Da série “ironias do destino”: quando um governo desastroso em logística deseja privatizar os Correios

Após avançar com a privatização da Eletrobras, o governo Bolsonaro deseja privatizar a empresa de correios e telégrafos brasileira.

Não é segredo para ninguém que o governo Bolsonaro prometeu privatizar o máximo de empresas estatais que conseguisse em quatro anos. O que surpreende é um governo cujo desempenho na logística de compra e distribuição de vacinas tem sido deplorável nutrir o ímpeto do “mercado” em privatizar os Correios em um leilão único.

Obviamente são muitos os defensores das privatizações de modo geral. Geralmente, esses defensores argumentam que a iniciativa privada é mais eficiente e eficaz do que o setor público. Costumam argumentar também que o setor público está afundado em corrupção, sendo as estatais grandes redutos para desvio de verba. Tudo isso é verdade. O setor público é, muitas vezes, ineficiente, ineficaz e corrupto. Entretanto, o mesmo é válido para a iniciativa privada. Quantas vezes já saímos revoltados de um banco privado por recebermos um péssimo atendimento? Quantos de nós não tivemos que passar horas pendurados em uma ligação para esperar atendimento por uma empresa telefônica?

A distinção criada entre “coisa pública” e “coisa privada”, que costumeiramente coloca esta última em uma posição de superioridade, é falaciosa. Nos dois setores existem casos notáveis de ineficiência, ineficácia e corrupção. O problema é que, diferentemente da iniciativa privada, o setor público brasileiro tem que formular políticas para 210 milhões de pessoas, em todas as áreas possíveis e imagináveis. Assim, o que surpreende não é necessariamente o fato de os serviços apresentarem problemas. O que surpreende é como eles continuam a funcionar, mesmo em cenários extremamente precários.

Pensemos no Sistema Único de Saúde (SUS), por exemplo. O SUS é o maior sistema público de saúde do mundo. Da forma como está montado, o SUS se estrutura a partir de dois princípios: integralidade e universalidade. Assim, o SUS busca oferecer serviços de saúde a todos sem qualquer custo por isso e garantir ao ínvidos uma assistência à saúde que transcende a prática curativa, considerando os diferentes níveis de atenção e os contextos social, familiar e cultural em cada indivíduo está inserido.

Dessa forma, o que mais surpreende no SUS é que, apesar de todos os problemas de gestão, o sistema se mantém vivo. O cenário imposto pela pandemia de coronavírus tem mostrado ao país que, apesar dos mandos e desmandos do governo Bolsonaro, o SUS é a principal política pública para salvar vidas em nosso país.

Obviamente os Correios não possuem a mesma função que tem um serviço de saúde público. Entretanto, os Correios representam o braço logístico mais poderoso do Estado brasileiro. Em um país marcado por suas diversidades culturais, econômicas e territoriais, os Correios têm uma missão quase hercúlia: chegar a todos os municípios brasileiros.

Paremos para pensar um minuto. Como parte significativa dos materiais que chegam aos postinhos de saúde de nossas cidades são entregues? Por qual meio o Ministério da Educação realizada a distribuição de livros didáticos? Como as correspondências vindas do Estado brasileiro são entregues aos cidadãos?

Não é preciso pensar muito para chegar à conclusão que a privatização dos Correios traria mais ônus do que bônus para a população brasileira, principalmente àquela parte situada em pequenos municípios. Pese lembrar, não faz muito tempo que a empresa estatal de envio e entrega de correspondências era a única representante da União em determinados municípios!

Os que defendem a privatização dos Correios pouco discutem a função estratégica que a empresa exerce para o país. Convido os leitores a pensarem sobre a seguinte questão: por que um país como os Estados Unidos, que quase sempre abomina as interferências estatais na economia, nunca privatizou a United States Postal Service (USPS) criada em 1775?

Ora, existem razões que transcendem a lógica mercadológica para a manutenção de um serviço postal estruturado em um país. Mas é claro que os defensores do todo poderoso “mercado” argumentarão que os Correios só geram prejuízos para o país ou que não deveriam existir empresas estatais que monopolizassem determinados setores.

Para minar o primeiro argumento basta dizer que, entre 1999 e 2018, os Correios apresentaram lucro em 16 anos. Apenas entre 2013 e 2016 a empresa apresentou prejuízos. Tais prejuízos decorreram, principalmente, dos problemas e fraudes financeiras no fundo de pensão dos funcionários (Postalis).

Ou seja, a invés de buscar recuperar a credibilidade e o poder de operação de uma empresa que possui uma infraestrutura montada para atender os brasileiros, o governo tem optado por entregar o patrimônio material e os trabalhadores qualificados de mãos beijadas ao setor privado. O problema é o que país continuará precisando dos serviços prestados pelos Correios. Mas, nas mãos da iniciativa privada, é muito provável que haverá locais que ficarão desassistidos ou veremos o aumento do preço de determinados serviços.

Quanto ao segundo argumento, ele não é inteiramente verdadeiro desde 2009. Em 2009, o Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) declarou que a Lei 6.538/78, que trata do monopólio dos Correios, está de acordo com a Constituição Federal. Na ocasião, o STF manteve o monopólio da empresa apenas no que diz respeito à emissão de selos e serviços postais de correspondências que contenham informação de interesses específicos do destinatário de qualquer natureza, incluindo a comercial. Em outras palavras, a entrega de cartas pessoais e comerciais, cartões-postais, malotes, faturas de cartões de crédito, talões de cheques, carnês, cobranças de tributos continua a ser exclusividade da estatal. Por outro lado, as empresas privadas ficaram liberadas para entregar correspondências e encomendas em geral.

Ou seja, a reclamação cotidianamente reproduzida de que o que impede o avanço das transportadoras privadas são os Correios é falaciosa. Se a iniciativa privada fosse tão eficiente e eficaz como dizem, em uma década não seria capaz de oferecer serviços de entrega de correspondências e encomendas em geral com preços inferiores aos dos Correios? Mais intrigante ainda é a seguinte questão: se a iniciativa privada é tão incrível como costumam pintar, por que há necessidade de privatizar os Correios?

Não escrevo tudo isso para dizer que os serviços prestados pelo Estado brasileiro são de excelência. Todos nós sabemos que não é bem assim, especialmente nos últimos anos. Escrevo apenas para dizer: melhor termos serviços públicos que, com todas as adversidades, prestam funções essenciais para a população brasileira do que não termos serviço público algum.