anos de oscilações entre regimes militares e curtos períodos de governo civil. Em meio a conflitos políticos internos e externos devido às acusações de limpeza étnica contra os muçulmanos da etnia rohingya, o segundo mandato do partido nunca chegou a tomar posse. Em fevereiro de 2021, o exército anunciou a tomada do poder após a prisão da líder do NDL, Aung San Suu Kyi, e de outras lideranças políticas relacionadas. Foi decretado estado de emergência por um ano, mas a situação se estende até hoje. 

Desde a década de 60, o exército birmanês possui um histórico de assumir o poder sob o pretexto de um governo provisório, com o objetivo de fortalecer as capacidades estatais, como melhorar a burocracia, pacificar o país tomado por milícias e reduzir a corrupção. Neste viés, os militares se sentem encarregados do estabelecimento da ordem e da paz, vendo os governos civis como incapazes de manter o país unificado.

Apesar dos períodos de regimes democráticos civis, estes são executados sob a influência do exército, que atua como um grupo de pressão e controla parte da burocracia estatal.  Como observado, a construção deste sentimento nacional já dura cinco décadas, constituindo uma ideologia que posiciona o setor de Defesa como intrínseco à política.

Esta questão é um ponto crítico para entender os conflitos internos do país. A antiga Birmânia possui longos entraves envolvendo a fragmentação espacial. O processo de unificação em torno de um Estado-nação tenta conciliar 135 etnias diferentes, como Karen, Kachin, Chin, Bamar e Mon. Tal diversidade tem sido motivo de confrontos, em que muitas minorias étnicas demandam a independência de seus territórios por meio de revoltas e guerrilhas. Portanto, o Estado birmanês sofre há décadas com a instabilidade, devido a diferentes projetos de nação que buscam ser impostos a todo custo. 

No cenário atual, após quatro anos do golpe, os militares controlam menos de um quarto do território nacional. A resistência ao governo é sustentada pela insurgência de grupos pró-democracia e rebeldes étnicos. Como resultado da perda de territórios, a guerra civil entre o governo e a oposição armada se inflama cada vez mais. A ONU afirma que mais de um terço da população birmanesa precisa de ajuda humanitária e 20 mil presos políticos seguem detidos. As violações de direitos humanos se estendem por meio de bombardeios aéreos que destroem vilas, escolas, igrejas e hospitais. 

Para além dos terremotos, a necropolítica

Após o terremoto, o governo militar seguiu bombardeando partes do país controladas por rebeldes. Mesmo as áreas declaradas em estado de emergência, como a região de Sagaing, não foram poupadas de ataques aéreos e terrestres. Segundo a BBC Birmanesa, sete pessoas foram mortas em uma operação realizada em menos de três horas após o terremoto do dia 28 de março. Em meio ao trabalho das equipes de resgate que tentam salvar as vítimas dos desastres naturais, o Estado ataca seu próprio território, utilizando a vantagem em ataques aéreos para derrubar a resistência oferecida por regiões rebeldes. 

Diante de tais políticas, é possível recordar as palavras de Achille Mbembe, que em seu artigo sobre a necropolítica afirma “As guerras da época da globalização, assim, visam forçar o inimigo à submissão, independente das consequências imediatas, efeitos secundários e ‘danos colaterais’ das ações militares” (2016, p. 139). O ataque em momentos de vulnerabilidade após uma das maiores tragédias do país é um exemplo disso, a partir de uma política de Estado que decide quem tem direito a se recuperar ou não – a necropolítica.

Para Mbembe, a necropolítica é o poder de ditar quem pode viver e quem deve morrer. A manutenção da ordem e da autoridade se dá por uma política de segurança, a partir da imposição do uso da força. Sendo assim, o Estado possui o direito de matar, concedido por meio do princípio da soberania. Este direito é exercido com a construção de um inimigo, pautado na ideia de que há uma exceção dentro da sociedade que precisa ser combatida para que a nação alcance a plenitude.

Os principais conflitos políticos em Mianmar atualmente se dão entre o regime militar e o principal grupo de oposição, o Governo de Unidade Nacional (NUG), constituído por uma articulação pró-democracia que conta com integrantes da NDL. As divisões, porém, possuem uma raiz étnica, incitada desde o período colonial. O Estado-nação birmanês é constantemente apontado pelas minorias étnicas como representante do grupo étnico dominante, os bamar, o que gera revoltas por causa de uma constante desconfiança no lado da população, e por sua vez, reações violentas do lado estatal.

A divisão étnica em Mianmar é construída como um marcador social, em que a raça se torna um parâmetro para políticas de morte, ou não. O bombardeio de regiões controladas por rebeldes reforça a noção de zonas de morte ao indicar que o Estado possui uma definição precisa de quem merece se recuperar dos desastres naturais, e quem merece ser alvejado. Os danos colaterais pouco importam, quando o objetivo é demonstrar que o estabelecimento da ordem permanece nas mãos do Estado.

A necropolítica conduzida pelo regime militar parte do pressuposto de que, atacando as áreas rebeldes, a violência no país será reduzida, ao trazer o controle de tais territórios de volta sob o domínio estatal. No entanto, o que se observa é uma política de exterminação do seu próprio povo. 

A crise humanitária iniciada pelo golpe em 2021, e intensificada pelos terremotos, conduz o país a um estado de emergência permanente. Somado a isso, a política interna é permeada por inimizades que, desde a formação do Estado, não conseguem conciliar os diferentes projetos para a nação. O que prevalece, por fim, é a divisão entre “deixar morrer” e os que “deveriam continuar vivendo”, que elimina as possibilidades de harmonização entre diferentes tradições culturais dentro do território nacional.

Referências

https://g1.globo.com/mundo/noticia/2025/03/28/terremoto-atinge-myanmar.ghtml

https://www.bbc.com/portuguese/articles/cm2x80v448yo

https://app.uff.br/riuff/bitstream/handle/1/24875/Disserta%c3%a7%c3%a3o%20Final%20-%20Thayn%c3%a1%20Fernandes.pdf?sequence=1&isAllowed=y

https://gedes-unesp.org/wp-content/uploads/2022/07/Dossie-Obs.-Conflitos-v3-n1-2022-FINAL.pdf#page=7

https://www.bbc.com/portuguese/articles/cm2x80v448yo

https://news.un.org/pt/story/2025/02/1844401

MBEMBE, Achille. Necropolítica. Arte & ensaios, v. 2, n. 32, p. 122-151, 2016. Disponível em: https://www.procomum.org/wp-content/uploads/2019/04/necropolitica.pdf. Acesso em: 22 abr. 2025.