A DITADURA É POP (?)

No dia 9 de julho de 2011, o Exército Popular de Libertação do Sudão assinava o tratado de Naivasha, no Quênia, tornando o Sudão do Sul o país mais jovem do mundo. Como fizeram em vários outros processos de colonização pela África, os ingleses dividiram a população em constructos sociais chamados etnias, uma estratégia frutífera caso se busque impedir união nacional e revolta. Uma vez estabelecidas as etnias e seus conflitos, as fracas instituições e os traumas geracionais ficaram a cargo de perpetuá-los. Em 1956 o Sudão ganhou independência, mas as etnias ao sul continuaram a sofrer pela falta de política pública positiva. Eis que a independência do sul trazia consigo esperança.

A luta pela independência foi vencida, mas agora precisava-se construir um país, uma luta diferente. A estratégia concebida, já que apagar constructos sociais já tão arraigados é deveras hercúleo, foi a de fabricar um sistema democrático de proporcional oportunidade entre as etnias, expresso em sua representação política. Descrevendo-o de outra forma, o sistema político do jovem país propunha um presidente da etnia Dinka, e cinco vice-presidentes, que seriam das etnias Nuer (2), Azande, Shilluk e da própria etnia Dinka. A ideia seria dividir o poder de forma que todas as etnias fossem representadas de acordo com o tamanho de suas respectivas populações. 

Os anos foram se passando, e a expectativa de um sistema democrático e justo continuava assim, expectativa. Seu presidente, Salva Kiir Mayardit, continuava no poder desde 2011, centralizando em si, em sua facção política e em sua etnia o poder do país. Em fevereiro, Kiir exonerou o governador Alfred Futuyo e a Ministra da Saúde Yolanda Awel Deng – ambos aliados do vice-presidente Riek Machar -, em clara violação do acordo de paz de 2018.  

A extração de petróleo foi retomada em janeiro, reacendendo a oportunidade de crescimento econômico, mas também reinflamando antigas divisões, já que Kiir supostamente se preparava para centralizar também seus dividendos. Recentemente, Puot Kang Chol – Ministro do Petróleo -, sua família e guarda-costas foram detidos pelo governo Kiir, um movimento que culminou com soldados cercando a casa do vice-presidente Riek Machar, na capital Juba. Ambos Kang e Machar são da etnia Nuer.

As ações do governo são justificadas por Kiir, que alega que o exército branco – uma organização paramilitar Nuer – tomou de seu exército o controle de Nasir – uma das maiores cidades do país. O exército branco deveria ter se unido ao exército nacional, como explicitado no acordo de paz de 2018, mas as negociações nunca continuaram. 

Quando os leitores aprendem sobre o governo Kiir, é fácil perceber nele o aspecto autocrático (ditatorial). Kiir centraliza o poder em si, em sua facção e etnia. Busca cultuar a própria imagem e age de maneira violenta para suprimir oposição. Centraliza a economia e particulariza a máquina do estado. Suas decisões não são pautadas pelo ciclo eleitoral ou vontade pública e geralmente implementadas sem o apoio de tecnocratas, burocratas ou especialistas. Kiir é um claro exemplo de ditador.

Em nossa marcha contra o desconhecido, empregamos por vezes contraposições como “bem-mal”, “feio-bonito”, “esquerda-direita”, ou “ditadura-democracia”. Essas simplificações da realidade têm função didática, fazendo sentido de um mundo confuso. O que se entende, mensura-se, antevê-se, molda-se. Naturais da mente humana e sua busca por encontrar padrões e economizar energia e desconforto, os atalhos mentais – essas simplificações, também chamadas heurísticas – fazem do desconhecido algo conhecido.

Ainda sim, por vezes, as heurísticas produzem erros de interpretação, já que a realidade nem sempre se conforma dentro de contraposições tão bem delineadas. Os livros da nobelista Han Kang são exemplos de que a beleza pode nascer de algo feio, como o sofrimento, por exemplo. Em outra instância, partidos de “centro” ou “centro-esquerda” demonstram que há mais opções que somente “direita-esquerda”. Como propôs Shakespeare, “há mais coisas no céu e na terra do que sonha a nossa vã filosofia”.

Kiir é um exemplo clássico de ditador que se enquadra facilmente em nossas heurísticas. Mas conseguiríamos perceber a ameaça ditatorial se viesse velada? E se um líder eleito de forma democrática começasse um culto a sua imagem – talvez como o herói da nação, aquele que vai livrar o povo de um sistema apodrecido? E se esse líder questionasse aberta e publicamente o papel das mídias independentes, colocando em cheque sua legitimidade, dificultando seu trabalho e até as ameaçando, mas sem encerrar suas atividades? E se esse líder vendesse a ideia de que as mazelas do país são culpa “deles”, do outro que precisa ser perseguido, talvez metralhado até, mas sem propor o unipartidarismo? E se propusesse que perseguir minorias é um ato democrático, já que “em democracias a minoria se curva a maioria” (algo que qualquer cientista político de respeito entende como uma corrupção do sistema democrático, que deve proteger os vulneráveis)?

Seriam possíveis vários outros exemplos, mas a ideia é clara. Quando líderes democraticamente eleitos esvaziam o sentido e o poder das instituições sem destruí-las e mantém uma democracia formal, erodindo suas aplicações reais, podem passar despercebidos como ditadores. A estratégia é refinada, mas vem se tornando algo mais e mais comum.

Em recente relatório da “Varieties of Democracy” (V-Dem), um instituto de pesquisa que monitora o estado da democracia no mundo, quase ¾ da população mundial vive sob regimes autocráticos. Os relatórios da V-Dem são compostos por contribuições de quase 4 mil especialistas, que analisam 600 atributos em cada país, e se concluiu que, pela primeira vez desde 1978, há mais autocracias que democracias no mundo. Em outras palavras, a taxa da queda democrática é de 67%, um número preocupante.

Uma razão pode ser que na heurística que contempla a contraposição “democracia-ditadura” não há espaço para os vários tipos de democracia e ditadura que existem. Como propõe Geddes, Wright, Kendall-Taylor e Frantz – especialistas em regimes ditatoriais – o período da Guerra Fria foi marcado pela dicotomia ditatorial “partidos comunistas-governos militares”. Uma vez que o muro de Berlim caiu, e com ele o comunismo, as ditaduras passaram por um período pós-ideológico. É nesse período pós-ideológico que muitas ditaduras personalistas – atualmente o tipo mais comum e crescente de ditadura – floresceram.

Ditaduras personalistas são aquelas como a de Kiir, do tipo que é clara e inequivocamente ditatorial. Esse tipo contrasta com ditaduras monárquicas, oligárquicas (em que o poder emana não do povo, mas de uma elite, geralmente de forma hereditária), militares (em que o poder emana das forças armadas), partidária (em que o poder é concentrado não por um indivíduo, mas pelo partido), entre outras. Nem todas tão claramente ditatoriais, afinal de contas, se há “turnover” (o termo técnico para turnos eleitorais entre diferentes governantes), eleições, três poderes, mídia e etc, então como podem não ser democracia?

Essa é a pergunta produzida pela heurística “democracia-ditadura”. Mas em um período pós-ideológico, o “turnover” pode ser entre membros do mesmo partido, geralmente pré-aprovados pelos líderes anteriores, ou mesmo de fachada. Esse é o caso na Rússia de Putin, que por vezes é eleito Primeiro-Ministro, e por vezes presidente, dando espaço para outros candidatos sem de fato deixar de governar a Rússia. Foi o caso da ditadura militar brasileira, com 5 ditadores alternando o poder. As eleições podem ser não-livres, ou não-confiáveis, como supostamente no caso da Sérvia de Vučić, em que recontagens e alegações de fraude por parte de veículos de mídia confiáveis são comuns. Os três poderes podem ser cooptados pelo líder, existindo apenas no papel, como no caso da China comunista. A mídia pode ser centralizada e cooptada pelo governo, também como no caso da China comunista.

Várias ditaduras, mesmo as personalistas, começaram com eleições democráticas e livres. Seus líderes foram aos poucos esvaziando suas instituições, instaurando a mentalidade “nós contra eles”, cooptando os poderes, centralizando as decisões em si, e tornando aos poucos suas democracias mais ditatoriais até que finalmente não eram mais democracias. Alguns países são mais suscetíveis à autocratização – se tornarem ditaduras aos poucos – que outros. Países com um passado ditatorial recente – como o Brasil ou as ex-repúblicas soviéticas – tendem a ter ainda diversos “resquícios institucionais” dessas ditaduras, que podem ser usados para sua autocratização. Países com muitos partidos e/ou um sistema partidário fragmentado costumam ser mais facilmente autocratizados. Na verdade, é comum que ditadores emerjam de partidos recentemente criados, geralmente completamente novos ou gerados da união de antigos partidos já existentes, como é o caso do “Rússia Unida” de Putin ou do “Movimento Quinta República” de Hugo Chávez. Por fim, países polarizados (“nós contra eles”) são também mais fáceis de se autocratizar.

É nesse ponto que duas respostas costumam aparecer: a primeira é perceber que o Brasil se enquadra em praticamente todos os requisitos de uma democracia suscetível à autocratização, e portanto aceitá-la ao propor que, apesar de limitar as liberdades individuais, ditaduras são seguras, e em locais como o Sudão do Sul ou o Brasil, com altos índices de criminalidade, segurança é um bem público de valor. A segunda é perceber que o Brasil se enquadra em praticamente todos os requisitos de uma democracia suscetível à autocratização e se perguntar como frear esse processo, talvez até pará-lo. Enderecemo-las!

Ditaduras são mais seguras? 

A nível internacional, as ditaduras tendem a executar uma política internacional mais agressiva e arriscada. São mais prováveis de investir em armas nucleares – o que alertaria os países vizinhos e as grandes potências. São mais prováveis de atacar e/ou lutar contra democracias, ou mesmo de iniciar conflitos inter-estatais. A nível econômico, a vasta maioria das ditaduras apresenta desenvolvimento sub-par se comparado com democracias – preços mais altos, menos empregos, etc. Tendem a ter hierarquias mais claras – e desigualdade social causa violência. Ditadores costumam valorizar lealdade acima de competência – ou não se mantêm no poder. Por isso, as ditaduras tendem a ser mais corruptas e a terem informações menos acuradas. A falta de freios e contrapesos facilita uma política mais errática e incerta, o que desestabiliza mercados, investimentos e aliados militares e políticos. O próprio exemplo do Sudão do Sul já indica que ditaduras não são mais seguras, já que o país ocupa a posição 161° de 163 países no “Global Peace Index”, que mede a insegurança de países. As últimas posições são ocupadas pelo Sudão e Iêmen, que também sofrem com regimes autoritários.     

Se alguma ditadura ou democracia em autocratização parece segura, provavelmente é uma visão fabricada ou, por vezes, somente falta de transparência. Tratemos aqui de um outro exemplo comumente dado de democracia em autocratização que aparenta segurança: El Salvador.

Ainda em 2024, o autoproclamado “ditador mais cool do mundo”, Nayib Bukele, atingiu o que se chama de super maioria no congresso de El Salvador. Bukele controla 54 dos 60 assentos da casa, o que significa que praticamente qualquer projeto de lei de seu interesse vai se transformar em lei. El Salvador, assim como vários dos outros pequenos estados na América Central, era assolado há décadas por conflitos entre gangues. Uma vez no governo, Bukele reduziu os homicídios em até 50%. Empoderou a polícia de forma inusitada no país. Em um primeiro momento, Bukele parece ter criado uma ditadura segura. Mas somente em um primeiro momento.

Os encarceramentos promovidos por Bukele negavam aos encarcerados direitos constitucionais. Milhares de inocentes foram presos, com inúmeros relatos de torturas e mortes na prisão. O país encarcerou 2% da população, por volta de 10% da população jovem masculina do país. A jornalista da Folha de São Paulo, Ana Luiza Albuquerque, conta o caso do taxista salvadorenho José Antonio, preso há anos pela polícia de Bukele, com acusações não provadas, sem possível contato com a família, que necessita de seu trabalho como taxista para sustento.

Em 2020, o El Faro, jornal Salvadorenho, encontrou evidências – que posteriormente foram confirmadas por uma investigação da Procuradoria-Geral da República, de que Bukele havia feito acordo com a MS-13 (possivelmente a maior gangue do país). Membros do governo Bukele se encontraram com membros da MS-13 encarcerados, e lá delinearam os contornos do acordo entre governo e facção criminosa. Da parte do governo, seriam benefícios como a transferência de presos muito violentos, a venda de pizza nas prisões e incentivos monetários – dinheiro – para a MS-13 e a Barrio 18 (outra gangue do país). Em contraparte, a MS-13 apoiaria o “Nuevas Ideas”, o partido de Bukele, e manteria o conflito entre gangues sob controle.

Apesar da imoralidade e ilegalidade desses atos, há ainda aqueles que o apoiam, propondo o conceito de “Dirty Hands”. O conceito famoso na Ciência Política, “Dirty Hands” propõe que, quando se representa um grande número de pessoas – como no caso de um governante – a moralidade deve ser suspensa, no mínimo, ou até que há um sistema moral distinto para julgar governantes, já que medidas consideradas “imorais” ou até “ilegais” podem ser necessárias. O detalhe é que as medidas do governo Bukele não foram apenas ilegais ou imorais, mas também não foram efetivas.

Bukele diminuiu drasticamente os números de homicídios reportados no país, mas não por muito tempo. Entre os dias 25 e 27 de março de 2022, a MS-13 matou 87 pessoas, a maioria sem vínculo com nenhuma gangue. O ataque foi uma represália à polícia, que encarcerou líderes da MS-13 e não respeitou seu ultimato de liberá-los em 72 horas. Ainda no dia 27, o congresso aprovou o estado de exceção, dando poderes irrestritos à Bukele.     

Segurança é um produto de instituições fortes e equidade social e econômica. Segurança se produz com um estado de direito, não sem ele. Lidemos então com a segunda resposta, que percebe que o Brasil se enquadra em praticamente todos os requisitos de uma democracia suscetível à autocratização e se pergunta como frear esse processo.

Como frear a autocratização de democracias?  

A primeira e mais óbvia ação é votar, e incentivar que outros votem, mesmo aqueles que substancialmente discordam de você. Votar é garantir que os seus interesses serão representados, já que o objetivo primário de todo líder é se manter no poder, e para tanto o líder precisa entregar algo para aqueles que o apoiam. Se um grupo específico é grande e ativo o suficiente para manter o líder no poder, não há razão para que o líder gaste seus recursos limitados com outros grupos quando apenas aquele um já é o suficiente para mantê-lo no poder. É por isso, por exemplo, que o acordo UE-Mercosul encontra dificuldades, já que os produtores rurais na França votam em peso, e esses não querem competir com os produtos agrícolas produzidos no Mercosul. Por isso vote, e se organize para que os grupos dos quais você pertence também votem. Se diversos grupos com interesses variados forem vocais e ativos nas eleições, então os líderes precisarão atender a diversos grupos – facilitando a democracia. 

Quando votar, faça questão de excluir de sua cédula todo e qualquer candidato que coloque em xeque o papel das mídias livres, que ataque jornalistas, que coloque em dúvida o processo eleitoral sem provas, que fomente polarização política, que relativize a importância da democracia, que instigue o desmantelamento ou esvaziamento dos 3 poderes ou que enalteça um passado ditatorial. Em outras palavras, como descreve Karl Popper, a democracia tolera tudo, menos o intolerante.

Consuma e compartilhe informações de fontes confiáveis. No mundo em que as inteligências artificiais são tão desenvolvidas a ponto de criar vídeos e fotos falsas de forma convincente, se informar por mídias sociais como WhatsApp, Facebook, Instagram ou X (antigo Twitter) é muito perigoso. Priorize informações vindas de locais confiáveis, como jornais nacionais e internacionais. Caso receba informações interessantes de locais pouco confiáveis, verifique a data da publicação (já que informações reais podem ser tiradas de contexto) e pesquise essa informação em outras fontes. Se não puder ser encontrada, possivelmente é falsa. Algumas plataformas online ajudam a verificar a informação, como a plataforma LUPA e a AOS FATOS.

Aquele que discorda de você geralmente tem pontos importantes e que precisam ser ouvidos. Política não é e não pode ser como torcer para um time de futebol. Portanto, caso prefira um candidato ou partido específico, seja crítico ao analisar suas ações, propostas e discursos, assim como o é com seus opositores. Pondere sobre as críticas que são feitas, e critique também caso “seu candidato” faça algo que não lhe pareça bom.

Infelizmente, muito do que se pode fazer para frear a autocratização de uma democracia é coletivo e não individual. Ainda sim, você e eu temos responsabilidade cívica, e não poder resolver tudo não significa não tentar resolver nada.    

Referências:

https://www.dw.com/en/south-sudan-can-oil-production-save-the-economy/a-71345060

https://www.gzeromedia.com/news/watching/south-sudan-on-brink-of-civil-war-as-senior-officials-arrests-inflame-ethnic-tensions

https://www.researchgate.net/publication/272010840_Autocratic_Breakdown_and_Regime_Transitions_A_New_Data_Set

https://www.visionofhumanity.org/maps/?gad_source=1&gclid=Cj0KCQjwv_m-BhC4ARIsAIqNeBscZSi11MMZxRoO_elADXxWX3PwEnDyX0KN7lT0pAB_29zM0j30-hgaAlGeEALw_wcB#/

https://www.v-dem.net/publications/democracy-reports

https://www.google.com/amp/s/www1.folha.uol.com.br/amp/podcasts/2024/03/autoritarios-como-bukele-promoveu-violacoes-de-direitos-humanos-em-el-salvador.shtml

https://www.gzeromedia.com/news/watching/el-salvadors-president-gets-super-powers

https://elfaro.net/es/202009/el_salvador/24781/Gobierno-de-Bukele-lleva-un-a%C3%B1o-negociando-con-la-MS-13-reducci%C3%B3n-de-homicidios-y-apoyo-electoral.htm

https://elfaro.net/en/202210/el_salvador/26419/During-March-Massacre-El-Salvador-Government-Took-Four-MS-13-Leaders-Out-of-Prison.htm

https://lupa.uol.com.br

https://www.aosfatos.org