Após dois anos do último encontro, na sexta-feira (11) os líderes do G7 se reuniram em Carbis Bay, Inglaterra, e, dentre outras pautas, a cúpula discutiu a formulação de um plano de enfrentamento para as próximas pandemias. A criação de tal documento será um marco histórico, mas, nas Relações Internacionais, é preciso muito mais para lidar com desafios que pressupõem a cooperação entre as nações.
Ainda em 2016, no livro “Homo Deus: uma breve história do amanhã”, Yuval N. Harari afirmou que, pela primeira vez na história, parte considerável da humanidade já não precisava mais temer à fome, às pestes e às guerras. Tais problemas, apesar de ainda existirem, não seriam mais os principais desafios do dia a dia da espécie humana. O historiador pop israelense, que é autor de outros dois best-sellers – “Sapiens: uma breve história da humanidade” e “21 lições para o século 21” – argumentou, por exemplo, que diferente de épocas passadas e devido aos avanços da ciência, muito mais pessoas estão morrendo por excesso de peso, por doenças não-contagiosas – como doenças cardíacas e câncer – ou mesmo por velhice, do que devido à patógenos capazes de causar pandemias mortais.
O surgimento do novo coronavírus, apesar do que se possa imaginar em uma leitura rápida do argumento de Harari, só confirmou a posição do autor. A despeito dos mais de 175 milhões de casos e das quase 4 milhões de mortes, a pandemia da Covid-19 mostrou que o Homo Sapiens nunca esteve tão cientificamente preparado para lidar com a guerra contra os patógenos. Em outras pandemias, como na peste negra, os cientistas levaram inúmeros anos para descobrir como parar a doença ou mesmo o que a estava causando. Mais recentemente, na luta contra a H1N1, não foi possível o desenvolvimento tão rápido de vacinas. “Em contraste, com a covid-19, demoramos apenas duas semanas para identificar o vírus corretamente e sequenciar seu código genético. Meses depois os cientistas descobriram como reduzir e parar a transmissão da doença. Um ano depois dos primeiros casos, já temos vacinas sendo produzidas em massa”, afirmou Harari1.
Então, por que apesar de todos os avanços o Sars-Cov-2 vitimou tantas pessoas em todo mundo até agora? A resposta do historiador é curta e direta: por conta da má condução política. Segundo ele, “os cientistas nos deram as ferramentas para controlar a pandemia, mas são os políticos que decidem como utilizá-las”2. Essa má condução política envolveu uma série de erros tanto no que tange ao comportamento doméstico de muitos países, como também às condutas adotadas pela comunidade internacional.
Para compreender como essa conjuntura política contribuiu (e, em alguns casos, continua a contribuir) para o avanço mundial da doença e para a catástrofe humanitária de alguns países, é preciso analisar esses erros de forma sistemática. De início, é possível citar a demora da China em comunicar de forma transparente à comunidade internacional sobre a real situação da doença em seu território logo após os primeiros casos. Com o aumento da transmissão global e a chegada do vírus no ocidente, o negacionismo governamental de países como o Reino Unido, os EUA e o Brasil colaborou para o descontrole das infecções e para a criação de novas variantes do vírus. Além disso, é necessário também mencionar a posição isolacionista/nacionalista dos países cujos comportamentos protagonizaram uma verdadeira guerra por insumos, como testes, equipamentos respiratórios e, mais recentemente, vacinas. Por fim, e de modo particular, o esvaziamento estadunidense das instituições internacionais promovido durante o governo Trump enfraqueceu política e financeiramente a Organização Mundial da Saúde, para a qual restou apenas um papel coadjuvante na coordenação das ações à nível internacional. Em resumo, é possível falar em uma verdadeira paralisia coletiva da comunidade internacional fundada majoritariamente na ausência do entendimento de que para proteger-se de uma doença com alta transmissão, todos os Estados deveriam cooperar.
Todavia, a reunião da cúpula do G7 em Carbis Bay, Inglaterra, e a disposição dos líderes em criar um entendimento comum para o enfrentamento das próximas pandemias aparentemente podem ser um passo em direção a um futuro em que erros como os que ocorreram durante todo o ano de 2020 não sejam repetidos. O G7, grupo formado pelos 7 países mais ricos do globo – Canadá, França, Alemanha, Itália, Japão, Reino Unido e EUA -, foi criado em 1970 e reúne metade do PIB mundial, além disso, os posicionamentos do grupo são capazes de ditar tendências e influenciar o debate da política internacional. Nesse sentido, depois de dois anos do último encontro da cúpula, a decisão dos líderes do grupo pela elaboração de um plano para o enfrentamento das próximas pandemias pode ditar os rumos da comunidade internacional no campo da saúde.
A “Declaração de Carbis Bay”, que está para ser assinada, tem o objetivo de prevenir outros desastres humanos e econômicos como os causados pela Covid-19 por meio de três etapas fundamentais: (1) Redução do tempo necessário para desenvolver e licenciar tratamentos, diagnósticos e vacinas para qualquer doença futura de 300 para 100 dias, no máximo; (2) Reforço às redes globais de vigilância e à capacidade de sequenciamento genômico; (3) Apoio à reforma e ao fortalecimento da OMS3. Embora as intenções do grupo evidenciem um compromisso com a ciência e com as instituições internacionais, alguns fatores demonstram que a Declaração, por si, é insuficiente.
O plano do G7 não aborda, por exemplo, a problemática da suspensão das patentes para a produção das vacinas e de seus insumos, pauta defendida pelos EUA e pela França, mas rejeitada pela Alemanha. A derrubada dessas barreiras de propriedade intelectual – que envolve o poderoso lobby da indústria farmacêutica – facilitaria a produção mais rápida de milhões de doses de imunizantes, permitindo aos países pobres e em desenvolvimento um acesso amplo à vacinação4. A ausência dessa questão na Declaração aponta a persistência em um erro básico quando se trata de doenças epidemiológicas com alta capacidade de transmissão: o não-compromisso – ou apenas um compromisso parcial – com a coletividade da espécie. Isso pois, enquanto apenas parte dos países se protegerem e outra parte não, as doenças não serão controladas, uma máxima que deve ser levada em consideração dadas as facilidades de mutação da maior parte dos agentes patológicos e o contexto da globalização socioeconômica em que vivemos.
Outro problema apenas parcialmente tratado no plano discutido pelo G7 se refere ao papel da OMS e da cooperação internacional no combate às pandemias. Apesar de declarar apoio à reforma e ao fortalecimento da instituição, a pandemia da Covid-19 demonstrou que muito mais é necessário quando se trata de ações que precisam de coordenação à nível global. Um relatório elaborado por uma comissão independente a pedido da própria OMS destacou que a Organização falhou ao demorar para elevar a Covid-19 ao nível mais alto de alerta – o que só ocorreu no dia 30 de Janeiro de 20205. Essa demora, motivada em grande parte pela lentidão do Regulamento Sanitário Internacional em tratar as informações, resultou em uma desconfiança e uma inércia por parte de muitos países que escolheram “pagar para ver” a gravidade da doença.
Diante desse e de outros erros, a Comissão fez uma série de recomendações, dentre elas destacam-se, em primeiro lugar, o fortalecimento da autoridade e do financiamento da OMS, incluindo o desenvolvimento de um novo modelo de financiamento para acabar com os fundos exclusivos e aumentar as contribuições dos países-membros. Tratar de alternativas à dependência da OMS em relação aos EUA, por exemplo, é um dos pontos primordiais para pensar uma nova roupagem para a organização, pois a Covid-19 demonstrou que a principal entidade para coordenação da saúde mundial não pode ficar a mercê de governos negacionistas e irresponsáveis, como aconteceu durante a gestão de Trump. Além disso, a OMS deveria ter o poder para investigar surtos rapidamente, com capacidade de publicar informações sem esperar a aprovação de um país-membro, privilegiando uma postura técnica no contexto de possíveis ameaças.
Outra recomendação envolve o desenho de uma Convenção Pandêmica para preencher lacunas nas regras internacionais e para esclarecer as responsabilidades entre os Estados e organizações internacionais. Tal ação facilitaria a coordenação global de obrigações diante das próximas crises e permitiria uma melhor comunicação entre países e o compartilhamento de informações, ações fundamentais para conter a disseminação dos patógenos. Além disso, também ajudaria a identificar Estados que põem em risco a saúde mundial, levando o sensível debate sobre soberania estatal a uma seara em que se discute a sobrevivência da espécie humana, como ocorreu em tratados e convenções anteriores acerca de guerras totais e armamentos de destruição em massa.
Em síntese, para lidar com as próximas pandemias é preciso antes avaliar e repensar as possibilidades e os mecanismos de cooperação que o sistema internacional dispõe, tocando em assuntos sensíveis e garantindo a independência das instituições internacionais que tratam de questões fundamentais para a continuação da espécie. No âmbito doméstico, foi visto que ações políticas firmes e baseadas na ciência evitaram catástrofes como as que ocorreram nos EUA, no Brasil, na Índia e no Reino Unido: Nova Zelândia, Vietnã e Austrália são exemplos de que a pandemia poderia ter sido controlada. Como Harari afirmou, a humanidade já evoluiu cognitivamente e tecnologicamente ao ponto de superar as barreiras científicas para o enfrentamento de ameaças como o coronavírus. São as atitudes políticas, ou mesmo a falta de lideranças políticas, que põem em risco nossos avanços. O encontro do G7 joga luz a esse debate e deixa mais claro que, sim, outras pandemias virão.