Do estágio do fascismo atual: o fim dos apitos de cachorro

No estágio atual da política mundial, a ultradireita já não mais esconde sua veneração pelo passado fascista, mas o saúda com o apoio de massas (assim como no passado).

2025 começa com um forte impulso para a chamada “ultradireita” mundial. Ontem, Donald Trump tomou posse para seu segundo mandato à frente da Casa Branca. Durante as festividades da posse, tanto suas primeiras medidas quanto gestos de aliados (agora em cargos governamentais) já fizeram alusão direta à política ultradireitista da primeira metade do século XX que, incrivelmente, logrou não só sobreviver a quase um século de letramento antifascista, mas reobter o apoio das massas (sem as quais o movimento não é possível).

Enquanto os EUA, sendo (ainda) a maior economia e potência militar mundial, ditam várias tendências políticas ao redor do globo, o país não está sendo o precursor de um movimento global, mas apenas um dos locais onde ele está se desenvolvendo. Semelhante à “internacional comunista”, a “internacional ultradireitista” (como poderíamos chamar esse movimento) tem se articulado nos últimos anos e logrado resultados positivos nas políticas de diversos países ocidentais, onde, até então, os princípios de democracia, tolerância e igualdade haviam guiado as ideologias nacionais desde o pós-Segunda Guerra Mundial.

Dado o histórico dos movimentos organizados de extrema-esquerda, como a própria internacional comunista se coloca como exemplo, políticos ultradireitistas passaram anos “denunciando” a formação de uma coalizão internacional de uma “elite esquerdista” que estaria influenciando a política mundial, tanto pelo viés político (pelo qual, qualquer partido, político ou agrupamento desta sorte que pregasse as bandeiras ocidentais de democracia, igualdade e tolerância, era taxado como “globalista”) quanto pelo viés econômico (pelo qual milionários filantrópicos estariam “controlando suas marionetes” para avançar suas agendas “esquerdistas”).

Ora, bandeiras que pedem pela maior participação popular (igualitária), tolerância, paz e igualdade são tão velhas quanto as revoluções burguesas dos séculos XVII em diante. Naquele momento da história, alguns povos na Europa começavam a dar um “basta” no controle absolutista das velhas monarquias e exigiam uma participação na política. Assim, surgirão os primeiros vestígios do que daria nascimento, mais tarde, a algo parecido com o que temos nos sistemas democráticos mais atuais. Muito desenvolvimento (e percalços) teve que ocorrer para chegarmos a algo que fosse mais inclusivo, sendo que, ainda hoje, deve-se lutar para a inclusão da maior parte de uma população local, em vários territórios, para uma efetiva participação política e social. Prestemos atenção em um breve resumo da história.

Isso também, porque o “basta” dessas revoluções, por mais que pregasse uma participação política e influência de outros grupos que não apenas a nobreza (e o clero), estava mais associado à inclusão das elites econômicas nos negócios do Estado. Igualdade não deveria ser delegada a todos, mas a mais um dos círculos influentes da sociedade. É assim que, por mais que necessárias para chegarmos onde chegamos, essas revoluções ainda perpetravam certos “vícios” societais (como o autoritarismo) que estavam aquém dos ideais pregados pelo Ocidente na atualidade recente.

Com o tempo, porém, igualdade e tolerância foram tornando-se mais amplas, abrangendo o grupo mais largo da população dos países, fundando (de maneira resumida) o que chamamos de “democracia liberal”, onde o poder emana do povo, mas a lei prepondera para protegê-lo da tirania das massas.

Interessante notar que, desde o primeiro momento em que se iniciou um grito maior por “igualdade”, advindo de grupos que não a nobreza e o clero, há movimentos contrários que, por um lado, tentam deslegitimar essas bandeiras e, por outro, atuam para impedir que elas se consolidem. Assim como o grupo de pessoas em uma sociedade, que podem participar ativamente da política nacional, cresceu ao longo das décadas e séculos, assim também cresceu o grupo daqueles que querem impedir que esse grupo cresça ainda mais. Esses são nomeados comumente nos estudos de Ciência Política como “reacionários“, ou seja, aqueles que reagem contra mudanças e pregam a prevalência do status quo. No linguajar mais popular, eles são chamados apenas de “conservadores”.

Embora “conservadorismo” possa significar a conservação de uma ampla gama de interesses (nem todos necessariamente anti-povo), este tem sido, ao longo da história, um viés que tem sumariamente descartado o aumento do grupo de pessoas que possam ter mais direitos políticos e participação social (efetiva) nas sociedades. Não à toa, o uso do termo “conservadorismo” na política origina-se na Restauração de Bourbon em 1818, à época em que se lutava para reverter os efeitos da Revolução Francesa. Movimentos conservadores têm a tendência de tentar manter sua atuação na política “limpa” (publicamente), na maioria das vezes reservando sua influência para os bastidores e evitando “cenas mais públicas”. Afinal, esses grupos são reacionários e não revolucionários.

Mas, eis que, em alguns momentos da história, o conservadorismo deu origem a movimentos de fato revolucionários. Um dos primeiros movimentos de cunho conservador e antirrevolucionário (que, por si só, foi revolucionário) foi o chamado bonapartismo. Revolucionário, porque, como subproduto da Revolução Francesa, Napoleão assumiu o poder dando um golpe nos revolucionários, tornando-se, posteriormente, um monarca absolutista. O bonapartismo, enquanto movimento reconhecido após a queda de Napoleão I, baseia-se na sustentação de um líder carismático que, por meio de seu carisma, angaria suporte tanto das massas quanto das elites, avançando sobretudo os interesses das últimas com o apoio das primeiras.

O bonapartismo teria, inclusive, encontrado terreno também na Alemanha (ou o que viria a ser o país) na figura de Otto von Bismarck. Sendo mais reconhecido como o “unificador da Alemanha”, o “chanceler de ferro” (como ficou conhecido) não era fã da democracia, que ainda engatinhava no recém-formado país, e governava com base nos interesses de sua classe elitista, os Junker – grandes latifundiários da Prússia. Por mais que o governo de Bismarck esteja mais associado à paz na Europa que à guerra, sobretudo na comparação com as políticas do estado alemão sob Guilherme II, que não nutria paixões por Bismarck e o retirou do cargo de chanceler ao subir ao poder, ele manteve políticas internas de perseguição a católicos, poloneses e outros grupos minoritários.

No novíssimo século XX, porém, o que foi identificado à primeira vista como uma nova expressão do bonapartismo excedeu-se tanto que passou a ser nomeado pelo nome cunhado por seu criador: o fascismo. Originando-se na palavra “feixes” em italiano, fazendo referência aos “feixes de combate” (ou clubes de luta), o fascismo, criado pelo italiano Benito Mussolini, pressupõe sim um líder carismático, mas vai além, subordinando a população de um Estado a uma autocracia militarista, onde os interesses individuais são suprimidos em prol do bem da “nação”. Mais ao norte da Itália, berço do fascismo, outro líder político iria desenvolver esse conceito mais adiante, adicionando o conceito preponderante da “raça”. Adolf Hitler, logo após se apossar do “Partido dos Trabalhadores Alemães”, que, inusitadamente, era um partido de extrema-direita durante o regime de Weimar na Alemanha de 1919, levou à formação do novo “Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemães” (NSDAP). O partido nazista era abertamente contrário à democracia e à esquerda (a quem também associava o regime democrático como um todo). O nazismo, assim, se baseia no fascismo, mas adiciona o atributo da raça como elemento preponderante.

Enquanto o bonapartismo mantinha uma associação às elites econômicas, sobretudo ao avançar seus interesses por meio do apoio das massas (que normalmente não se beneficiavam com isso), o fascismo tem uma relação problemática com o capitalismo. Enquanto tanto Mussolini quanto Hitler se opunham fortemente ao capitalismo (seja pelo viés consumista e “não-nacional”, para o primeiro, e por ser “algo judeu”, para o segundo), ambos tenderam a associar-se aos capitalistas e utilizar o sistema de maneira instrumental para atingir seus objetivos. Na prática, enquanto os capitalistas seguissem o que os líderes definissem como “interesse nacional”, o Estado fascista o toleraria.

E aqui há uma diferença basilar quanto ao tratamento dado a oligarquias dentro de um regime de cunho ultradireitista e ultraesquerdista. No primeiro, capitalistas podem não só existir, como podem prosperar. No segundo, leia-se o comunismo ou socialismo, eles não são tolerados, já que a base de sua ideologia é o fim do capitalismo. Para o fascismo, o capitalismo só é ruim enquanto ele for “anti-nacional” (ou “anti-raça”).

Entende-se, logo, porque capitalistas conseguem dialogar com (e podem chegar a preferir) fascistas, mas temem (e podem lutar contra) comunistas.

Com o fim da Segunda Guerra Mundial, o fascismo enquanto ideologia “legítima” foi expurgado do discurso político “tradicional”. Claro, vende-se hoje a guerra como tendo sido um embate entre a “democracia” contra o “autoritarismo”. No entanto, a Segunda Guerra Mundial se desenvolveu, na verdade, com base no embate entre aqueles que gostariam de manter a ordem mundial como ela estava e aqueles que queriam revolucioná-la (leia-se, países do Eixo).

Que se note que a ordem mundial vigente à época, por mais que em muitos países fosse democrática, não era parecida com aquela do pós-guerra, onde a questão da igualdade e da inclusão tornou-se o cerne das democracias ocidentais. Na maioria das democracias, apenas homens podiam participar politicamente. Em vários estados dos EUA, havia leis vigentes que foram usadas como inspiração para as políticas nazistas de exclusão de judeus e outras minorias na Alemanha. Potências europeias ainda mantinham fortemente sua política colonial na África e na Ásia, explorando as populações locais. O conflito se iniciou tão somente quando Hitler decidiu reescrever o mapa da Europa e jogar a ordem mundial (ditada pela Europa Ocidental) na lata do lixo.

Após a destruição gerada entre 1939 e 1945, o fascismo então foi banido da Alemanha e outros países da Europa, mas seu cerne se manteve ainda nos EUA, por exemplo. No próprio Brasil, que lutou ao lado dos Aliados, governava um ditador de cunho fascista. A estória de uma guerra contra o autoritarismo foi vendida apenas posteriormente nos anais da História.

Este ponto é importante sobretudo porque, enquanto o título em si da ideologia tivesse virado tabu, suas ideias continuavam a rondar o mundo. As décadas do embate da Guerra Fria trouxeram muitos avanços à Europa com o desenvolvimento de estados de bem-estar social, muito criados como um desincentivo ao comunismo que tentava conquistar corações em mentes mundo afora. Com a queda do bloco soviético na década de 1990, chegou-se mesmo a se anunciar “o fim da história”, com a vitória do capitalismo como modelo econômico e da democracia liberal como modelo político por excelência.

Mas as sucessivas crises (econômicas, sociais e guerras) do fim dos anos 2000 e do início dos 2010 fizeram com que diferentes países do globo, mas sobretudo no Ocidente, passassem a borbulhar socialmente. Com aquilo que começou a ser dado como garantido (leiam-se os direitos e o estado de bem-estar social) ameaçado pelas crises de diversas sortes, demagogos voltaram a utilizar antigas ferramentas do manual fascista. É preciso perceber, porém, que isso não foi algo apenas dos anos 2010. Outras ondas da ultradireita aconteceram durante o período de 1945 a 2000. A diferença da nova onda é que ela logrou algo que as demais não conseguiram: ela entrou na política tradicional.

Em vários países ocidentais, políticos e partidos ultradireitistas não são mais apenas “movimentos de protesto”. Eles se tornaram verdadeiras forças políticas que ou já alcançaram o poder ou estão muito próximos a isso. Mais ainda, em meio à crise da política tradicional (centro-esquerda e centro-direita), que preponderou no pós-Segunda Guerra, esses partidos ganharam tanto em popularidade que outros partidos tradicionais, sobretudo da centro-direita, passaram a ver esse tipo de política como uma forma válida de se promover.

E, assim, o que se vê na atualidade é que em países como Brasil, Alemanha, Reino Unido ou Países Baixos, políticos de centro-direita ou direita passaram a caminhar, com passos largos, rumo à ultradireita nos anos 2010. No início dos anos 2020, já é consideravelmente difícil diferenciar o que é um discurso da direita tradicional e da ultradireita em muitos desses países. Como exemplo, podem-se mencionar a CDU na Alemanha, o Partido Conservador no Reino Unido, o VVD nos Países Baixos e mesmo o PSDB no Brasil. Todos partidos de centro-direita que passaram a adotar parcialmente (mas por membros consideráveis) a retórica da ultradireita. Por outro lado, enquanto o discurso ultradireitista se popularizava, líderes da ultradireita se sobressaíram e alcançaram grandes massas populares. É o exemplo de Bolsonaro, no Brasil, e Trump, nos EUA.

Enquanto isso, a expressão inglesa “apito de cachorro” (dog whistle) passou a ser algo comumente observado na política. Esse termo se refere a gestos ou palavras de ordem usadas por políticos ou figuras proeminentes que fazem alusão velada a ideários que são entendidos por membros de um grupo. No Brasil viu-se, por exemplo, um secretário de estado (durante o governo Bolsonaro) fazer um vídeo que referenciava a um vídeo de um ministro de Hitler (Joseph Goebbels). Esse tipo de ação promove os valores que os propagantes querem passar àqueles que entendem essas mensagens e, por outro lado, normaliza uma estética, ações ou retórica, em meio à população mais geral, fazendo com que ela passe a ser cada vez mais aceita.

Secretário da Cultura de Bolsonaro fez vídeo com referências a Ministro da Comunicação de Adolf Hitler. 2020.

Ao serem denunciados, aqueles que fazem uso deste tipo de expediente normalmente se defendem afirmando que “não fizeram nada de mais”. Este é o maior trunfo deste tipo de ação.

Neste início de 2025, ultradireitistas não precisam mais de “apitos de cachorro”. O que se percebe na atualidade é que a retórica fascista já se popularizou a tal ponto que não é mais necessário “falar só para os seus”. O público em geral já está aceitando cada vez mais mensagens de cunho fascista como “normais”.

A reação de vários usuários de jornais, revistas ou canais de televisão às notícias que visam a mostrar que o tipo de ação feita por um determinado político ou figura proeminente se faz por meio de uma linguagem anti-liberal já é a de negação e de culpabilização. Chegamos finalmente ao cumprimento nazista realizado pelo novo membro do governo de Donald Trump, o bilionário Elon Musk.

Elon Musk, milionário membro do governo Trump, fazendo gesto nazista em comício após posse do novo presidente americano. 20 de janeiro de 2025.

Fotos do gesto já atravessaram o globo e criaram o burburinho que divide aqueles que não veem “nada de mais” no gesto (ou tentam justificar, afirmando que foi um “cumprimento romano” ou que foi um “erro”, já que Musk tem autismo) e aqueles que, mais uma vez, denunciam o gesto como algo abertamente fascista. Na verdade, a melhor interpretação é a de que não há debate e não há nem mesmo dúvida. O tempo do “apito de cachorro” já está para trás. Musk fazer em pleno evento televisionado uma saudação nazista (mais de uma vez) é um claro símbolo da mensagem que quer passar.

O fato de se negar esse tipo de ação (como fazem muitos) é apenas uma constatação de que algo que há alguns anos seria abominável, tornou-se comum e normal. O estado atual das coisas é que há figuras abertamente fascistas no governo estadunidense. O que, mais uma vez, não parece ser uma exclusividade do país norte-americano. Na Alemanha, enquanto o partido ultradireitista “Alternativa para a Alemanha” (AfD), que é considerado oficialmente como “extremista de direita” em alguns estados alemães e tem neo-nazistas entre suas figuras principais, partilha “tíquetes de deportação” para imigrantes como panfleto de campanha, seguindo um exemplo do extinto partido nazista (que fez o mesmo com judeus), o partido de centro-direita tem seu presidente (e provável futuro chanceler), declarando que a cidadania alemã de algumas pessoas deve ser retirada, se as autoridades perceberem que “houve um erro ao dar a cidadania a um estrangeiro”.

“Tíquete de deportação”, divulgado pela AfD com saída da Alemanha para destino “país de origem seguro”. 2025.
“Passagem para Jerusalém”, divulgada por nazistas com dizeres “válido em todas as estações alemães só ida e volta nunca mais”. Anos 1930.

Esses são exemplos de como a ultradireita (e algumas partes da direita tradicional) já não precisam mais esconder aquilo que elas de fato querem implementar: um plano anti-liberal e anti-democrático. Mais ainda, o endosso feito por elites econômicas americanas, das chamadas “big techs“, a esse tipo de política (como se vê com Musk ou Zuckerberg) é apenas mais uma faceta daquilo que se viu nos anos 1930.

Mais uma vez, o que se vê é que grandes capitalistas, confrontados com a perspectiva de talvez ter seus interesses modificados por outrem, significando uma perda (para eles) significativa, preferem apenas alterar um pouco a rota e acoplar-se a movimentos ultradireitistas que, na pior das hipóteses, os toleram, mas, na melhor, os fazem prosperar ainda mais.

O início de 2025 traz consigo, pois, o início de uma nova era em que as ultradireitas, organizadas internacionalmente, não mais precisaram tentar passar um verniz “liberal” (leia-se, igualitário ou democrático) sobre suas propostas políticas. Como se diz em bom português, “as porteiras estão abertas”. Aconselha-se, logo, segurar seus chapéus nesses tempos vindouros.