Nos últimos meses, os anúncios na mídia, por parte de jornalistas, políticos ou analistas, sobre a possibilidade, o começo e mesmo o fato de já estarmos vivendo uma Terceira Guerra Mundial fizeram o termo virar algo normal, quotidiano e, até, inevitável. Um século de paz sistêmica parece colocar alguns ânimos à flor da pele e banalizar o significado de um conflito global.
Nos últimos dois anos, uma guerra, iniciada por um inimigo do Ocidente, tem tomado as manchetes de jornais ao redor do mundo. Desde o ano passado, mais uma guerra, desta vez levada a cabo por um aliado do Ocidente, passou a dividir opiniões nesta parte do hemisfério global. Com a multiplicação de atores envolvidos em ambos os conflitos e com um número crescente, “guerra” passa a ser um tema corriqueiro nas redações de jornais, de debates políticos e mesmo de discussões entre conhecidos.
Não só é normal que seja noticiado, como relevante para que a população saiba daquilo que está acontecendo. Em especial no Brasil, parece que chegou o momento dos analistas de Relações Internacionais e Ciência Política. Cada vez mais ouvem-se análises de pesquisadoras e pesquisadores que se debruçam sobre os temas e conhecem as miúças de conflitos e os paralelos históricos. Nesse sentido, pode-se dizer que, aqueles que de fato têm interesse em informar-se sobre os conflitos que acontecem pelo mundo, têm a possibilidade de obter informações e análises com propriedade sobre esses assuntos.
No entanto, o grande mal da Era da Informação é o superlativo que ela traz consigo. Nunca na história da humanidade houve tanto acesso a tantas informações como hoje. Qualquer pessoa com acesso à internet consegue “informar-se” sobre qualquer assunto que queira. Para a maioria, porém, essa “informação” não só não é de qualidade, como, muitas vezes, ela foge (bastante) da realidade. E isso não se limita apenas à fonte utilizada. Muito se culpa as redes sociais (dentre as quais o TikTok tem sido um bode expiatório de vários atores políticos e países), mas episódios como a informação errônea sobre a cotação do Dólar x Real1, que causou furor em redes sociais, mostra como mesmo fontes ditas como confiáveis podem levar ao erro (seja intencional ou não). Jornais tradicionais, tidos por muitos como o ator por excelência de onde se pode obter informações de qualidade, têm cada vez mais deixado a objetividade de lado em busca de mais cliques para financiar suas redações.
É claro que a maior parte das fontes pode nos dar informações valiosas e úteis para que possamos nos inteirar dos fatos. Mas, em meio a cenários cada vez mais complexos e à polarização de opiniões, a interpretação das pessoas tem as deixado cada vez mais ou apáticas ou extremadas quanto às situações que lhes são apresentadas. Quanto mais distante a percepção das pessoas (e que se incluam não só “pessoas comuns”, mas também tomadores de decisão e formadores de opinião), mais perigosa se tornam as ideias que elas propagam ou ajudam a propagar.
Em um artigo de 2014 para a revista Foreign Affairs, o teórico de Relações Internacionais John Mearsheimer argumentou que a anexação da Crimeia pela Rússia não foi apenas culpa de Moscou, mas também de um Ocidente cada vez mais baseado em princípios “idealistas”2. Sendo um dos grandes defensores do chamado “realismo político”, a análise de Mearsheimer se resume à ideia de que: após o fim da Guerra Fria, a OTAN, sem propósito (já que foi criada para contrabalancear a União Soviética, que não existe mais), continuou avançando rumo à fronteira russa. Isso teria feito com que Moscou temesse por sua própria soberania, causando uma resposta hostil à possibilidade de “ocidentalização” (ou seja, entrada na OTAN e União Europeia) da Ucrânia. A análise trazida pelo professor foi rapidamente contraposta por diversos pontos feitos no artigo e na palestra que avançam esse argumento3, mas é sobretudo pelo fato de ele parecer eximir completamente Putin de qualquer culpa (ou ambição pessoal) sobre a invasão ilegítima da Ucrânia, enquanto se encontra com líderes pró-Kremlin como Victor Orban da Hungria4, que as análises de Mearsheimer tendem a ser consideradas (antes como agora) defesas de uma política revisionista russa.
Não devem restar dúvidas de que a guerra da Rússia na Ucrânia é uma invasão ilegítima de um território soberano que não pode ser justificada sob qualquer prisma do direito internacional. Não obstante, o argumento levantado por Mearsheimer não parece (de todo) inútil. Naquilo que tange à talvez falta de percepção de determinados líderes quanto às consequências de suas ações, o professor parece estar certo. Peguemos o exemplo da guerra em Gaza.
Assim como a guerra na Ucrânia, o conflito que já leva um ano em Gaza também pode ter início em diferentes momentos da história, a depender do referencial utilizado. No caso ucraniano, há quem diga que a guerra, na verdade, começou em 2014, quando a Crimeia foi anexada à Federação Russa. No caso palestino, pode-se voltar à própria fundação do estado de Israel em 1948. Não é de todo errado afirmar que esses conflitos já duram bem mais do que o que estamos acostumados a ler nos noticiários.
A reação de líderes ocidentais, porém, à guerra de Israel em Gaza é completamente diferente daquela no contexto da Ucrânia. É claro que o início deste (episódio mais recente do) conflito no Oriente Médio se deu a partir de um ataque terrorista brutal contra a população civil israelense no dia 7 de outubro de 2023, com a tomada de reféns que, até a atualidade, continuam sem perspectiva de volta (se ainda estiverem vivos). No entanto, a brutalidade com a qual o estado israelense tem dizimado a Faixa de Gaza só passou a ser (levemente) criticada após atingirem-se mais de dezenas de milhares de civis palestinos mortos. Enquanto os países ocidentais acusam veementemente (e de maneira correta) a desumanização da população civil ucraniana levada a cabo por Moscou, a maioria desses mesmos países defende a mesmíssima posição tomada pelo governo de Tel Aviv.
Esses dois pesos e duas medidas não foram sem consequência. Países do sul global passaram a apontar a evidente distinção feita por esses países que constantemente tentam ensiná-los sobre conceitos de democracia, paz e humanidade. Efeitos mais práticos foram vistos nas eleições americanas, onde o conflito em Gaza foi um tópico importante de (des)mobilização de eleitores no campo democrata de Kamala Harris5. Mesmo o próprio presidente americano, Joe Biden, não parece ter conseguido angariar nenhum ponto positivo com o eleitorado doméstico em sua atuação no conflito israelense, pelo contrário, sendo muitas vezes taxado como “humilhado” pelo premiê israelense6, 7. A posição de defesa de Tel Aviv por Washington é clara, dado seus interesses na região. A forma como o governo americano (e seus presidenciáveis) lidou com a questão, sobretudo visando o público doméstico, nem tanto.
Por mais que muitos gostem de acreditar que políticos fazem parte de outra realidade e só agem seguindo aquilo que bem entendem, a realidade, mais uma vez, não condiz tanto com esse quadro. Políticos são um reflexo de várias partes das sociedades de onde eles surgem, sejam eles democráticos ou autocráticos. As visões que eles têm sobre o mundo são também criadas em meio à realidade em que vivem e se baseiam nos preceitos que permeiam o pensamento geral da população.
A forma como a sociedade alemã (população, mídia e política) age em relação à tragédia em Gaza, focando tão somente no terrorismo do 7 de outubro, enquanto ofuscam a matança generalizada de civis, dentre os quais a maioria é de crianças, é facilmente explicável por sua história de culpa. A posição tomada, por outro lado, pela África do Sul contra o sistema de Apartheid instituído e mantido por Tel Aviv na Corte Internacional também se explica por sua história. O que se percebe, logo, é que uma percepção errônea na sociedade pode acarretar um movimento social e político de grande escala que, por sua vez, pode gerar consequências globais de larguíssima escala.
Na pandemia, viu-se o poder que a convicção, muitas vezes errada, pode ter. Informações erradas, ou diretamente falsas, sobre tratamentos contra a COVID-19 elevaram o número de pessoas que tomaram antibióticos (que matam bactérias) para prevenir ou se tratar de infecções da doença (causada por um vírus)8. Um estudo, observando os motivos por trás de atitudes antivacina nos EUA, mostrou que fatores sociais, mas também de consumo de mídia, tinham um efeito sobre a opinião de indivíduos em relação à vacinação9.
Em um contexto político, é interessante observar como a convicção de muitos foge da realidade. Em uma pesquisa realizada na Alemanha, antes das eleições nos EUA, mais de 60% dos entrevistados acreditavam que quem ganharia as eleições seria a candidata democrata Kamala Harris10, por mais que as pesquisas mostrassem sempre que a disputa estava acirrada e, em muitos casos, isso poderia beneficiar Donald Trump. Em muitos jornais, mesmo no dia da eleição, falava-se de números muito próximos, mas também de uma leve vantagem para Harris.
Em entrevista recente à revista Spiegel, a ex-chanceler alemã Angela Merkel foi confrontada pela sua posição contra a entrada imediata da Ucrânia e da Geórgia na OTAN em 2008. Ela defendeu um argumento similar àquele levantado pelo professor Mearsheimer (de que a Rússia poderia observar isso como algo “perigoso” para sua soberania e agir militarmente). A jornalista, por sua vez, retorna para Merkel acusando-a de ser uma das responsáveis pelo conflito, já que teria barrado a Ucrânia à época. O entendimento da jornalista é que, caso a Alemanha não tivesse barrado Kyiv de entrar em 2008, a Rússia jamais teria atacado o país. Merkel rejeita essa hipótese, mas concede que esse também é um pensamento dividido pelo próprio presidente ucraniano, Volodimir Zelenskyy.
Se futurologia não é algo muito bem apreciado entre cientistas sociais, tampouco seria o determinismo de que a realidade teria sido diferente, caso os fatos tivessem sido diferentes. Conhecendo o estado atual das coisas, seria mais provável que o conflito iniciado em 2014 ou 2022 tivesse acontecido antes, não que ele não eclodiria. Isso porque, há um exemplo claro disso: meses depois da cúpula da OTAN em 2008, Putin invadiu a Geórgia (bem menor que a Ucrânia).
Esses episódios mostram como a visão de mundo adotada impacta na forma como os indivíduos confrontam os mais complexos cenários que lhes são postos à frente. Mais ainda, quando aqueles que adotam essas realidades, distante dos fatos, são pessoas de influência (seja midiática ou política), o movimento que elas ajudam a gerar não pode ser ignorado.
No início de 2024, o ministro alemão da defesa afirmou categoricamente em uma entrevista que a Rússia poderia atacar a OTAN dentro dos próximos cinco anos11. A Suécia aparece novamente nas manchetes, não por sua entrada a percalços na OTAN, mas por alertar sua população a “estar preparada psicologicamente para a guerra” e distribuir novos panfletos informando a população como agir em caso de guerra12, 13.
Na última semana, a seção europeia do jornal “POLITICO” publicou uma chamada com o título “A Terceira Guerra Mundial já começou, afirma ex-general ucraniano”14. O jornal britânico Sky News discutiu o debate sobre um terceiro conflito mundial, após a permissão dada pelos EUA, França e Grã-Bretanha à Ucrânia para usar mísseis de longo alcance15. O argumento direto e contrário à trombeta do apocalipse nuclear é o de que a reação de Putin a essa permissão (incluir na doutrina nuclear russa a possibilidade de responder a esses mísseis com bombas nucleares) não passaria de um blefe16. Enquanto nem todos parecem acreditar nessa visão das coisas17, o problema da percepção social (público, mídia e política) se faz ainda mais relevante.
Se a percepção geral vendida (e adotada) por países ocidentais for a de que ameaças russas são vazias, isso pode fazer com que haja uma pressão ou vontade para agir de maneira mais veemente no conflito. Por outro lado, se essas hipóteses não forem partilhadas por outro, mas também não se agir para evitá-las, o resultado pode-se produzir de toda forma. Esses dos cenários se veem nos seguintes exemplos: enquanto americanos, franceses e britânicos enviam e permitem o uso de mísseis pelos ucranianos em território russo, os alemães se restringem e fixam a posição de “não atores” no conflito, rejeitando o envio desses armamentos18.
Um dos grandes perigos da propagação de uma nova guerra mundial é a de que ela seja uma profecia autorrealizável. Enquanto o debate angaria participantes entre atores da mídia e da política, ele não parece ganhar muito terreno entre a população. Em uma pesquisa realizada em maio deste ano em 14 países europeus, a maioria evidente dos entrevistados mostrou-se contra o envio de tropas nacionais para lutar na Ucrânia19. Por outro lado, entre um terço e pouco mais de dois terços de entrevistados em países como Estônia, Grã-Bretanha e Suécia, parecem não ver problema em seus governos enviarem tropas para realizar outros serviços em solo ucraniano durante o conflito. Esses dados levam à conclusão de que, por mais que a luta direta com russos seja vista com temor, o fato de ter soldados de membros da OTAN na Ucrânia não é encarado como algo que possa desencadear uma reação russa. No entanto, esse simples fato já foi mencionado por Putin como sendo uma “linha vermelha” para o Kremlin20.
Com isso, percebe-se o quanto a percepção, muito mais que os fatos em si, é essencial para a tomada de decisão que pode levar a escaladas de um conflito mundial. É ainda relevante lembrar que, por mais que o tópico mais abordado neste texto tenha sido a guerra na Ucrânia, um conflito de magnitude global pode não ter seu pontapé inicial nas fronteiras do rio Dnipro.
Há atualmente muitas frentes abertas que podem levar a um conflito generalizado. A guerra de Israel em Gaza, já estendida ao Líbano, tampouco dá sinais de arrefecimento. Outro vulcão, atualmente adormecido, se encontra na Ásia, mais especificamente no Pacífico, com o Mar do Sul da China e a ilha de Taiwan. A região já havia sido um dos pontos focais do primeiro mandato de Trump entre 2016-2020. Agora, análises veem um segundo mandato de Trump como incerto para a região21, 22, 23. A própria próxima presidência americana será um desafio em várias frentes.
Em suma, o contexto mundial aponta para um período de hostilidades, extremismos, polarização e “realidades paralelas”, uma mistura que propicia um cenário bélico. Não obstante, não se deve acreditar que esse é o único caminho inevitável a se seguir. Tomar esta posição é, para além de derrotista, perigoso, pois engendra justamente o oposto daquilo que se pode querer evitar.
1 – https://www.reuters.com/fact-check/portugues/HU5MOXRQEJJCJJLAJGFWWZSBUE-2024-11-08/
2 – https://www.mearsheimer.com/wp-content/uploads/2019/06/Why-the-Ukraine-Crisis-Is.pdf
4 – https://www.newyorker.com/news/q-and-a/john-mearsheimer-on-putins-ambitions-after-nine-months-of-war
5 – https://www.bbc.com/news/world-us-canada-68409546
6 – https://newrepublic.com/article/181406/netanyahu-humiliating-biden-israel-hamas-negotiations
7 – https://www.theguardian.com/commentisfree/2024/oct/17/netanyahu-weapons-biden
9 – https://pmc.ncbi.nlm.nih.gov/articles/PMC9228411/
13 – https://www.bbc.com/news/articles/cjr4zwj2lgdo
14 – https://www.politico.eu/article/ww3-officially-begun-ukraine-ex-top-general-valery-zaluzhny/
15 – https://news.sky.com/story/why-is-there-talk-of-world-war-three-13256716
16 – https://www.politico.eu/article/putins-bluffing-on-nukes-says-top-nato-official/
18 – https://www.dw.com/de/scholz-keine-taurus-für-die-ukraine/a-70812610
20 – https://www.politico.eu/article/vladimir-putin-new-speech-ukraine-war-transnistria-nato/
21 – https://foreignpolicy.com/2024/11/20/trump-southeast-asia-china-foreign-policy-security-strategy/
22 – https://thediplomat.com/2024/11/trumps-return-and-the-future-of-the-taiwan-strait-conflict/